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O novo ópio

No 17 de junho de 1989, uma noite agradável de outono, a Rede Globo apresentava no Supercine, 21:45, o filme Chuva de Milhões (1985). Dirigida por Walter Hill e estrelada por Richard Pryor, a comédia encaixava-se perfeitamente no gosto da criançada da época. Mas duvido que, naqueles tempos dos aparelhos de TV escassos e pais vigilantes, muitas crianças tenham adiado o sono para darem boas risadas. A Globo (sempre) foi esperta e reprisou o filme na tarde do emblemático 1 de janeiro de 1990, no Festival de Férias. Aposto um pogobol com os leitores como foi, nesse alvorecer da década, que muitos trintões e quarentões de 2016 tiveram seu primeiro contato com a história. O filme voltaria a ser reprisado outras quatro vezes nos anos seguintes, ajudando a formar milhares de personalidades. Nem tanto igual a Férias Frustradas (1983) ou Curtindo a Vida Adoidado (1986), mas o suficiente para ressurgir de vez em quando em sessões plocs ou conversas de marmanjos nostálgicos.

Chuva de Milhões é a aventura do sujeito que, para herdar uma fortuna, precisa gastar 30 milhões de dólares em um mês. Curioso que fosse, na verdade, a nona refilmagem de um romance de George Barr McCutcheon, escrito em 1902 e adaptado para o teatro. Mais curioso ainda que a Globo exibisse também, com certa constância, outra das adaptações, a de 1945, dirigida por Allan Dwan e intitulada, em português, Chutando Milhões. Em Chutando…, o personagem era mais modesto, precisava torrar somente 1 milhão de dólares para herdar a fortuna do parente.

Moneychanchada virou um assunto seríssimo no Brasil dos anos 2010. O culto ao dinheiro substituiu o velho culto ao sexo, solapando grande parte daqueles filmes do final do século XX para uma antiguidade de fraque e espartilho. Olhamos o desejo de um David Cardoso, as coxas da Helena Ramos e pensamos como eles pagavam as contas no final do mês. Antigamente, no cinema brasileiro, poucas pessoas trabalhavam e ninguém falava em negócios. Digo, da tela para dentro. Hoje a Clara de Aquarius é um portento imobiliário, o Tino de Até Que A Sorte Nos Separe já engoliu três venturas e o gozo é monetário. Você pode ter posições inteligentes – como Clara – ou ser um néscio, como Tino. Mas enfia a mão no bolso e financia.

Então juntamos uma dose da memória afetiva de priscas eras, a ânsia pela liberdade financeira e temos os paradigmas das moneychanchadas. Claro, é preciso temperar com outros caldos: o melhor deles, até agora, tem sido o naturalismo carioca. Nada mais hábil: se alguns argumentos vêm do cinema norte-americano – Até Que a Sorte Nos Separe 2, por exemplo, era Férias Frustradas em Las Vegas – ao menos nota-se um esforço de aculturação. Seriam terríveis os filmes caso não dialogassem com nosso humor popular, nossos chistes, os valores da nossa gente – desculpem pela frase demagógica, ufanismo de corar Darcy Ribeiro. Tô Ryca!, de Pedro Antônio, é tudo isso e, sem querer querendo, consolida o estado da arte para um subgênero que o cinema brasileiro aperfeiçoou nesta década, mas que encontra ancestrais tão remotos quanto O Bolão (1970) e Como Ganhar Na Loteria Sem Perder a Esportiva (1971).

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O maior dos achados de Tô Ryca!, me parece, foi a escolha de uma protagonista feminina. Alice (Ingrid Guimarães) já comandava a massa em De Pernas Pro Ar, mas era uma fulana classe média, moradora da Barra da Tijuca, cercada de outras beltranas da mesma estirpe. Selminha “SOS” (Samantha Schmutz) é frentista de posto de gasolina, criatura tão suburbana que poderia estar em um livro de Marques Rebelo. É pajeada pela amiga Luane (Katiuscia Canoro), espécie que, no incorretíssimo interior paulista, seria logo tachada de “loura de sítio”. Ambas já disseram “presente” no Zorra Total; e Samantha segue a escola de interpretação de Leandro Hassum: grita, grita e grita histericamente. A diferença é que acaba tendo um timing competente dos gritos, enquanto Hassum, no segundo minuto, já não convence. Piada é respiração, pausa e concentração, ensinaria Costinha. Katiuscia Canoro, por outro lado, é um achado. Comediante sóbria, expressiva e elegante, lembra uma Berta Loran quando jovem. Embora não tenha nascido no Rio, como Samantha Schmutz (que é niteroiense), Katiuscia capta bem a atmosfera do arrabalde carioca. Pois o subúrbio não é só graça; é também desencontro e melancolia. Coloquem Gente Humilde para tocar, por favor.

A dupla vive pendurada em vans suarentas, levando foras de galãs de botequim, até que Selminha ganha a herança do tio. Ganha, um catzo: primeiro tem que gastar os 30 milhões em um mês, para herdar 300. Aqui entra mais um ingrediente na receita das moneychanchadas: o aspecto catártico. Noto que, nos últimos anos, quase todos os filmes brasileiro que “mobilizam” o público guardam na manga esse trunfo da exacerbada catarse. É o justiçamento, bebê: Capitão Nascimento fazendo strikes, Jéssica passando no vestibular, Clara metendo a mão no cupinzeiro, pobre lavando a burra. Deus e o Diabo tardam, mas não falham.

A catarse de Selminha é gastar o dinheiro que ainda não lhe pertence. Fácil concluir que ela, na verdade, está encenando uma vida de classe média remediada, porém assalariada, nunca de milionária. As extravagâncias que comete (passear de barco, hotel cinco estrelas, bancar uma noitada com DJ) estão ao alcance de qualquer espectador do Shopping Leblon, pelo menos uma vez na vida. Jogar no cassino do Hotel Conrad, em Punta del Este, é programa comum de coxinhas brasileiros. Até um salame gigante Selminha compra no supermercado. Val Marchiori nunca compraria um salame gigante. Não dá para entender porque a SOS simplesmente não pega um voo de primeira classe da Emirates Airlines e vai queimar, em desfavoráveis dólares, euros ou libras, os valores do montante.

Falei em Val Marchiori e lembrei da imposição de Mulheres Ricas. Uma vinheta curiosa acontece quando a hostess da boate diz que Selminha não tem sobrenome. Então ela desenha o percurso da catarse, puxando uma mala de dinheiro, pagando a conta dos frequentadores e gritando que tem um sobrenome: Silva. Italianos, libaneses, suburbanos: nome e tradição, no país, são algo que se forja (ou amaldiçoa) rapidamente através do dinheiro. É um dos únicos momentos em que o roteiro flerta com o imaginário da alta classe. Com a vilania burguesa. De resto, esquematismos quase infantis, de anedota. Mulheres Ricas são Cozete Gomes, Regina Manssur (o dinheiro brasileiro é o dinheiro de São Paulo). Tô Ryca! chega, no máximo, ao deslumbramento farsesco do “Rei do Camarote”. Caricatura de status, não realidade. Insone das madrugadas, o sujeito sozinho na quitinete do Méier, assistindo ao Amaury Jr., deve pensar exatamente como Selminha. “Viver bem é comprar dois fuscas”, disse certa vez um transeunte entrevistado no Jornal Nacional.

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Seguindo o rastro de Chuva de Milhões, Selminha se candidata a um cargo público – prefeita do Rio de Janeiro –, maneira óbvia de incinerar a fortuna. Nesse meio tempo briga com Luane, sente-se sozinha na suíte presidencial do hotel. Não é mulher ryca, corre riscos – não sei se me faço entender. Por ser um elemento externo à riqueza, mas dispondo dela, Selminha vira Coringa, vira Exu. O Coringa não é a carta do baralho que substitui qualquer outra. É a carta que relativiza as regras. Selminha SOS tem como adversário o político profissional Falácio Fausto (Marcelo Adnet). “Mulamba, mulher, mulata”, Falácio assim define Selminha para a imprensa. Faltou dizer que ela não “mereceria” ser estuprada. As cores do candidato são o verde e amarelo; seu discurso é o conservadorismo. Selminha candidata-se em vermelho e laranja. “Você parece um gari”, solta Falácio durante o debate que realizam.

Nada parece à toa, como podemos deduzir. E por buscar um diálogo com a atualidade palpitante, com o cotidiano, é que Tô Ryca! distancia-se da inspiração na história de George Barr McCutcheon. Arrisco dizer que, das três adaptações a que assisti – contabilizam-se mais de dez – a brasileira parece a melhor. Assevero isso sem ilusões, ou hipocrisias de Policarpo Quaresma. Não tenham vergonha de gostar do filme; mais divertido que um Festival de Férias no verão de 1990. O grande problema das moneychanchadas é, sempre, o efeito colateral. Saindo do cinema e nos dirigindo ao ponto de ônibus, eis que a catarse e o escapismo se desfazem. O espectador descobre que foi iludido: continua pobre. Enquanto sonhava, dezenas de oportunistas quebraram os porquinhos e fartaram-se no seu lugar. A moneychanchada, amigos, é o novo ópio do povo.


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