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Onde jaz a brisa?

A sessão de exibição de Antes do Fim, de Cristiano Burlan, frisava logo nos seus créditos ,que se tratava de um work in progress; ou seja, um “corte” inicial, ainda em finalização, em desalinho – seja no delinear um tanto incerto entre cenas, ou em detalhes técnicos e questões sensíveis que o filme já levanta e pode vir a aprimorar. A primeira pergunta que se faz diante desse contexto é mais de uma metacrítica: seria válido traçar uma aproximação de um ensaio e de um julgamento (est)ético diante dessa obra inconclusa? Seria pertinente alinhavar estas palavras diante de cenas trêmulas, imagens e trechos de filmes que ainda não possuem uma versão final? Costuma-se, defronte da incompletude, atuar com mais prudência, reserva e mesmo resguardo.

Muita tinta já foi gasta, por outro lado, sobre processo e o ensaio das etapas a filmagem, da encenação e mesmo da edição. No vasto campo mais atual da arqueologia da mídia (e do cinema) vêm surgindo estudos que jogam luzes em inacabamentos distintos, como os roteiros não filmados, os projetos largados, abandonados, esquecidos e desaparecidos, seja de cineastas mais famosos, seja de amadores. Emerge, pouco a pouco, uma rica história de filmes sem filmes; de fotogramas sem projeção, de materialidades, poéticas e anseios estéticos deliberadamente interrompidos. Quando da imagem de um filme tem-se apenas um recorte de jornal, uma mera crítica, um conjunto incoerente de fotogramas que sobreviveram. São arqueologias sequiosas pela reconstrução de um passado, fidedigno, ou que especulam sobre uma história já perdida. Bastante diferente de uma sessão de teste de audiência, a exibição de um work in progress flerta com imagens voláteis, imagens que talvez desaparecerão, que talvez serão póstumas, frágeis fotogramas como o são todas as imagens cinematográficas. Traça-se, assim, uma arqueologia do devir e é a delícia das espirais tensas e densas dessa temporalidade evanescente que Burlan e a Mostra Tiradentes convidaram, nesta singular sessão, a deslindar.

Aproximando-se do filme, portanto, descobre-se uma cena que muito revela das suas inquietações. Jean-Claude Bernardet e Helena Ignez interpretam um casal de idosos irreverentes. Eles estão sentados na cama, com os dorsos encostados nas cabeceiras, numa posição muito próxima às de Cenas de um Casamento (1973), de Ingmar Bergman. Ele lê Camus, O Mito de Sísifo; ela folheia as primeiras páginas de Carta a D., de André Gorz. Em comum, ambos os livros enfatizam o suicídio como uma questão – e uma prática – genuinamente filosófica, onde todos os tópicos de escolha, liberdade, e do absurdo delicioso da vida concentram-se e apontam para uma síntese simbólica, quando vidas revelam-se incongruentes e desprovidas de sentido. O filme também traz ainda do livro de Camus as vertentes do sedutor, do ator e da criação artística que são formas de encarar o suicídio pela potência da vida. Numa cena anterior, contudo, Jean-Claude confessa a Helena que quer partir, que quer se matar. Sua opção, portanto, aponta para o suicídio como uma possibilidade ética, um modo de usar, um afã de último respiro diante de uma liberdade, essencialmente francesa, que sempre se quer aspirar. No entanto, num detalhe, Jean-Claude pede a Helena que ela, de alguma maneira, o acompanhe… .

É aqui, nesse potente hiato, nessa brecha entre um desejo e a sua pernóstica cumplicidade, digna de toda perversão erótica e amorosa, que brota a principal força dramática do filme de Burlan. Helena hesita. Ela insere um limite, e, delicadamente, postula uma negação ao desejo do amante. Respeita e apoia a decisão de Jean-Claude, mas apenas o acompanharia até um certo ponto. Na orquestração da sua própria liberdade, Helena preferiria a viuvez ao ato de um amor romântico, pueril e idealizado, que vê na morte do outro a total morte de si mesmo. Nesta mesma cena, Jean-Claude, egóico, leonino, pergunta: “e como você se sentiria depois que eu me matar, depois que eu morrer?”. Ao que, Helena, segura de si, responde: “viva, ora, eu me sentiria viva”.

Viva, portanto, Helena realmente desconstrói Bernardet. Aqui, o trocadilho não é apenas uma citação ao filme de Cláudia Priscila, A Destruição de Bernardet (2015). Ao contrário do que ocorre em Fome (2015), do mesmo Cristiano Burlan, que é centrado em demasia na performance isolada do crítico e ator Bernardet, em Antes do Fim o diretor encontra um precioso contraponto dramático, que, de forma sintomática, é marcado pela recusa. Assim, a negativa de morte por Helena Ignez torna-se dramaticamente mais potente do que a positividade vislumbrada pelo abandono da vida do pólo galante e masculino; ou seja, na ênfase solitária do iminente suicídio – fílmico e real -– de Bernardet. As belas borboletas mastigadas por Bernardet -– naquela que foi a performance da sua destruição – geraram outra crisálida e nela, e é dela, como uma ninfa de mais de setenta anos, donde Helena desponta com salutar frescor fílmico, ainda mal burilado pela montagem.

Helena gera dúvidas às certezas conceituais de Bernardet. Insere impermanências, revela imperfeições nos idealismos fúnebres do seu amante. E o faz como imagem, com poucos, brevíssimos gestos, e com falas sibilinas. É pela descrição, por uma notável poética da ausência, e de um silêncio que tanto diz – algo, frisa-se, bem distante da contemporânea gritaria por mais visibilidade – que Helena , mais do que mulher, mais do que de todos, revela o lado patético da encenação entrelaçada no binômio Burlan-Bernadet, que talvez seja, sim, evidentemente conceitual, demasiadamente masculino. Sua presença, portanto, afasta o filme da homenagem e da veneração do escritor de origem belga tornando-o realmente inflamável; escapa do plot que ele mesmo construiu para si. Gera-se, com Helena, e somente com ela, uma rica contracena, verdadeiramente dialógica e que se distancia da já previsível retórica do imprevisível pela qual se esmera Bernardet naquelas duas obras.

Como se trata de um work in progress, arrisca-se afirmar que o filme ganharia mais, muito mais caso realmente permitisse a Bernardet um desaparecimento qualquer, já que é isso que ele tanto apregoa, já que é esse o mote que o filme desperta. O que se vê, o que se viu, contudo, naquela montagem apresentada como um processo, foi o seu justo oposto: quem sai de cena é a própria Helena. Ao final, acompanha-se uma bela sequência, na qual Bernardet, sozinho, ao som de árias de óperas, dança butô diante de outras imagens, projetadas sobre o seu corpo, que está prestes a morrer, no ínterim de se permitir decompor. Mas ele está ali, mas aquilo acontece e, renitente, ele não gera desapego, ele não se desvincula da sua própria imagem fílmica, quase cadavérica, que seja, ou dos mesmos filmes e imagens que roteirizou para si. Bernardet, ainda que tortuosamente, aproxima-se, no seu afã, de permanência, ao ímpeto por uma máscara mortuária, um busto, uma estátua cheia de ensaios, processos e conceitos, mas, ainda assim, uma estátua que insiste no movimento e que não consegue, de fato, se desapegar da imagem e mesmo da vida. Helena, por sua vez, é toda brisa e apenas dança serena entre suas dúvidas. Não almeja consagrações nem suas ridículas consequências e busca no átimo, no ínfimo instante que lhe é dado, suscitar, sem pesos, as fendas e os abismos que embalam qualquer devir-ausência.

Saber desaparecer. Deixar-se, realmente, desaparecer. A dúvida, de fato, engendra uma série de perguntas e de referências. Como filmar, fixar sensações e escrever o desaparecimento? Como fazer dele uma potência que não descambe para modelos, ideias reprodutíveis? Lembro, aqui, de algumas obras de Marcel Broodthaers relacionadas à escrita, como Livre-Bête, um livro que se desmoronará caso seja aberto; ou mesmo La Pluie (Projet pour un texte), no qual o artista, ironicamente também belga, escreve sob a chuva, quando permite-se molhar a pena, diluir a tinta no papel, justamente para escrever sem gerar fixidez alguma, para escrever e inscrever-se enquanto sua própria escrita também desaparece.

Não por acaso, aquela montagem de Antes do Fim opta por terminar com a sequência de uma dança fúnebre – a dança, precisamente, linguagem que evoca a arte do efêmero, a mais performáticas das musas, que será sempre marcada pela desaparição. Lembro, numa última referência, do anti-legado de Merce Cunningham, dançarino inquieto e companheiro de John Cage, que deixou à sua companhia de dança, após a sua morte, a incumbência budista aos seus membros de destruir todos os fotogramas, todas as imagens, todos os instantes em que eles (des)apareceriam. É singular da imagem da dança admirar-se com o fervor volátil das próprias visualidades que geram. Como deixar-se morrer sem deixar-se abduzido por um afã de instituição? Como despertar, na temporalidade da dança, gestos que não sejam meras homenagens póstumas? Como fazer da imagem da dança um instante pleno que não se furte ao anseio vão, metafísico, da posteridade, das imagens que sobreviveriam? Termina-se com perguntas, mais próximo, quem sabe, da personagem de Helena, no anseio que elas desalinhem os tão rígidos projetos, conceitos e as projeções da forma como são dançadas e montadas por Bernardet e pelo diretor. Ali, nos momentos mais potentes desse filme em devir, vislumbra-se uma vibrante miríade feminina, tal como declamada pelo Hamletmaschine de Heiner Müller, vislumbra-se Helena numa metamorfose, antes do seu fim, em que transformaria-se em Ofélia, aquela que o rio não conservou, a mulher com as veias cortadas, com excesso de dose sobre os lábios, a mulher sobre a neve, que foi para a rua, vestida de seu sangue, e que ontem deixou de se matar.