Sniper Americano (American Sniper), de Clint Eastwood (EUA, 2014)

março 1, 2015 em Em Cartaz, Filipe Furtado

AMERICAN SNIPER

Um olhar
por Filipe Furtado

Quando se pensa na obra de Clint Eastwood, retorna-se com frequência ao seu momento de consagração maior no começo dos anos 1990 com Os Imperdoáveis (1992) e Um Mundo Perfeito (1993). Se algo os aproxima é ambos serem filmes de viagem estruturados sobre a relação de um homem mais velho (que há muito internalizou um mundo de violência) e outro jovem; são viagens pedagógicas sobre a aspereza do mundo, o homem mais experiente deixando uma lição mesmo que incapaz de cumpri-la ele próprio. Sniper Americano é uma retomada desta veia pedagógica na obra de Clint Eastwood. Não há aqui, porém, uma estrutura tão clara quanto nestes filmes anteriores, já que Sniper Americano majoritariamente dispensa de personagens. Há somente a figura de Chris Kyle e um olhar sobre o mundo que ele internaliza e representa.

Que Chris Kyle seja uma figura real e que o palco no qual ele coloque tal olhar em prática seja o evento dominante da vida pública norte americana dos últimos dez anos explica as opiniões inflamadas sobre o filme. Diante de tal material, espera-se um posicionamento direto e claro (e, em particular junto ao espectador dito de esquerda, uma condenação inequívoca) ao qual o filme está pouco interessado.  Sniper Americano está menos preocupado em comentar sobre a trajetória de Chris Kyle do que dar-lhe corpo e permitir que ela exista. Diante de tais discussões, é interessante observar que, se existe uma recorrência dramatúrgica ao longo do filme, ela se dá justamente sobre a ideia de terceiros prontos para projetar sobre Kyle outros olhares. A repulsa ou admiração, porém dirão mais sobre o desejo de projeção do espectador do que ao filme em si. Para Sniper Americano, o que importa é permitir que sua versão de Chris Kyle possa apenas ser. Num contexto de excessiva dualidade ideológica, em que  o recurso de caricaturar o outro se tornou o padrão, não poderia existir gesto político mais radical. Quando se pede do filme uma condenação, um olhar de desencanto ou laudatório, ele responde com curiosidade e empatia. “Eis uma visão de mundo que existe e com o qual uma parcela expressiva do país se identifica, mas que nós artistas ignoramos ou apresentamos somente de forma grosseira e caricatural”, o filme parece dizer.

E que olhar é este afinal? O Chris Kyle do filme é um homem de ação, predisposto a soluções práticas e diretas, alguém que desde a infância recebeu do pai a ideia de que o mundo é divido entre cães de guardas e lobos e é seu lugar proteger o outro. Alguém para quem a arma é tão natural quanto a intervenção violenta. É toda uma visão do mundo que serve perfeitamente para ser canalizada dentro do universo militar com toda sua cultura masculina de tarefas e ordens, de violência sempre que se julgar necessário, de unilateralidade de ação. Chris Kyle é um homem de ação em busca de uma missão e o exercito americano esta pronto para lhe oferecer uma. Sniper Americano não é a primeira vez que Clint Eastwood se voltou para este meio, que ele já retratara com respeito e cuidado em O Destemido Senhor da Guerra (1986). Naquele filme, ele interpretava um sargento do exército, veterano das guerras da Coreia e do Vietnã, que dedicara a vida aos marines e recebia a missão de preparar um grupo de jovens desajustados para combate. Era um filme divido em duas esferas claras: o esforço do sargento em imbuir os jovens do mesmo espírito que guiou a sua vida e os efeitos dele sobre a mesma, nas sequências em que se relaciona com a sua ex-mulher.

O Destemido Senhor da Guerra foi acusado à época de ignorar o contexto da invasão americana a Granada, como Sniper Americano agora é acusado de ignorar o contexto por trás do Iraque. Clint Eastwood é um artista conservador numa época em que o simplismo ideológico carrega o termo de conotação negativa e ignora a sua complexidade. É confortável, afinal, tachá-lo de republicano, como se isso por si só garantisse sua inferioridade. Ou, no movimento inverso, entre seus admiradores mais à esquerda frequentemente opera-se uma tentativa de resgatá-lo de si mesmo: como a cultura de violência americana é, junto à sua própria imagem, a presença mais constante na sua carreira como cineasta, e como Eastwood sempre a observou a partir de um olhar crítico, e como nos delírios caricaturais de certa esquerda todo conservador é um troglodita sanguinário, busca-se concluir que ele não o seja. Mas se Will Munny declara que é difícil matar um homem, Os Imperdoáveis também lhe permite assumir sua função de anjo vingador uma última vez antes de ter seu descanso. Se Sniper Americano é um filme conservador, assim também eram Sobre Meninos e Lobos (2003) e Os Imperdoáveis. E se trata-se de um filme anti-guerra, isto se dá por acreditar que o custo físico, psicológico, moral e espiritual sobre cada soldado americano participantes da invasão ao Iraque é alto demais para justificar os motivos políticos que levaram a ela. Os iraquianos e os efeitos da ocupação sobre eles são totalmente incidentais a esta conclusão, não porque Eastwood divida a completa falta de empatia do seu protagonista (trata-se, afinal, do autor de Cartas de Iwo Jima, um filme que por sinal tem muito em comum no seu foco na experiência de combate do soldado com este aqui), mas porque na hora de fazer escolhas opta por se ocupar dos seus.

É útil colocar Sniper Americano lado a lado com The Hurt Locker (2008), da Kathryn Bigelow, o outro grande filme americano sobre a ocupação do Iraque. Ambos se constroem através das idas e vindas entre o lar e a guerra (com espaços mais equilibrados aqui) e como uma série de tarefas e missões práticas que precisam ser executadas por seus protagonistas. Ambos procedem em transformar o Iraque num espaço abstrato que serve de veículo para um olhar sobre a Guerra mais do que sobre esta guerra (algo mais complicado em The Hurt Locker pelo seu gosto pela reportagem e os detalhes específicos que decorrem dela). Seus protagonistas, porém, não poderiam ser mais distantes. Jeremy Renner em The Hurt Locker é a essência de um personagem de ação, ele existe para ela, é justificado por ela, a guerra existe para ele como forma de colocar este desejo pela ação em prática – e não é acidental que Bigelow e o roteirista Mark Boal lhe dêem uma função reativa como a de desarmador de bombas. Caso fosse um atirador como Chris Kyle, seria difícil não encarar o filme como sendo sobre um homem que mata pelo prazer de matar. Já o Kyle de Bradley Cooper é um veiculo ideológico e sua presença sempre se justifica por um discurso: ele está ali para proteger os demais soldados, assim como o seu país invadiu o Iraque para proteger seus cidadãos. Cooper se justifica o tempo todo, e, no processo, vai aos poucos se fechando sobre si mesmo, incapaz até mesmo de se relacionar com os homens que quer proteger.

Se o mundo de The Hurt Locker tem a riqueza de detalhe da observação jornalística, o de Sniper Americano é estreito e seco. Caso seja verdade que o filme não encontra tempo para desenvolver os iraquianos que Kyle encontra, o mesmo pode ser dito dos soldados que lutam ao seu lado: nenhum dos homens do pelotão de Kyle registram como mais que corpos funcionais em cena, prontos para serem acionados de acordo com as necessidades da narrativa. É uma opção que torna o filme mais rarefeito do que habitual na obra do diretor, mas que faz sentido, dado o papel de discurso na sua construção: o mundo de Sniper Americano segue a lógica da abstração da ideologia.  É este encontro entre um olhar abstrato de ideias com a ação prática das missões do pelotão que anima as sequências iraquianas de Sniper Americano e permite ao filme extrair delas muita força – em particular na sequência do resgate, na qual todos os vários conflitos e responsabilidades de Kyle são postos em primeiro plano e dirigidos por Eastwood como uma ação de notável transparência, mesmo que envolta numa tempestade de areia.

Por outro lado, se Sniper Americano tem seus limites, eles se dão não no campo de batalha, mas nas sequências passadas no Texas, em particular na segunda metade. São limites que têm muita relação com os dos outros filmes tardios de Eastwood. Penso ser possível dividir sua obra em três períodos identificados com seus três diretores de fotografia: Bruce Surtees (que filmou a maioria dos seus filmes até O Cavaleiro Solitário, de 1985); Jack Green (entre O Destemido Senhor da Guerra e Cowboys do Espaço, de 2000) e Tom Stern (desde Dívida de Sangue, de 2002). Os filmes com Surtees têm um tom direto e prático e um gosto pelo reminiscência que os aproximam do ideal de classicismo com o qual Eastwood é frequentemente associado de forma questionável. Com Green, soma-se a isso uma acentuação na presença física e num peso do mundo. Na última pouco mais de década, porém, a filmografia de Eastwood se torna mais simbólica e demonstrativa, seu gosto pelas sombras se acentua e envolve cada gesto com um peso extra. O próprio Eastwood quase desaparece como presença na frente das câmeras, mas sua mão de autor se torna cada vez mais notável. Os filmes com Stern são os menos variados da sua carreira de diretor, pois, independente do material, busca-se acomodá-lo na mesma zona de conforto estética. Não se trata de um julgamento de valor (Sobre Meninos e Lobos, Cartas de Iwo Jima, Gran Torino e Além da Vida me parecem estar entre o que ele filmou de melhor), mas uma observação sobre um processo que tem suas vantagens e limites.

As cenas domesticas de Sniper Americano carregam essa qualidade demonstrativa: cada ação e gesto são isolados de forma a reforçar os efeitos da guerra sobre Kyle (e a repetição incessante dos detalhes que reforçam os transtornos pós batalha do protagonista aos poucos minam sua força). Comparando os momentos entre Eastwood e Marsha Mason em O Destemido Senhor da Guerra com cenas similares aqui entre Bradley Cooper e Sienna Miller, é notável como existe uma força dramática no filme anterior ausente aqui. Saímos de cenas que exibem todo um peso de uma relação desgastada para outras que repetem a mesma ideia. Há momentos fortes que atestam para os poderes de observação de Eastwood, como o encontro entre Cooper e um veterano que ele salvou, nos quais a função simbólica termina em segundo plano em relação à presença física dos atores.

A tensão entre a experiência fulleriana do campo de batalha e o desejo do filme de existir no campo das ideias é carregada para as sequências texanas mais na maneira como Miller precisa reagir à presença constante dos lembretes da guerra. Por outro lado, o desinteresse de Sniper Americano por personagens e dramaturgia – muito bem canalizado pela natureza de tarefas nas cenas do Iraque – fragiliza boa parte das sequências finais do filme, com a recuperação de Kyle tendo uma qualidade protocolar. Há uma possível boa ideia ali, do homem cujo trauma é vencido ao recuperar a empatia, que não se sustenta, porque a vida familiar de Chris Kyle pouco interessa. O filme se recupera na cena final, com as imagens do enterro do verdadeiro Kyle, que servem menos para reforçar a veracidade do relato do que demarcar a passagem definitiva do seu protagonista à condição de mito histórico – algo já previsto na maneira como ele e seu duplo iraquiano existiam tanto como supereficientes atiradores, e como bichos-papões que eram ainda mais eficazes em sugerir o medo nos adversários. As honras militares ganham ares espetaculares e Chris Kyle, que perfeitamente internalizara sua visão de mundo, completa seu destino e vira história.

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