Um Suburbano Sortudo, de Roberto Santucci e Marcelo Antunez (Brasil, 2016)

setembro 1, 2016 em Andrea Ormond, Cinema brasileiro, Em Cartaz

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Ascensão e glória das Moneychanchadas
por Andrea Ormond

À primeira vista, Um Suburbano Sortudo (2016) é apenas o feijão requentado da franquia Até Que A Sorte Nos Separe. Talvez seja realmente e talvez Roberto Santucci atravesse uma crise de criatividade (?) ao inventar outro personagem pobre que ganha uma bolada em dinheiro e perde e ganha na mesma proporção em que se alimenta de lições pseudoedificantes. Mas um minuto, senhores, apenas um minuto da sua atenção: Santucci poderia estar roubando, poderia estar matando. Em vez disso, trouxe essa novidade para diverti-los. Se o passageiro tiver vontade de saltar do ônibus no meio da Avenida Brasil, se ao voltar para casa sentir-se ludibriado, ninguém se importará muito. O protagonista-camelô Denilson (Rodrigo Sant’Anna) é metalinguagem pura. Vende DVDs piratas, comporta-se, em essência, como o próprio cinema do seu criador: fácil, ingênuo e certo de que, no final das contas, existe um jeito para tudo. Menos para a morte, diria a vizinha fatalista da casa de vila em Madureira.

Se Até Que A Sorte Nos Separe era a crônica de um Brasil pujante, eis que Um Suburbano Sortudo já descobre o país em crise. E um Rio de Janeiro novo, pré-olímpico, repleto de badulaques cosméticos. Na pior das hipóteses, pensamos o seguinte: no futuro, aquelas cenas documentarão a cidade em transformação. Mais ou menos como o deslumbrante passeio de Anecy Rocha, no final de Brasil Ano 2000 (1969), documentava uma Barra da Tijuca linda e árida. Felizmente o filme vai além e, mesmo surfando na repetição, realiza outras anotações a serem lembradas daqui a trinta anos. Todas operando em um terreno simbólico duvidoso, estereotipado. Vejam, por exemplo, o cineasta Olavinho Salles (Fábio Rabin), autor de um filme intitulado Urubus Ao Redor. Eu sei, eu sei, dá vergonha alheia. E a cantora Clara Gavião (Giulia Gamba), autora de composições esquizoides e autorreferenciais. Coroando o abacaxi, piadas sobre puns, arrotos e até uma cena esquisita em que Denilson começa a se querer para a mocinha Sofie (Carol Castro), em cima de uma laje, alisando os próprios mamilos.

Denilson ganha a sua tradicional bolada por ser filho não-reconhecido de Damião (Stepan Nercessian), magnata dono de uma cadeia de lojas de eletrodomésticos. Damião bate as botas e deixa as duas ex-esposas e os enteados sem herança, legando tudo ao único filho. Uma das enteadas é Sofie; o outro apadrinhado, Luiz Otávio (Victor Leal). Cria-se imediatamente a ideia de que existirá ali uma luta de classes, muito de araque. E, como em boas lutas de classes de araque, os pobres não a percebem, até que os ricos (na verdade, os “esclarecidos”) insistam e chamem atenção sobre ela.

A crítica social (não, não vou ficar colocando aspas em tudo, não sou o vilão de Austin Powers. Se não até a palavra filme teria que vir entre aspas) evolui para uma tentativa de esculhambação generalizada dos intelectuais da Zona Sul, dos cineastas exploradores da miséria alheia, que ganham duvidosos prêmios internacionais, e até do psicologismo de botequim. Poderia ser engraçado, mas não é. É chato, desinteressante. Rodrigo Sant’Anna funciona a meia-bomba na TV, no Zorra Total. No cinema, piora e parece querer imitar Leandro Hassum, achando que Hassum é paradigma.

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Outra coisa além de chato e desinteressante? Sim: político. São filmes essencialmente políticos, essas comédias de Santucci (sempre apoiado nos roteiros de Paulo Cursino e agora co-dirigindo com Marcelo Antunez). Vislumbra-se toda uma ciência, toda uma vontade de chancelar padrões. E digo mais: de liberal ou progressista não têm nada. É política reacionária, travestida de fantasia. “Salve o capital vendendo mais barato”, o juízo definidor da reviravolta de Denilson, mantém intocado o status quo. Ou a eterna incompetência de Tino em Até Que a Sorte Nos Separe ou a histeria fútil de Alice em De Pernas Pro Ar… A moral da história é igualmente a mesma: conforme-se, aprenda a jogar o jogo. Como escreveu Raul Arthuso, no ensaio Jean Claude Bernadet e as comédias (16/07/13): “O cinema ‘popular’ passa a refletir a visão dos donos do dinheiro e do poder, afirma e consolida a consciência da classe abastada, institucionaliza os valores conservadores do bem-estar social, ironizando alguma coisa aqui, dando voz a outra coisa ali (a mulher empreendedora), mas no fundo mantendo a roda girando nos eixos”. Ou como escrevi sobre De Pernas Pro Ar (11/03/13): “Filmes que propagam os valores de uma ilusão classista, de um way of life a ser almejado. Nada mal para quem gosta de acusar o cinema brasileiro de não se entender com a plateia. Não só se entende, como educa os sonhos”.

Existem, notem, centenas de opções existenciais a viajar para os Estados Unidos, lucrar desmesuradamente ou buscar uma redenção financeira através de golpes de sorte. Os filmes, no entanto, sempre operam na mesma frequência, sempre batem na mesma tecla, tal qual aquela brincadeira que as crianças fazem na infância, de ligar dois rádios na mesma estação e criar ilusória sensação de potência sonora.

Tanto Até Que a Sorte Nos Separe quanto Um Suburbano Sortudo acabam acertando onde nem imaginavam: a representação dos noveaus riches é tão exagerada e exuberante que soa inteligente. Da mesma forma os personagens suburbanos, estes habitantes de um sacrossanto território carioca, dialogam tranquilões com seu próprio público. Afirmo isso tendo calafrios ao lembrar do subúrbio de Billi Pig (2011), em que os arrabaldes cariocas pareciam morar em Campinas. Diferente do que a maioria dos cariocas pensam, ser carioca não é nada demais e está longe de ser um estado encantado de espírito, mas compreender aquela geografia sempre rendeu bons frutos ao cinema brasileiro. No meio de piadas ridículas, Santucci e suas criaturas, ora vejam, compreendem o alegórico suburbano. Palmas para eles. Mesmo que o cineasta-bobo Olavinho Salles tenha sotaque paulistano, marcando a espúria diferença entre os que nasceram à luz dos deuses e os que não vão para o céu jogar frescobol. Fica o preceito: esperto, mermão, não é quem dirige filme cult. Esperto é quem dirige as comédias de moneychanchada.

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Antes das palmas, uma última querela: gostar de moneychanchadas não é feio. Cada um na sua, mas com alguma coisa em comum, já dizia o entendidíssmo anúncio do cigarro Free. Apenas compreendam que são obras vinculadas a um ideário. “Falsa consciência” – cabem aspas marxistas – na veia. Uma espécie de manual para o oprimido sonhar-se opressor ou a crença de que através da conformidade e segurança (e do consumismo) construiremos liberdades. “É preciso esperar o bolo crescer para depois dividi-lo”, já dizia Delfim Netto quando era um jovem ministro da Fazenda, no início dos anos 1970. Os bolos cresceram, rios de dinheiro correram e os de sempre ficaram para trás. A frase era um engodo.

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