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Como ocupar uma abstração?

Filmes e documentários de, sobre e com ocupações são motes recorrentes no cinema brasileiro contemporâneo. Desde À Margem do Concreto (2006), de Evaldo Mocarzel, até obras mais atuais, como o curta O Teto sobre Nós (2015), de Bruno Carboni, costuma-se acompanhar o dia-a- dia e as motivações dos movimentos sociais que reivindicam moradia nas metrópoles derruídas pela especulação imobiliária. São filmes que revelam às câmeras um lado oculto, obscuro, desconhecido e alinham-se diretamente a uma causa, um tanto ideal, um tanto pragmática, ou mesmo emergencial, que permanece negligenciada pela grande mídia. Era o Hotel Cambridge, de Eliane Caffé, dialoga e se afasta dessa linhagem. Dialoga porque não se furta a também documentar. Mas, paralelamente, catapulta um novelo ficcional com disparos incertos e aposta na empatia de uma encenação que, tal como num mosaico, espalha flechas para diversos vértices da geopolítica financeira, e seus tanques que tantos espalham, desabrigam, deslocam e refutam.

O hotel – como nome, lugar real e mote – transforma-se num abrigo de refugiados, um ponto central de resistência e respiro. São indivíduos do Congo, da Palestina, de países da América Latina que passam a conviver com os imigrantes japoneses, nordestinos e mesmo estudantes sem lugares para morar. Escuta-se várias línguas, fala-se de culinárias estrangeiras, de um espaço de convivência da diferença, num cuidado internacional, às vezes bastante vago e idealizado, que Estado algum aglutina. Os dilemas éticos da convivência – e mesmo da resistência política frente aos deadlines da reintegração de posse, de seus temores -– são concentrados na liderança de Carmen Silva, que encarna uma personagem feminina de rara fibra. Com ela, o Hotel torna-se uma casa – , ainda que provisória, ainda que perigosa – , mas uma casa possível, que abriga o preciso instante do refúgio caro ao exílio, e projeta, no seu imaginário de vidas em convívio, um futuro e um espaço geográfico, de um lugar político, a ser conquistado. De um espaço inóspito passa-se a um lugar pretensamente uterino, manuseado por um ethos de liderança feminina. Ainda que haja uma projeção sobretudo positiva, e irreal, frente aos desconfortos dos espaços e lugares da ocupação, é justamente essa ênfase de acolhimento, um tanto artificial e eivada por perigos éticos, que o filme pretende passar.

Nesse microcosmo real e ficcional inerente ao próprio Hotel Cambridge desponta um anseio multicultural que, às vezes, na sua encenação, é permeado por clichês rápidos e idealizações políticas um tanto vãs. Seus personagens transitam entre abstrações levemente alegóricas do que representam – os refugiados, os resistentes – e passam a obter uma concretude na boa ênfase dada aos atores amadores: do deslocamento geográfico tragicamente impulsionado pela abstração do capitalismo financeiro, emergem corpos, gestos e indivíduos concretos. Caffé arrisca-se a apostar no riso, e, nos momentos de leveza e de zoeira boa, o filme, diante de um tema tão áspero, ganha aderência e vigora numa empatia picaresca cara ao contato com o público no audiovisual brasileiro. Nessa encenação intra-fílmica, e imaginária, a líder, numa das suas mais notáveis sequências, sugere um ensaio para como se comportar quando encontrarem a juíza que avalia as liminares e os recursos da ocupação e da reintegração de posse. Em detalhe, os personagens comem mexerica, e Carmen Silva enfatiza, com certo ar cômico, como aquele cheiro forte da fruta, da sua casca e dos seus gomos, que logo espraia-se no espaço, poderia ser determinante para a decisão final do magistrado. Uma simples mexerica mostra tanto a fragilidade daquela situação como sua verve de subversão. Seria factível flertar com uma face política pelo cômico, pela sátira? Ao riso, não cabem respostas, mas tão somente a força dos seus instantes de suspensão. Ainda assim, é preciso captar as sutis diferenças entre os veios sátiros do riso, e as risadas mais passageiras, desprovidas de sublimação efetivamente política. No hotel de Caffé, que promete mais do que alcança, ambos tipos de risos estão confusos, alternados e mesclados. Talvez sejam sim momentos levianos dada a complexidade do mundo da ocupação; talvez seja somente uma aposta arriscada de gerar uma empatia que surfa em aspectos mais superficiais da dimensão política daquele hotel e daquela ocupação.

No entanto, isso não é tudo, já que de Mocarzel a 2016 o próprio afã de ocupar reivindica-se como uma atitude política que muito revela deste tempo, e desta atualidade. O ato da ocupação, dos corpos que se desalinham (e se realinham) como nervosas multidões nos espaços, que requerem um lugar, reinventam-se, positivamente, como gestos políticos teimosos, e obtém novos tons, como se o hotel (e a estrada) não simbolizasse mais o local por excelência da deriva moderna. Foi-se o hotel, foi-se a hospedagem ambulante, e este talvez seja um dos sentidos do era do título. Para além do por que ocupar? – pergunta central a um anseio, claro, moderno, “utópico”, por uma pauta política pragmática – enfatiza-se o como e o quê ocupar? O modo de ocupação, o modo de vivência do ato de ocupar, e de todos os seus feixes, cotidianos e indefinidos, impulsionam a uma localização bastante precisa dos anseios políticos dessa geração. Como se, à abstração geopolítica do capital financeiro contemporâneo, a ocupação revelasse uma face, um rosto, uma pequena história que, por ali, naquela geografia atípica, pudesse obter uma voz, ainda que mínima, frágil, e provisória. Como se, do vetor veloz de construção e destruição da financeirização do espaço, aqueles prédios vazios reivindicassem uma reinstauração não apenas do espaço, mas da própria política ou de um espaço público inclusivo, do qual uma verdadeira arena de vozes dissonantes ecoe e abrigue um comum que, ultimamente, insiste em já brotar como usurpado.

Assim, entre tantos passados e tantos devires, queda o prédio, um ente tão concreto quanto abstrato, num contraplongée que oferece uma réstia de nuvem. Uma ilha invertida. Abandonado, sem função, oco e desprovido de qualquer finalidade monetária, o hotel-prédio, suas ruínas renitentes ao seu devir ruína, ganha camas, corredores, luzes, brevíssimos encontros, pequenas bebedeiras proibidas, decorações delicadas, festas incandescentes, anseios de trazer um mundo ao teatro daqueles que estão sem mundos, numa diáspora do indefinido, aos corpos e indivíduos cujos lugares enfrentam velozes vetores de desapropriação. A primeira verve da ocupação, portanto, é o revés de uma oposição maniqueísta entre o distópico, como um aspecto negativo, e a utopia, como um futuro idealizado. No microcosmo das ocupações, nos desafios inerentes daqueles cotidianos inflamáveis, incertos, emerge algo que não é distópico e que tampouco reverencia uma utopia clássica. Algo fronteiriço, ainda em construção. Há uma deslocalização, um vigoroso desarranjo de símbolos de outrora, que reabriga-se nos vários cantos daquele prédio, daquelas vidas. Eliane Caffé, por sua vez, esmera-se em tentar traduzir essa pergunta ética seminal sobre o modo de cada ocupação ao cerne da sua encenação, vividas pelos instantes de celebração e frustração do personagem interpretado por José Dumont. Ainda que ela aposte numa encenação com trejeitos cômicos e clássicos, caro a um cinema feito no Brasil dos ano 1990 em diante, Caffé concentra-se no encontro entre os semeadores desses movimentos pela internet, nos diálogos pelo Skype e pelo celular, que tecem uma rede, dispersa e ativa, de persistência.

O riso e tom picaresco afastam Caffé de um retrato mais minucioso daquela ocupação e das demais que permeiam as ruas paulistanas. O principal mérito dessa obra revela-se – e isso é curioso – como uma das suas fragilidades, já que a forma, a linguagem e os instantes fílmicos não apontam para zonas de incertezas estéticas e mesmo de uma diferença propriamente política. Diante de um deadline irremediável, inflama-se ao levante, convoca-se a uma resistência que carrega tons indefinidos, pois um tanto distanciada pela própria ficção ali engendrada. No entanto, o filme é de fato híbrido e anacrônico, como se apostasse numa encenação e tematização de política cara ao cinema de retomada, e, tal como um OVNI, pousa no Cine Tenda da Mostra Tiradentes, onde parte da platéia mais cinéfila reivindica afetos, um cinema do real e modelos complexos, mas também bastante estanques, de representação do outro e da política; uma parte que não compartilha da mesma empolgação da platéia de final de semana da Mostra, que, comovida, vem dos arredores do vilarejo mineiro para se entreter e se cativar por um tema que sente como político.

É nessa fenda, nesses hiatos, entre tais intervalos de fatos e conceitos que o próprio cinema brasileiro reinventa seu complexo caleidoscópio. Ainda assim, Era o Hotel Cambridge continuará sendo um filme intimamente vinculado aos acontecimentos políticos brasileiros – e mundiais – de 2016. Embora de forma bastante distinta, ele alinha-se a Martírio, de Vincent Carreli, e mesmo a Aquarius, de Kleber Mendonça Filho, nos quais os vetores abstratos de um capital violento obtêm vozes de decretos autoritários e usurpam o espaço da política e todas as políticas possíveis que se localizam no espaço. Quando a decisão de não sair, de não deixar, de não largar, de não sucumbir, desistir ou abandonar revela o digno anseio de re-abrigar a política entre os corpos da multidão. São corpos concretos; concretos que hospedam corpos, entes, enfim, que desafiam a abstração e a usurpação da própria política. Entre a incômoda poluição de São Paulo, que irrita os olhos e ofusca qualquer horizonte, entre os resíduos de chumbo que pairam pelos prédios, as ruas e os pulmões, entre o sibilino de tantas balas de borracha e tantos gases, Era o Hotel Cambridge faz coro ou eco a esses filmes e a esse momento ímpar desta história que nos contamina: o momento quando é preciso algo mais que o discurso de engajamento e a evocação de palavras e símbolos gastos de resistência, quando é urgente voltar a respirar a própria política.