A hipótese de uma fissura

outubro 2, 2013 em Em Pauta, Juliano Gomes

manifestacoes

por Juliano Gomes

Em Julho passado, chego em casa e abro a internet pra acompanhar os desdobramentos de um protesto do qual estava vindo, contra a política de transportes do governo e prefeitura do Rio. Uma transmissão independente mostrava alguém que narrava, com voz urgente, a prisão de alguns manifestantes de maneira arbitrária pela polícia militar. Essa voz (nunca vi o rosto de quem fez esta transmissão) convocava a todos (a página na web dizia que éramos alguns milhares de pessoas assistindo àquele momento, mas ele também se dirigia a quem estava na cena) para irmos para a delegacia para onde os manifestantes estavam sendo levados. A delegacia estava a uns três quilômetros de distância de onde estava a transmissão. Durante os próximos dez ou quinze minutos, o que vi foi essa voz perguntando “onde é o bairro do Catete?” (tanto para dentro da cena quanto para fora dela, pois descobri, tardiamente, que se pode escrever ao vivo para quem faz essas transmissões e eles podem ler ali, em ato), e se dirigindo, com câmera em transmissão, para a tal delegacia.

O que via na verdade era uma imagem que me parece nova, ao mesmo tempo fluxo ininterrupto e, por outro lado, extremamente interrompida, intervalada, cortada. O “diretor” daquela cena concluiu, ao vivo, que a melhor maneira de chegar lá seria correndo e que iria fazê-lo gravando, caso algo acontecesse (filmar tornou-se, nesses dias, uma garantia, uma segurança ao contrário, reatualizando a câmera como uma arma, como sempre). Assim, a estabilização necessária do empunhar da pequena câmera – na verdade, de um aparelho celular – deixou de ser uma prioridade. O que importava ali afinal eram duas coisas: a continuidade e o presente.

Mas a imagem desse fluxo era provavelmente o que de mais abstrato já vi o jornalismo produzir. Estranhamente próxima à pedagogia da percepção de Brakhage, abriu-se ali uma espécie de ruptura em um registro que supostamente deveria informar, não deixar restos nem espaços sem forma. Afinal, este fluxo informe, de luzes intervaladas, texturas pixeladas, quase postes, quase pés, quase calçadas, confrontado com respirações ofegantes, passadas sintéticas e reiteração do pedido para que todos fossem também à delegacia pareceu instaurar uma espécie de desfuncionalização da imagem, ou mesmo de deslocamento de função, que propõe uma experiência bem singular nesse lugar de intermédio de onde essa imagem é projetada. Sem querer buscar uma ontologia da imagem na internet, da TV ou do cinema, houve ali uma instauração de um modo de atenção formado pelo cinema, convocado pela constituição daquelas imagens (não eram exatamente planos, pois a interrupção era cortada pela transmissão, suponho). Era talvez o ápice e o fim de uma ideia de fluxo através da imagem, numa inflexão “inorgânica” que se desdobravam em nome de um fim bastante específico: mostrar aquela situação de fato urgente, e proteger quem empunhava a câmera de também sofrer violência policial.

Porém, o que estava ali para ver e ouvir era, antes de tudo, uma imagem “insegura”, talvez nem mesmo uma imagem como tal, mas que permitia essa sensação do presente (não é isso que o cinema sempre desejou?), mas colocada de modo a sentirmos a extrema intensidade daquele momento de ocupação da rua, e de reescrita dessa. Nessa situação, suponho que a câmera teve que se afastar dos olhos. Não mais uma câmera que “vê”, mas que, acima de tudo, oscila e mostra rastros, entre o furor do movimento ininterrupto e as interrupções bruscas das imagens pré-cinematógrafo, abrindo um espaço anacrônico. Há uma chamada à ação, clara e reiterativa, localizada na superfície mais legível (portanto mais afeita a enunciados) do som, montada sobre essas imagens que não narram nada, imagens que desfiguram, em intervalos regulares (cada conexão deve gerar uma experiência de transmissão específica), que nasce de um modelo distinto daquele que liga, em continuidade, o olho humano e a objetiva. Trata-se então de não só um modo singular de figurar a rua, esse espaço qualquer, que metaforiza a cidade, mas afinal de senti-la e ocupá-la, de lhe insuflar imaginário, de furar a disputa que se dá sobre a imagem desse espaço (que atinge hoje um dos pontos de maior intensidade e que devemos acompanhar fatalmente nos cinemas no ano que vem, o possível contraplano do telejornalismo), violando-o, tornando-o espelho de um movimento próprio do corpo, concebendo uma imagem que parece obstinada (pois há uma finalidade específica da encenação que parece ignorar esse potencial abstrato do visual) e caótica como formulação.

Esse divórcio do próprio enunciado esbaforido que a acompanha parece criar uma imagem quase impossível de se ver, uma imagem literalmente que não vê, e, por não ver, narra a rua, narra a parte invisível da rua que é ativada justamente pela sua ocupação e uso. Não se trata aqui de uma nostalgia das disjunções do cinema moderno entre som e quadro, mas de uma insuspeita linha que se desenha entre aqui e lá, passando por fora da arte, para quem sabe ressituá-la – é somente essa dança que a mantém de pé. Pois o que se viola aqui é o primado de continuidade entre o olho e visor (é algo como uma ideia nas mãos, o que vemos; uma ideia das mãos), entre enunciado e imagem (o que vemos não pode sugerir nenhuma finalidade objetiva), entre o pré e o pós-cinema, causando uma metamorfose que solicita um olhar para o que se dá a ver como matéria, o que está ali como experiência sensível e bruta, e que solicita um regime de atenção típico do espectador cinematográfico, um olhar montador, que desequilibra as forças.

Essa entrada, sem pedir licença, no cinema parece apontar uma possibilidade de rachadura nos dois campos, de uma possibilidade de resistência abstrata porém afirmativa (não se trata de deriva aqui) na imagem, que expõe a fragilidade fundadora do telejornalismo (a vacuidade da imagem), e evoca um repertório de imagens do “cinema puro” (das vertentes que buscavam o específico pelo caminho do não-figurativo) dando-lhe uma posição veemente em relação ao mundo como imagem. Um registro longe da cabeça, do rosto, da identidade afinal, para uma espécie de composição semi involuntária do corpo movente, que registra somente os traços que decorrem deste trajeto durante aqueles minutos de tensão. Não é de um esvaziamento que se fala aqui, mas de uma composição de um modo, de uma imagem política no sentido hard (que almeja uma alteração específica dentro do espectro do sistema político e que narra um embate com as forças do Estado: polícia, delegacia, prisão) que cria comunidade, mesmo que fugaz, em torno de um gesto que se desdobra numa visibilidade que consegue representar esses cacos que compõem a rua e a cidade, essa cacofonia, numa síntese que viola os dois regimes que evoca (o jornalismo militante e a vanguarda). Daí, uma possibilidade de fuga e de invenção, de ressignificação da experiência sensível da cidade e de sua organização do que se pode ver ou não, naqueles poucos minutos, numa corrida à delegacia, com uma imagem urgente e inútil, propondo sua maneira de habitar a cidade como imagem (pois é neste terreno onde as maiores batalhas hoje travadas, especialmente no Rio), e da imagem com a cidade, como possibilidade de cartografia. Esse é o principal desafio que ela parece propor.

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