48º Festival de Brasília (2015) – dia 2

setembro 21, 2015 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Em Campo, Marcelo Miranda

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por Marcelo Miranda

Curta 1: Tarântula, de Aly Muritiba e Marja Calafange

A ambientação sombria num casarão rural, o olhar estático para o exterior (do ambiente e do plano), os enquadramentos imóveis a permitirem a movimentação interna dos corpos em cena, o excesso de elementos na composição, as janelas filmadas como quadros. Em tudo, Tarântula está matematicamente arquitetado para ostentar um olhar carregado de referenciais e vontades de ser grandioso na tela. É um filme que disfarça a mão pesada numa aparente sutileza com que constrói o drama misterioso e atmosférico de seu roteiro.

Falamos em sutileza aparente porque nada é inocente ou esvaziado de sentido no filme (e é melhor que seja assim: sem cinismo). Só que seu sentido é o do filme-fetiche de artesania, em que se dá voltas e voltas em torno de muito pouca coisa. O fabulário vem das lendas e dos medos infantis, mas é principalmente através da ambição de emular sensações que o filme tenta se impor. A consequência de tanto esmero é a frieza com que tudo se dá a ver. Se num outro curta exibido em Brasília (À Parte do Inferno, de Raul Arthuso) a caracterização de uma atmosfera exasperante se conecta a uma problemática apresentada frontalmente na imagem (como entrar? E por que sair?), em Tarântula o dispositivo de filmar sob o ponto de vista da menina, entre janelas, grades e objetos, tira do filme as possibilidades de se levar adiante as dobras levantadas por toda essa construção. Os conflitos estão abafados por camadas e camadas de construção extrafílmica e interrompidos de efetivamente acontecer tais quais os movimentos limitados da protagonista, deficiente sem uma perna. Ela representa, pelo corpo filmado, as contradições de Tarântula: beleza e encanto estão em primeiro plano, enquanto a real natureza fica debaixo da superfície aparente, protegida pela camada exterior de elegância e autoimportância.

Daí que, no fim, com a ação bruta interrompida pela metade, Tarântula interrompe também um possível sentido de seu próprio acontecimento e presença, como se a frear os impulsos que pareciam movê-lo na partida. É como se, ao filme, interessasse apenas chegar na cena fatídica, para justamente cortá-la rumo à tela preta que não necessariamente estimula um pós-filme, e sim causa outro tipo de perturbação: a de um filme pensado demais para parecer de menos. Num contraponto inesperado, o outro curta exibido na mesma noite no Festival de Brasília (ler abaixo) também se inicia a partir de um esgotamento da opressão, partindo da fabulação de relações extrarreais, porém indo explicitamente ao confronto, sem escamoteio.

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Curta 2: Rapsódia para o Homem Negro, de Gabriel Martins

O filme de Gabriel Martins parece nascer da raiva e do ressentimento – sentimentos não apenas de momento, mas de uma ancestralidade, assumidos como o acúmulo de séculos de maus-tratos e barbaridades cometidos contra negros, pobres e explorados de todo tipo. A política, em Rapsódia para o Homem Negro, já aparece no gesto de sua própria existência expressiva. Não é que o filme se desenvolva para o desfecho brutal: este desfecho é a razão de sua existência, a base de uma ontologia. Havia escolha de o filme seguir outros rumos? Talvez houvesse. Importa?

Tal como fizera num curta-metragem anterior, Dona Sônia Pediu uma Arma ao seu Vizinho Alcides (2011), Gabriel Martins se vale de estrutura brechtiana na composição do filme, tendo um fio central a acompanhar os dramas expostos e a preocupação muito mais ampla da apreensão de uma história que se formou bem antes, gravada na pele e no olhar daqueles personagens, em crenças e culturas muito anteriores e que seguirão depois dos créditos. A violência é a única linguagem comum entre os núcleos apresentados em cena, seja ela a do ato de opressão (ilustrado pela caricatura dos especuladores imobiliários) ou a reativa a um estado de mundo. O gesto é de voltar aos mitos africanos e fazê-los ressurgirem na fratura contemporânea que se estabelece a partir das decisões do alto das cúpulas que têm a cidade como propriedade particular e que negam o sentido de compartilhamento inerente à ideia da polis.

Filme de intervenção tanto quanto reflexão poetizada, Rapsódia para o Homem Negro é raro exemplar da produção audiovisual mineira a apontar o dedo diretamente na cara daquilo que ataca – e efetivamente atacar. Gabriel Martins faz, através da matéria fílmica, um ritual de empoderamento daqueles tidos como sem voz e sem valor dentro de uma estratificação social que o cinema brasileiro dos anos 2000 decidiu por transformar na maior das questões. O filme se vale da incorporação do mito e do imaginário rumo à tragédia familiar concreta, retirada das manchetes de jornal, ao mesmo tempo em que caminha por imagens fortíssimas (o negro, preso por correntes, sendo baleado na cabeça, pelas costas, por um policial fardado: num mesmo plano, a constatação de uma falência histórica incontornável) que oxigenam as mesmas catástrofes que lhe servem de ponto de partida. A exuberância do filme (desde o uso expressivo do scope até os cânticos de Sérgio Pererê como leitmotiv sonoro) aumenta o impacto de cada instante, valorizando ora a beleza comovente de uma conversa sincera entre dois irmãos, ora a explosão mítico-realista do desfecho. Revanchismo catártico? Não sejamos tão simplistas. O cinema é um campo de batalha. “Alguns dizem que a câmera vem mais da metralhadora do que da lanterna mágica” (Comolli).

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Longa: Fome, de Cristiano Burlan

Em 2005, num texto sobre Corações Desertos, primeiro longa-metragem de Cristiano Burlan, o crítico Francis Vogner dos Reis escrevia que “Burlan sabe fazer composições, tem os olhos voltados para a textura e busca fazer uso das cores de maneira consciente, mas carece de um conceito mais sólido que integre com propriedade a busca por exercitar seu estilo”. Uma década e 17 filmes depois, mais o reconhecimento em festivais com o forte documentário Mataram Meu Irmão (2013), o cineasta competiu pela primeira vez no Festival de Brasília, exibindo outra de suas parcerias com o crítico e hoje ator performático Jean-Claude Bernardet. Se antes Burlan teve Bernardet como o homem pensante de Amador (2014) e um fantasma em Hamlet (2014), em Fome existe um sentido mais existencial e ambicioso de colocar o intelectual franco-belga em cena como um morador de rua circulando por uma São Paulo filmada em preto-e-branco e mostrada em rodopios de steadycam.

Burlan busca a expressividade da composição, a beleza do plano “feio”, a possível melancolia épica da metrópole e a entrega de um corpo velho, abatido e sujo ao experimento de abordar, através da poesia, uma situação social sempre urgente. Se a afirmação inicial do trecho aqui citado sobre Corações Desertos ainda se aplica (Burlan continua um esteta em busca de texturas), a segunda assertiva do artigo de Francis sofreu uma inversão: o diretor, agora, demostra estar esclarecido demais em relação ao conceito que permeia seu estilo, e esta autoconsciência acaba por colocar Fome na incômoda situação de um filme que disfarça, na abordagem errante e errática do tema e do personagem, um olhar já muito carregado para o que olha.

A armadilha começa na escolha do próprio Jean-Claude Bernardet para o papel principal de um mendigo. Como fica cada vez mais evidente a cada novo filme protagonizado pelo crítico – entre eles, Filmefobia (2008) e Periscópio (2014), de Kiko Goifman; Pingo D’água (2014), de Taciano Valério; e o citado Hamlet, de Burlan –, nunca um trabalho com Bernardet no elenco central deixa de ser, antes de tudo, um filme sobre e para Bernardet. Seja pela persona bastante reconhecida no meio audiovisual, pelo sotaque afrancesado, pela presença física (entre a fragilidade da magreza e a força da expressão), pela exposição de sua intimidade e história de vida em livros e reportagens, ou mesmo pela conceituação algo analítica de sua presença na fatura dos filmes desde os projetos originais, é impossível desvincular aquilo que se vê daquilo que se sabe.

(Haverá sempre a réplica, como aconteceu num debate em Brasília, de que o conhecimento prévio em torno da figura de Bernardet é exclusivo do Brasil, mais ainda dos participantes de festivais brasileiros, enquanto, para plateias estrangeiras ou de um eventual circuito comercial, Jean-Claude surge só como um ator anônimo. Vamos deixar a retórica de lado e pensar em termos práticos: os filmes em questão existem no e para o Brasil, e é a partir desta evidência ontológica que nós os apreendemos, sendo impossível senti-los como um espectador de “fora”. Que as outras plateias pensem por si mesmas no momento em que forem impelidas a isso.)

No caso de Fome, existe um longo prólogo em que o mendigo circula pelas ruas e praças da cidade em silêncio, apenas modulado pelos sons urbanos e pelo barulho do carrinho que ele empurra para cima e para baixo. É na primeira guinada que o filme começa a expor alguns mecanismos perversos: uma jovem estudante grava uma série de depoimentos de moradores de rua, numa sequência que “interrompe” as andanças do mendigo e o encaixa dentro de uma realidade muito maior, urgente e sobre a qual o filme se assume consciente. Logo voltamos ao velho inicial, dali adiante registrado em encontros e embates preparados pelo filme nos quais ele fala, discute, sorri, ironiza e canta com variados interlocutores. O mendigo deixa, então, de ser “só” um mendigo e passa a ser Jean-Claude Bernardet encarnando a figura de um mendigo. O filme lhe impõe plena noção de seu papel enquanto encenação e articulação de planos, sons e imagens, justamente quando o protagonista está devidamente categorizado como “personagem”.

O subnúcleo da estudante sempre retorna para supostamente criar uma ponte de problemas ao filme, mas, na verdade, ele acaba por minar as forças perseguidas antes e depois (no espaço-entre) das inserções. A sedução por Jean-Claude se explicita num encontro justamente com Francis Vogner dos Reis, crítico e pesquisador que, em cena, atua como alguém que reconhece o mendigo como tendo sido seu professor de cinema na USP. Um longo diálogo conflituoso se desenvolve, em improvisos que servem muito mais de localização e legitimação de o que é ter Jean-Claude Bernardet como ator (ou performer) do que algo importante ou essencial à estrutura do filme por si mesmo. Por que fazer do mendigo um ex-professor de cinema que lançou um famoso livro sobre documentários brasileiros? Porque esse mendigo é Jean-Claude Bernardet, o homem que desenvolveu, por anos, estudos sobre as noções de autoficção. Nada mais lógico ao filme, então, do que autoficcionalizar esta presença marcante e esgotá-la até o limite (como na cena final, oportunamente fixada no rosto do personagem).

Um dos grandes desafios em Fome acaba por ser compreender quais, afinal, são suas inquietações e quais os gestos que a direção de Cristiano Burlan toma para trazê-las à tona. Quer-se falar do morador de rua num sentido amplo ou desafiar Jean-Claude Bernardet a encarnar um morador de rua? Tenta-se um discurso culturalista sobre uma realidade social ou é tudo provocação sobre a representação do pobre e do desvalido? Criticar a classe média e fazer do mendigo um “mito urbano” ou problematizar a desatenção para com o próximo – ou, usando aqui um termo cunhado por Bernardet, pelo “outro de classe”? Não é que Fome devesse responder a quaisquer destas (ou outras) questões. O complicado do filme é que ele parece tentar respondê-las antes mesmo de ser perguntado.

Cenas como a do casal que oferece comida ao mendigo (ele teria aquela mesma reação combativa se o homem não lhe tivesse chutado as pernas e o ofendido verbalmente?) ou a sequência em que a estudante o encontra catando comida no lixo e oferece-lhe um banho para, em seguida, o filme mostrá-lo em câmera lenta, a dançar sobre a grade de metrô, entram de sola como se fossem comentários externos de uma realização que, em vários momentos, finge estar somente acompanhando o ator Jean-Claude com uma câmera. Nada é tão simples e, como o próprio Burlan disse no debate em Brasília, filmar alguém é sempre um ato de violência. De que maneira lidar com essa violência quando ela fica se desculpando a cada sequência para, no plano seguinte, novamente se fazer presente, num ciclo interminável de “violências desculpáveis”? Como escreveu Jean-Louis Comolli: “Não se filma sem amor, sem desejo, sem inconsciente, sem corpo; mas também não se filma sem consciência, sem moral, sem cálculo, sem gostos e desgostos”.

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