Pingo D’Água, de Taciano Valério (Brasil, 2014)

setembro 22, 2014 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Em Campo, Raul Arthuso

pingodagua
O fetiche do processo
por Raul Arthuso

Dois filmes caminham juntos em Pingo D’Água: um filme-resultado, ficção sobre uma comunidade performática isolada numa casa no interior; e o filme-processo de produção. A moeda e seu reverso: se animam, erguem, sustentam, desdizem, contradizem. Como o corpo e sua sombra, um filme persegue o outro, mas o que alimenta Taciano Valério é o desejo de borrar as fronteiras entre um e outro, como se corpo e sombra fossem uma coisa só. Nessa (con)fusão armada, tudo é instável, pois, na verdade, tudo é finito – mas não limitado. É no impulso de contemplar esse “ilimitado” a partir das finitudes que Pingo D’Água se desdobra.

Pois nessa tensão entre ilimitado e finito, o filme se faz em abismo, não apenas pelo filme dentro do filme já proposto no início, mas pelas pequenas crônicas que se abrem tanto no filme-resultado quanto no filme-processo. São narrativas que se apropriam das personas dos atores, seus corpos, seus nomes, suas experiências. Principalmente, se em sua estrutura global Pingo D’Água mira revelar o cristalino detalhe indicado pelo título, o sublime refreando a morte – esperança do artista diante da obra – as cenas do filme-processo discorrem exatamente sobre “pequenas mortes”, o término de relações, as quebras de laços, a dissolução de parcerias enquanto o filme-resultado se faz do fortalecimento delas. Pingo D’Água vai operando assim: dividindo-se, fragmentando-se em abismo, abrindo portas para novos cômodos sucessivamente que, no ponto de fuga, revelam um labirinto – e para citar Borges, constantemente lembrado no filme e na obra de Taciano Valério, existem dois tipos de labirintos: aqueles grandes jardins construídos, que são um desafio para o intelecto; e os desertos, cuja questão é física. No labirinto de Pingo D’Água os (des)caminhos mostram personagens que se confundem com seus atores, ensaios travestidos de cenas, conversas extra-fílmicas tornadas a obra em si, tudo levado ao paroxismo a partir do qual só é possível especular sobre personagens, atores e cenas, pois nada se deixa ver os contornos. Estamos no ideal barroco da mancha e não do traço.

No início do filme, o personagem Jean-Claude Bernardet se encontra num sebo e rasteja pelo chão até cavar um buraco entre os livros em uma das estantes. Ele, então, entra na prateira em meio ao livros. Como uma carta de intenções, a cena inicia o mergulho de Pingo D’Água nas entranhas da obra de arte e seu processo. Ou melhor: transformar a obra de arte em seu processo, e o processo em obra de arte. Falar em processo é, por sua vez, tocar num dos grandes fetiches do cinema brasileiro atual. Processo se dá horizontal e verticalmente: sente-se os efeitos do tempo no seu desenrolar, mas também no devir das partes agregadas ao longo do caminho. Processo é devir, mas também o ideal do processual é não se anunciar e sim ser percepção pura. A questão com Pingo D’Água é o quanto o processo se anuncia. Primeiro pelo filme-resultado que é apenas vislumbrado no início do filme e vai tornando-se promessa, como a eterna sucessão de prólogos de Macedonio Fernández de um romance que nunca chega. Segundo, pelo próprio caráter do filme-processo, metalinguagem que não ocorre propriamente na constituição da obra nem aborda a inspiração, mas a vida das personagens no momento da preparação para a viagem que será a filmagem. Nas fendas disso, uma série de recursos como a autoficção (as personagens têm os nomes de seus atores e o ponto de partida das relações ficcionais derivam delas), o hibridismo dos registros, os “jogos de cena”, a performance, o hiperlink da obra cinematográfica com outras áreas do conhecimento, todo um repetório que se formula nos planos com a imposição de deixar entrever sua existência e chamar atenção para o próprio procedimento.

Fica muito evidente o caso de Jean-Claude Bernardet, interpretado pelo famoso crítico, pesquisador e, agora, ator homônimo. Os termos acima – autoficção, híbrido, performance, hiperlink – fazem parte da obra crítica de JCB. Não é exagero dizer que Pingo D’Água é um filme também a partir e sobre Bernardet, na medida em que seu corpo, suas palavras, seu jeito de falar e o imaginário em torno de sua pessoa pertencem ao filme e lhe dão sustentação tanto quanto a obra pertence a ele enquanto resposta a seus conceitos, seu corpo e imaginário. Não se trata da qualidade da atuação de Bernardet – de uma entrega que sem dúvida dá retorno ao filme – mas de como o filme deixa claro tratar-se de uma autoficção com Bernardet como centro, ser um filme híbrido que incorpora outras áreas, especialmente a literatura, que o improviso é marcado a ponto de a espontaneidade muitas vezes girar no vazio, e que a base da existência das personagens está na performance, o que acaba por fazer de Pingo D’Água um filme na cartilha de JCB e seu pensamento sobre o cinema contemporâneo. A força da presença de JCB se impõe ao filme.

Quando tudo se anuncia, os limites ficam expostos. Por mais que o filme de Taciano Valério tenha belos planos aqui e ali, sua insistência em tudo ser performance cria a impressão de pura exterioridade. É quando o devir, o infinito e a profundidade barrocas se mostram, na verdade, o decalque rococó – a marca expressiva do artista é ornamental e plana, criando um movimento de fachada onde na verdade só existe um esforço decorativo. A crise trazida pela performance em estado de implosão de Os Residentes (2010), de Tiago Mata Machado, é domesticada no estilo por Pingo D’Água. O processo é teórico, pois autoafirmativo. Falta-lhe o movimento do devir. Nesse sentido, toda a estrutura em abismo do filme torna-se um labirinto intransponível. Mas, Pingo D’Água, paradoxalmente, está na categoria dos desertos.

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