Ralé, de Helena Ignez (Brasil, 2015)

outubro 13, 2015 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Em Campo, Pedro Henrique Ferreira

raleOs gritos que vêm da montanha
por Pedro Henrique Ferreira

Embora houvesse todo um clima de desbunde e irreverência, a geração do Cinema Marginal não foi particularmente celebrativa. O retrato era de uma juventude, mas havia entranhando nos filmes uma certa austeridade. Revelavam, por trás dos gritos e dos esforços de transgressão, uma enorme angústia. “… a gente avacalha e se esculhamba” era apenas uma das partes da frase. Seu complemento era “quando a gente não pode nada”. Havia ali presente uma distopia, um desgosto pelos rumos reacionários do país, a incapacidade de enxergar um horizonte onde as coisas pudessem mudar e ser diferentes. O marginal não era muito diferente do intelectual angustiado. Era sua versão terceiro mundista, que não via possibilidades de levar a cabo projetos de nação por causa das suas características e das características de seu povo. De um lado, rejeitavam a linearidade causal hegeliana, mas, por outro, pareciam concordar com ele que as Américas jamais se elevariam do estado de natureza ao estado de história (no sentido dialético e político). Suportar o mundo podia se transformar eventualmente em neurose, principalmente a partir da reconfiguração do país nos anos 1980.

A saída foi eventualmente a religiosidade, o misticismo ou a investigação particular de um mundo paralelo, mais bonito, favorecido pelo uso das drogas, dados muito associados ao tropicalismo. Neste sentido, o gesto de Helena Ignez em Ralé de se assumir como hippie, e tomar a figura de seu barão (Ney Matogrosso) como um distribuidor de um chá alucinógeno produzido no Acre, é extremamente sincero. Este seu novo longa-metragem não chega a ser particularmente um canto do cisne, como foram os últimos filmes de Paulo Cezar Saraceni, mas tem um quê de carta de intenção de toda uma geração ou grupo que, se não teve necessariamente seu auge em outro tempo histórico, fez a fama nele. Não é à toa que figuras como Ney Matogrosso e Zé Celso capitaneiem o elenco, que haja remissão a Copacabana Mon Amour e que Helena Ignez volte a vestir-se como Sonia Silk, a loira oxigenada. Há o apontamento para o novo lugar ocupado por estes personagens incríveis que, quase voluntariamente, optaram por um estilo de vida diferente, nem que nas montanhas, distante do mundo caótico lá embaixo.

Livremente inspirado na peça de Maxim Gorki (da qual herda praticamente só o título), Ralé se constrói por um conjunto de cenas desconexas que não tramam real lógica narrativa. Ela se organiza pela autoapresentação de diversos personagens que rondam a figura do barão. Este celebra seu casamento homossexual na Serrinha. Há também um filme intitulado A Exibicionista sendo rodado na ocasião. É o pouco que conhecemos da trama. O resto são cenas e flashes que mostram tanto a forma como vive a trupe quanto representam a defesa de bandeiras e causas importantes para a realizadora e particularmente afinadas com o universo político contemporâneo: a causa indígena, a liberação sexual, o feminismo, a liberação das drogas, o casamento gay etc.

O tom é de celebração, no que está seu problema e também seu mérito. O que justifica o espírito otimista é em muito também o exílio nas montanhas. Lá, não há problemas. Não há mundo caótico invadindo. Não há um Brasil em convulsão. Não há angústia, raiva ou decepção. O que há são os seus amigos, sua “trupe”, em paz, vivendo de acordo com as suas leis e zombando das dos outros. Mais de uma vez, ouvimos que todos têm a capacidade de pensar, mas apenas alguns pensam. Tudo é declarado impunemente, sem confrontos. Tudo é declamado. É declarado metalinguisticamente, inclusive, que o filme será uma livre associação de cenas, justificado na peça de Gorki. Estamos diante do retrato justamente da utopia realizada que, nos anos 1960 e 70, parecia impossível e cuja falta de vias possíveis de realização em outros tempos causaria desespero, esculacho, loucura e desbunde.

O gesto mais generoso do filme é reconhecer que o filho do barão pode não querer participar daquilo. Que aquilo pode ter apenas um lugar no tempo e no espaço, fadado a talvez se encerrar em si mesmo, possuindo a própria e espontânea beleza. Amando o pai, o filho vai embora. E isso, também, não é um problema. Ralé é sobre uma geração ou um grupo de geração que venceu e deu certo, na medida em que essa vitória significa a capacidade de inventar um novo estilo de vida, de pô-lo em prática, mesmo que isoladamente, mesmo que afastado do resto do mundo, onde todas as bandeiras podem ser levantadas sem que a realidade venha derrubá-las. Helena Ignez parece reconhecer o tamanho e o limite de seu otimismo. Colocar-se com tamanha franqueza na tela tem sua potência transgressora, mas, pela ausência de inimigos, conflitos ou contradições, para nós aqui embaixo os gritos ficam um pouco mais distantes.

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