Dois Dias, Uma Noite (Deux Jours, Une Nuit), de Luc e Jean-Pierre Dardenne (Bélgica/França/Itália, 2014)

março 1, 2015 em Em Cartaz, Victor Guimarães

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O inferno são os outros
por Victor Guimarães

Desde A Promessa (1996), cada novo filme dos irmãos Dardenne tem se equilibrado, não sem muita dificuldade, entre dois pilares: a devoção ao movimento perpétuo dos corpos em cena – materializada nos conhecidos traços estilísticos dos diretores, como a câmera persecutória, a estrutura dramática do thriller e as atuações naturalistas – e uma estrutura retórica forte, que dá ensejo a seus contos morais do proletariado. No interior dos filmes, sempre que o primeiro pilar funciona em sua plenitude – a caçada implacável a Rosetta (1999), a inquietude física de Olivier, personagem de O Filho (2002) –, há cinema (e, em alguns momentos, grande cinema). Quanto ao segundo, sempre que o “desenrolar quase didático de parábolas morais típicas de um socialismo cristão voluntarista e professoral” (como escreveu Luiz Carlos de Oliveira Jr.) fala mais alto, o que há é uma insustentável tentativa de drama, onde a palavra ganha predominância sobre o corpo na mesma medida em que a tese prevalece sobre a presença. O Garoto da Bicicleta (2011) já era o exemplo acabado de como usar um arco dramático para assassinar um personagem por asfixia, mas este Dois Dias, Uma Noite (2014) é ainda mais sintomático dos limites desse cinema.

Na fábrica onde trabalha Sandra (Marion Cotillard), os patrões propõem uma votação perversa, típica do capitalismo contemporâneo: diante da crise e da ameaça asiática (sempre ela), os empregados têm de escolher entre um bônus financeiro para todos e a demissão da protagonista. Como é regra nos Dardenne, o filme começa já no olho do furacão, quando o primeiro turno foi perdido e Sandra terá um fim de semana para convencer a maioria de seus colegas a votar por sua permanência em uma nova eleição.  A estrutura é primária e pode ser encontrada tanto nos filmes-dispositivo contemporâneos quanto num filme de beisebol: há um tempo determinado para realizar uma tarefa (como adianta o título), um conjunto de regras rígidas estabelecidas de antemão, e a força do drama se medirá pelo grau de intensidade e de imprevisto possível no interior dessa configuração inicial. Qual será o resultado de cada encontro? Por quanto tempo os personagens sustentarão o olhar diante do outro?

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À primeira vista, os Dardenne tinham em mãos um dispositivo perfeito para exercitar seu melhor cinema. Nunca um filme da dupla havia tido tantas chances de se concentrar no essencial, fazendo do embate entre os corpos no interior do plano – que irrigava as melhores sequências de filmes fracos como A Criança (2005) e O Silêncio de Lorna (2008) – seu compromisso primordial. Enquanto um filme como A Promessa não se contentava com a querela moral e precisava multiplicar seus conflitos no choque de gerações, relação com a alteridade africana, nas contendas familiares, na diferença de cosmologias, Dois Dias, Uma Noite parece despido dessa vocação ecumênica e totalizante, podendo se ater ao exercício de um drama menos ambicioso (e, por isso mesmo, potencialmente mais intenso).

Essa promessa inicial, no entanto, é inteiramente negada no decorrer do filme. Sequência após sequência, acompanhamos o desperdício sucessivo das conquistas mais preciosas do cinema dos Dardenne, num movimento vertiginoso em direção à banalidade. A primeira delas é a dissolução de uma superfície formal que chegou a ser sólida e potente em algum momento da carreira dos diretores, mas da qual só restam algumas marcas de grife: a recusa ao campo/contracampo já não é mais tão contundente (as sequências a bordo do carro dão conta disso); a câmera já se permite uma distância média, que resulta numa sobriedade insossa; a crueza já cedeu espaço para interlúdios musicais perfumados dignos de um Xavier Dolan.

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Para além dessa superfície, a ausência mais significativa é a de um traço dramatúrgico que era realmente distintivo: a construção de personagens moralmente ambíguos, pragmáticos e inocentes, desesperados e também cruéis (Lorna, o pai que vende o filho em A Criança), que faziam da posição do espectador um lugar frequentemente incômodo e irresolvido. Se o ato imoral de Rosetta colocava para o espectador uma questão e tanto (passada mais da metade de um filme em que a protagonista parecia uma lutadora acima de qualquer suspeita), em Dois Dias, Uma Noite não há nenhuma oscilação, nenhuma colocação em crise da personagem principal. O sentimento do espectador em relação a um protagonista dos Dardenne nunca foi tão homogeneamente o da pena: como se não bastasse estar em vias de perder o emprego, Sandra ainda sofre com uma grave depressão e com o medo do desamor do marido. O longo processo de redenção que marcava a trajetória de Bruno em A Criança já não precisa mais acontecer, pois não há o que redimir: o inferno são os outros, apenas os outros. A compaixão tornou-se obrigatória e irrestrita.

Quanto menos os patrões (os únicos inimigos) aparecerem, melhor: diante da perversidade, a covardia da elipse, como na recusa a filmar o assassinato de Claudy em O Silêncio de Lorna. Quanto mais candura e fragilidade psíquica o over-acting de Marion Cotillard conseguir expressar, melhor ainda: a silenciosa Lorna já falava pelos cotovelos, mas Sandra profere frases lapidares como “Eu não existo, eu não sou nada”. Um elogio frequente aos primeiros filmes era o de que os Dardenne filmavam personagens “humanos” (seja lá o que isso queira dizer). Sandra passou de fase: não é mais um ser humano, mas um repositório de dó.

Os Dardenne perderam a chance de desenvolver um território cinematográfico de maneira vital e não optaram por nenhum caminho alternativo digno de interesse. Perdeu-se o que havia de mais forte a troco de um dramalhão cada vez mais carola e covarde. Como seus primeiros personagens – que não precisavam apertar o passo porque estavam sempre correndo –, Jean-Pierre e Luc Dardenne seguem a passadas largas e contínuas rumo à mais completa insignificância.

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