Mataram meu Irmão, de Cristiano Burlan (Brasil, 2013)

maio 16, 2013 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Em Campo, Em Cartaz, Filipe Furtado

matarammeuirmao
Saco de ossos
por Filipe Furtado

A maior virtude de Mataram Meu Irmão, de Cristiano Burlan, é ser um filme sem subterfúgios. Há uma questão (a violência na periferia) que é exposta através de um caso (a vida e morte do irmão do cineasta). Cristiano Burlan é direto, parte para o confronto frontal com seu problema. Esta questão jamais chegara até nós por uma moldura, como frequentemente acontece no cinema brasileiro contemporâneo, mas através de uma certeza: um dia existiu Rafael Burlan da Silva e ele já não está junto a sua família. Este desaparecimento é o ponto de partida do filme e parte da força deste Mataram Meu Irmão é que seu cineasta está menos interessado em investigá-lo do que em circundá-lo, e, ao capturar o irmão morto por múltiplos ângulos, o filme não só lhe retoma com força, mas também consegue inscrevê-lo em toda uma trajetória mais ampla de violência urbana brasileira. Ao olhar a parte, e sem jamais se distanciar dela, Cristiano Burlan encontra o todo; ao retomar a história de violência familiar (seu irmão foi assassinado por conta de uma disputa em um roubo de carro no qual estava envolvido), fez um dos filmes mais fortes recentes sobre a violência em São Paulo.

O documentário brasileiro recente vem apostando com frequência na investigação em primeira pessoa, em que o drama familiar é descortinado num misto de exposição do documentarista com a busca por uma perspectiva histórica. São filmes que buscam localizar numa pequena história por vezes uma ressonância, e por outras uma muleta que sustente suas investigações. Podemos localizar a semente deste modelo por aqui no 33 de Kiko Goifman, que se apresentava como um dispositivo autocrítico em que a busca do cineasta era despersonalizada e a investigação em primeira pessoa existia para que o filme pudesse existir. É uma ideia que se repete em vários destes filmes, como, por exemplo, Em Busca de Iara, de Flavio Federico, exibido neste mesmo É Tudo Verdade, em que a sobrinha de Iara Iavelberg, Mariana Pamplona, coautora do filme, surge como uma mediadora da investigação para lhe agregar um valor extra, como se o cuidadoso trabalho de pesquisa de Federico não se sustentasse sem este valor agregado.

Se há algo que limita estes filmes, não é o elemento de melodrama que acrescentam ao documentário, ou seu caráter auto-centrado, mas sim o que estes filmes trazem de auto- sabotagem, pois o dispositivo da primeira pessoa frequentemente expõe um esvaziamento de olhar, uma incerteza que mina sua força. Neste cenário, Mataram Meu Irmão é um filme notável justamente por existir ao largo de tudo isso. A investigação em primeira pessoa não é um dispositivo que o sustenta, pois aqui faz se um filme porque há um problema ao qual precisa-se chegar. Ao final de Mataram Meu Irmão, o que fica é justamente esta sua apresentação frontal, especialmente naquela que é sem dúvidas a sequência mais memorável do filme: um depoimento de um amigo do cineasta cujo tom casual, apenas um jovem tomando cerveja à beira da praia, é entrecortado pelo tom direto das declarações (“o seu irmão era um retardado brincando de ser malandro”), em que todo um discurso desequilibrado e muito forte sobre viver na periferia toma corpo. O maior mérito do filme é que, diante destes momentos, ele nunca baixa o seu olhar, simplesmente procura-se o mais justo para cada situação.  Mataram Meu Irmão busca menos um discurso do que uma descrição (a maior parte das suas sequências consistem justamente em pessoas falando sobre Rafael), para que desta possa extrair a força de um retrato.

O filme se abre e se fecha sobre o corpo de Rafael. Seus primeiros planos captam a voz do próprio Cristiano Burlan a lidar com uma funcionária de cemitério, que burocraticamente lhe informa que o corpo do irmão fora anos atrás transferido para uma vala coletiva e que seu espaço próprio no cemitério fora apenas alugado por um tempo pré-determinado. Seus últimos planos revelam as fotos do corpo morto de Rafael provenientes do relatório policial. Entre esta ausência e esta presença, ambas mediadas por um olhar institucional (o do cemitério; o da polícia), o filme se instala. O olhar de Mataram Meu Irmão é animado por uma dúvida já desde seu plano inicial: como uma pessoa se transforma numa coisa, num saco de ossos que pode ser discutido de forma clinica e desinteressada? Quando discutimos a violência urbana, é deste olhar clínico que invariavelmente partimos. Discutimos os prós e os contras de uma questão, como a da redução da maioridade penal, como se falássemos de vários sacos de ossos. Mataram Meu Irmão interrompe este ciclo. Mesmo quando Burlan se coloca a conversar por telefone com seu primo, presidiário em Cuiabá, do qual só temos a voz, o diretor trabalha para lhe dar uma presença que lhe insira com força dentro do filme. Pode-se acusar Burlan de sensacionalismo ao retomar as fotos do irmão morto ao final, buscando o máximo de impacto dramático quando finalmente lhe dá uma imagem, mas o processo ali é o mesmo de todo resto do filme: das fotos burocráticas para as quais Rafael é só mais um corpo, mais uma estatística, Mataram Meu Irmão extrai o especifico, a certeza de que não se trata de somente mais um corpo sem vida para ser observado e descartado.

Trata-se de um filme com três protagonistas distintos: o irmão morto, o irmão vivo e entre eles a presença constante do Capão Redondo. Desde O Vigilante, de Candeias, o cinema brasileiro não captava a periferia como um dado tão concreto, não espaço de espetáculo, não espaço da miséria, mas um espaço em que se vive, e também um espaço que se inscreve em cada um daqueles que viveram ali. Não há aqui nem espetacularização, nem assistencialismo, apenas um estado com o qual se aprende a conviver. Um elemento recorrente dentro de Mataram meu Irmão é justamente a sensação de se estar dentro e fora da periferia – trata-se, afinal, de um filme do irmão que saiu da periferia sobre o irmão que morreu lá.

Frequentemente, Cristiano Burlan nos oferece momentos em que observa alguém que não o vê faz algum tempo. Um dos últimos diálogos do filme é justamente a sobrinha lhe perguntando “tio, onde você mora?”, com a resposta seca e direta “no Centro”. Este trânsito constante entre dentro e fora reverbera para todo o filme. Haverá, ao longo de Mataram Meu Irmão, um misto constante de um olhar à distância e uma intimidade de encenação em que cada encontro e cada visita trabalha para apagar esta mesma distância. A violência na história que o filme descortina é só um dado a mais. Burlan é de um despudor incomum ao nos aproximar dela (em determinado momento, um dos entrevistados menciona que a mãe do cineasta fora assassinada, sem que o filme gaste nem um segundo a mais para registrar a informação): ela é algo com o qual se convive o tempo todo. A periferia é uma presença constante, da qual se escapa, mas não se apaga, e o filme em si parece estar ali para se garantir isso. A voz off do cineasta por vezes busca um distanciamento, uma perspectiva que a sua encenação recusa; se a trajetória do filme permite um preenchimento (o de Rafael), ele também realiza um esvaziamento (o de Cristiano). Este dentro e fora é progressivamente apagado pelas imagens que o filme localiza. Resta aquele espaço do Capão Redondo e os traços que ele deixou sobre todos os personagens que passaram pelos planos do filme. Dele, não temos dúvida, será impossível escapar impune.

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