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As esquivas com Histórias outras

.49º Festival de Brasília.

Rosa (Yoná Magalhães) e Manoel (Geraldo Del Rey) correm. Eles estão de mãos dadas; numa paisagem sertaneja, áspera, inóspita, quando ambos os personagens, logo na sequência escolhida como a abertura de Cinema Novo, de Eryk Rocha, alcançam o clímax do célebre filme de 1964, de Glauber Rocha. A cena acontece, mas, calma, eles ainda não alcançaram o mar. Apenas fogem, já ao som de Villa-Lobos, escapam e precisam, urgentemente, sair dali, sair de si; e, em meio ao fôlego da fuga, ao longo do épico travelling final de Deus e o Diabo na Terra do Sol, a montagem entrelaça outras tantas cenas antológicas do período que o título evoca. Em comum, outros personagens a escapar, outros corpos, jovens, em movimento. Há uma urgência, que pulsa. Eles correm sozinhos, e corremos com cada um. Corremos com o encanto saboroso desses sutis delineamentos do tempo, dilatados, suspensos e revistos em detalhes, entre fotogramas minuciosamente restaurados, que reavivam, aos nossos olhos de hoje – intervalares das décadas históricas que nos separam daqueles segundos -, preciosas cintilações sensíveis que esses cineastas produziram.

Cinema Novo realça e aguça o prazer visual de cada plano que colhe, abriga e acolhe. É às retinas atuais, aos pontos de vista do agora, irruptivo, que o longa de Eryk Rocha parece conclamar. Seus gestos, suas rimas, seus raccords, imprevisíveis, súbitos, virtuosos, e plenos de derivas ímpares, são mais do que imagens potentes, pois realmente interpelam para um deleite de descobrir os melhores segredos de cada plano. Como não se entusiasmar, por exemplo, ao (re)ver uma delicada cena em que o Padre (Paulo José) se debruça sobre o dorso de Mariana (Helena Ignez) e vislumbra uma das suas mexas de cabelo sopradas pelo vento em O Padre e a Moça (1965), de Joaquim Pedro de Andrade? O silêncio da cena, tão densa ao longo da narrativa do filme, retém, no (re)corte de Eryk Rocha, as minúcias pictóricas, mínimas, delicadas, que pululam no quadro, antes de forma imperceptível, e, revigoradas, desdobram-se em novas curvas afetivas. Cinema Novo, o filme, ergue-se entre esses ousados derrapes, entre os riscos dos quadros que escaparam, ou escapariam, um pouco aqui ou ali, dos sentidos originais dos seus arquivos – como, num outro exemplo, quando Othon Bastos fita frontalmente a câmera, impávido, bruto e silente, imbuído das loucuras de Paulo Honório, em São Bernardo (1971), de Leon Hirszman.

Rocha opta por ficar perto e junto não apenas das cenas e sequências que seleciona e potencializa, mas também dos seus bastidores. Nesse aspecto, a pesquisa por arquivos de encontros e tertúlias entre os “principais” diretores do movimento que incitou o cinema moderno brasileiro é primorosa e coloca o espectador diante de ambientes leves, despretensiosos, como se ao descanso da câmera emergissem situações frugais. Nesses instantes, os “autores”, artistas e artífices do Cinema Novo engendram – num filme entre filmes – uma peculiar metamorfose: eles transformam-se em figuras; figuram como observadores e testemunhas oculares dos momentos históricos que construíram para si e para os outros. Figuram e fulguram como entes fílmicos de uma história genuinamente cinematográfica.

O curioso é que esse prazer das cenas revela o cerne do perigoso dilema que parece embalar cada sequência do filme – um paradoxo caro e inerente ao jogo que é entremeado por imagens de outros filmes, cenas encontradas e selecionadas. Um paradoxo do tal “mal do arquivo”. Se há, no debate sobre o uso de found footage, uma tensão sobre imagens distantes, num impasse ético que envolve um certo cuidado com a alteridade, em Cinema Novo vemos, flagramos e interagimos com arquivos que são próximos demais aos seus realizadores. Entre as sequências dos filmes do movimento, inserem-se imagens familiares, de bastidores, entrevistas a televisões, ou mesmo fotografias de um cotidiano geracional, centrado na Bahia e no Rio de Janeiro, que ficou conhecido historicamente como sendo o cerne do grupo. Essas cenas, suas imagens ou sons, mostram e realçam cineastas como Arnaldo Jabor, Leon Hirszman, Luis Carlos Barreto, Glauber Rocha, Paulo Cesar Saraceni, Gustavo Dahl, Cacá Diegues entre outros que foram considerados os principais intelectuais do movimento – intelectuais, guarde a expressão, que, embora já um tanto demodée, é certeira nos desdobramentos dos perigos dos arquivos. Pois bem, esses intelectuais foram, são e ainda continuam a pulsar como um grupo que lutou por uma hegemonia de um discurso histórico, por um local legítimo que reivindica para si um projeto único de país e de cinema, que já foi mais do que revisto e debatido, mas paradoxalmente, como uma estranha nuvem negra, parece não querer fazer sentido na montagem e no ensaio Cinema Novo.

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A proximidade, portanto, também opta por esse gesto esquivo de realizar o necessário vértice de crítica às heranças históricas e revela uma proximidade afetiva. Estendida, essa proximidade, de forma contraditória, revelaria um gesto de um diálogo mais direto com espectadores cinéfilos, que já conhecem aquelas imagens, e são rapidamente embalados e seduzidos pelo encanto das suas cenas, e seus cortes. Por outro lado, acabaria tanto por apresentar um novo universo e imaginário quanto também distanciaria aqueles espectadores que desconhecem totalmente os índices de tais cenas. Essa proximidade, de forma inevitável, deve ser apreendida como uma sintoma crítico que o filme nos apresenta.

Ao contrário do que aparenta, Cinema Novo não é apenas uma obra antológica de imagens. Ele articula um discurso histórico por meio de cenas, de sons, vozes, depoimentos de arquivo caros à época. Um olhar intruso e especulativo vai se tecendo no hiato que nos separa, aparta e vincula a cada imagem, ao mais remoto frame. Intruso, porque nos conduz ao meio das reuniões, dos encontros entre os jovens do Cinema Novo, em momentos em que eles curtem, como figuras pétreas, silentes e com movimentos mínimos, o vento que une o encontro físico (entre eles) ao encontro fílmico que, nós, outros de outro tempo, estabelecemos com ele. Se esta é uma viagem histórica das mais pulsantes que só o cinema realiza, ela também, de forma contraditória, revela-se como uma odisséia de mão única que sugere mais uma intrusão ao tempo passado do que um vetor que busca propulsar novos ventos históricos ao presente.

Revela-se, ainda no vértice da proximidade, uma filiação que é mais do que familiar, pois estaria ancorada numa herança geracional, moderna, que ainda deveria ser recuperada, lembrada, e muitas vezes ritualizada, ou mesmo celebrada. Ao final do filme, um letreiro compartilha que o Cinema Novo não foi, de fato, um movimento, mas uma ideia pujante sobre uma forma combativa e sem concessões de se fazer cinema. Um projeto moderno de cinema que foi amplamente disseminado. Uma ideia, aliás, de resistência, o que ficaria evidente diante das sequências que narram, entre sons de tiros e imagens que aludem às guerrilhas, ao momento em que o AI-5 foi estabelecido. O recorte a 1968, de onde o filme escolhe centrar as suas celebrações, acaba por apagar outras contingências, paradoxais, ora espúrias, progressistas ou mesmo ambivalentes, de diálogos reais, históricos e institucionais, que o Cinema Novo também traçou com os generais, políticos e empresários ligados à ditadura contra quem seus personagens, nos filmes, até os anos 1970, apenas apontavam suas armas, físicas ou imaginárias. O maior perigo das esquivas de Eryk Rocha é que elas evitam enfrentar as contradições daquele tempo. Paulatinamente, os arquivos revelam-se sem nenhuma dialética, sem nenhuma tensão inerente àquelas imagens, como se suas figuras, de tão puras, apagassem os fantasmas histórico-culturais, ou histórico-cinematográficos que ainda persistem em ecoar.

A filiação geracional também mostra-se vinculada à cinefilia e teria outros veios históricos, os mais canônicos e improváveis, que vão de Humberto Mauro, Mário Peixoto ao cinema de invenção. É essa ideia que Cinema Novo quer reavivar e nesse sentido as forças das imagens seriam formas de ilustrar a essência estética e política do movimento. É como ideia, atente, que Cinema Novo perde seu chão histórico, tão caro aos anos 1970 e aos arquivos das imagens que celebra e, assim, descola-se da sua materialidade para tornar-se um anseio afetivo um tanto vago e ideológico.

Aqui, o maior risco não é tanto criticar o movimento Cinema Novo, em si – algo que já foi feito e encontra-se relativamente consolidado – mas perceber como o filme se furta, de forma deliberada, de enfrentar o torpor negativo de uma certa herança do movimento que retrata. Foge-se das inquietantes revisões críticas feitas pelos intelectuais do Cinema Novo, que possuíam um cunho materialista e marxista, para entrar num âmbito da história das ideias, de verve hegeliana. E, de fato, ocorreria uma sublimação, caso não fosse evidente como a história é também feita de apagamentos de outros anseios discursivos. Basta lembrar e remeter, por exemplo, à forma extremamente negativa, perversa e feroz como O Pagador de Promessas (1962), de Anselmo Duarte, foi tratado pelo viés crítico dos jovens do Cinema Novo. Mais do que um “tipo de cinema” que foi ali criticado – ou mesmo uma imagem de país que ainda hoje precisaria ser revisada tanto às heranças cinema novistas como às da Vera Cruz – o filme de Duarte sobrevive a todas as empreitadas negativas do qual foi vítima. Diante dessas ferocidades, entre tantas outras que poderíamos remeter, Cinema Novo silencia-se, como se as imagens, e apenas o prazer das cenas, fosse suficiente.

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O jogo por uma hegemonia, na história, é permeado por injustiças e golpes baixos que, ao menos hoje, em pleno 2016, deveriam ser consideradas e levadas em conta. Uma simples menção imagética ao filme de Duarte e sua justa conquista da Palma de Ouro de Cannes tornaria Cinema Novo mais atinado às reações e contradições dos anos 1970 e, assim, as suas tantas filiações quedariam vigorosas e ousadas – já que, para ficar apenas com Walter Benjamin, o ato de rever e atualizar a história também impele, eticamente, a incluir a história das derrotas, as forças que foram sufocadas, as provocações perdidas. Embora um filme de memória não possa ser feito a partir dessas forças, percebe-se, infelizmente, que essas outras vozes da história foram nitidamente negligenciadas pelas opções de montagem de Cinema Novo. Diante desses dilemas, as imagens encadeiam, de forma randômica, uma série de perguntas extra-fílmicas mas intra-históricas, questões inevitáveis frente a esse movimento que continua sendo, sem dúvida alguma, o mais estudado, o mais (des)conhecido, oficial, influente e debatido momento histórico do cinema brasileiro. Ainda que seja hiper-arquivado, o Cinema Novo parece uma herança distante, muitas vezes circunscrita a um certo gueto cinéfilo. E esse gesto de dar corpo histórico a imagens com toda e nenhuma história revela-se curiosamente paradoxal. Emergem, portanto, indagações espiraladas. É possível, por exemplo, rever sem revisar? É provável que se reveja, se revisite sem, de fato, articular uma crítica anacrônica? É legítimo esquecer, de forma direta, os problemas do Cinema Novo com as concepções de povo, classe média e dos seus vínculos com o regime militar? Claramente, o filme, ao se permitir decolar pelo ensaio com os arquivos, e ao se esquivar dessas questões, não se propõe como um outro olhar histórico, macro ou micro, dos sujeitos e da geração que teceram aquelas sequências.

Toda a verve para e com o arquivo em Cinema Novo compartilha dos dois perigos inerentes às suas impressões temporais, tal como pensado por Derrida. Há, primeiramente, numa certa ontologia dos arquivos, um desejo de vencer a pulsão da morte e o fim, o derruir dos acontecimentos históricos. De forma contígua, por outro lado, emerge uma forma metafísica, essencialista e perniciosa de transformar uma história oficial num totem para devotos. Essa crítica à lida direta com os arquivos implica todo material histórico, de literatura, museologia ou mesmo dos arquivos cinematográficos. Curiosamente, a palavra e a noção agonística de arquivo está vinculada, de forma umbilical, ao vocábulo archeion, no grego, à casa como origem e objeto externo. Todo arquivo, assim, seria tanto uma extensão do privado ao público quanto uma forma de apropriação e anseio por um discurso unívoco à voz da história oficial. É por aqui, por outro lado, que o arquivo mostra a sua face patriarcal, já que seus jogos de força visam literalmente estender à oficialidade histórica aspectos privados, restritos a grupos, intelectuais, cineastas, críticos, curadores que optam, inevitavelmente, por tecer suas pulsões hegemônicas.

Cinema Novo acaba por homenagear sem criticar os patriarcalismos, históricos e ontológicos, que lhe foram legados – uma filiação extensiva, generosa e que opta por não rever – mais em termos de aglutinação do que propriamente revisão crítica – algumas das limitações mais evidentes do próprio Cinema Novo… uma filiação, de toda forma, um fio, uma herança retilínea, direta, que também resvalaria em tantos outros cinéfilos e cineastas brasileiros. Ao ser enfatizada como fundante, essa tradição essencializa-se e deixa à sombra outros anseios do mesmo chão, do mesmo contexto, e que, com tanta argúcia estética, acabam relegados ao lixo da história. As imagens, portanto, de uma revisão crítica do Cinema Novo ainda estão, latentes, à espera de novas montagens e articulações. Elas aguardariam imbuídas de um silêncio pétreo, à margem dos discursos já mais oficiais que inoculam Cinema Novo.


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