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Da tradição

.49º Festival de Brasília.

O início de Antes o Tempo Não Acabava, de Sergio Andrade e Fábio Baldo, retrata de maneira bastante descritiva um ritual indígena. A câmera solta, na mão, observa os detalhes do ritual, maneia os cortes entre corpos em movimento no espaço, revelando a locação, as pinturas e vestuários tradicionais, com planos fechados mobilizados pela ação do evento. Os personagens fazem uma poção, cujo teor exato desconhecemos, sabendo apenas que é ”muito poderosa”. Ao redor de homens mais velhos regendo o ritual, jovens índios, inseridos nesse jogo do qual não têm muito domínio. Nada podem fazer, a não ser participar.

Após os créditos iniciais, o cenário não poderia ser mais diferente: numa fábrica, um rapaz indígena anda pelos corredores, opera uma moderna máquina, participando de um ritual da produção capitalista. Filmado num ritmo de planos e temperamento de câmera contrastante com a descrição de elipses do início, num tempo mais disperso, silencioso em palavras – mesmo que barulhento – o choque entre o que se espera da personagem e o cenário é ressaltado, ao mesmo tempo que coloca o filme dali para frente em conflito com seu prólogo.

Estas duas primeiras cenas apresentam o fundamento que o título Antes o Tempo Não Acabava já expõe: um choque de tempos, como a música tribal cadenciada pelo trance dos créditos iniciais, quase incompatíveis, teimando numa mistura aparentemente impossível. É esse o conflito de Anderson (Anderson Tikuna), o rapaz da fábrica, em relação à sua tribo. Levando uma vida contemporânea em tudo diversa das expectativas locais, o rapaz quer se desvencilhar das tradições, obrigações e papéis de seu povo. Quer ser Anderson, e não um índio guerreiro.

Trata-se de uma trajetória arquetípica da narrativa ocidental (moderna?): o indivíduo (um novo tempo) desgarrado lutando contra a tradição, num ciclo perene de produção de convenções sociais de gênero, costumes de interação, nacionalismo e afins… um tempo que nunca acaba. Está em diferentes graus no Shakespeare de Romeu e Julieta (1597), no Joyce de Ulysses (1922), n’A Letra Escarlate (1850), de Hawthorne, no primeiro João Gilberto, no primeiro Manuel Bandeira, no Clint Eastwood de Menina de Ouro (2004). Este gesto de incompatibilidade entre Anderson e suas tradições indígenas, um problemas de tempos e ritmo, me parece o mais interessante em Antes o Tempo Não Acabava. É este residual de tradição e contemporâneo, coletivo e indivíduo, eterno e fragmento que este embate de tempos abre como flanco num painel inusitado quando pensamos no cinema brasileiro hoje, no qual a questão indígena é tratada no viés da terra ligado à identidade, enquanto aqui o ponto de vista é ligeiramente diferente. Assim, Antes o Tempo Não Acabava se volta para o corpo de seu protagonista e sua inadequação com os diversos espaços que frequenta, seja a tribo com a qual não se identifica mais, seja com a noite urbana, que deseja, mas não se adequa plenamente.

A personagem perdida entre espaços buscando retomar sua identidade não é simplesmente uma trama típica tradição versus novo no cinema brasileiro, mas tem um ancestral conhecido nos anos 2000: sim, ele mesmo, O Céu de Suely (2006). De lá pra cá, foram dez anos e o fracasso, o sujeito fraturado e as identidades se reconfiguraram num projeto de fluidez dos corpos e das tramas que criou um certo espírito, uma sensibilidade que aqui e ali deu sinais de potência. Muitas vezes, porém, esse projeto girou em falso e o próprio Karim Aïnouz dá mostra de seu esgotamento, aliando ideais do cinema contemporâneo de festival europeu com particularidades de regiões pouco retratadas numa sensibilidade meio universal-pop, meio Brasil-profundo. A câmera epidérmica, colocando o corpo como matéria de atenção do espectador; a negação da mise en scène como articulação do real em favor de uma encenação mais frouxa, buscando o transitório e o espontâneo; e a montagem elíptica encorpada por elementos da cultura popular, como canções pop ou brega, e espaços de sociabilização onde a classe média urbana – esclarecida ou não – nem sonha em pôr os pés, mas enxerga como “autêntico”. Com reconfigurações de tiques e acentuações, estas narrativas de inadequação se renovam de quando em vez, mas ainda sustentam seu parentesco distante.

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Antes o Tempo Não Acabava (2016), Sérgio Andrade e Fábio Baldo

Então, o lado curioso de Antes o Tempo Não Acabava é que, ao lidar com a ruptura da tradição, o filme fique no terreno do genérico. Se o prólogo e a primeira cena pós-créditos iniciais têm força exatamente pela potencialidade que o choque da linguagem pode causar ao contrapor temperamentos tão díspares de câmera e montagem, ritmo e encenação, o restante do filme está rendido ao esquema de planos entre o aleatório e o desleixo em nome da energia do espontâneo e uma montagem elíptica que tanto não narra quanto tenta esconder as fraquezas do drama. Pois, as figuras da tradição que perseguem Anderson encarnam o genérico que sua linguagem acaba por se tornar: o Velho Pajé, o ritual do guerreiro, a tribo, as tradições. Mesmo a personagem de Rita Carelli, que ganha importância nos últimos minutos do filme, não passa de uma figura que a atriz precisa se esforçar para transformar em personagem. Se Anderson é delineado por sua não-identidade que se quer identidade, tudo ao seu redor é rebaixado ao estado de presença – seu amante, a mulher da ONG, o pajé, a irmã – fazendo saltar o quanto este trama de individuação é o velho arquétipo tradição-versus-novo trazido a um contexto inusitado e a sensação inicial de desconforto logo pode ser decifrada. Como afirmou Fábio Andrade neste mesmo festival anos atrás “Importa menos o que nós vemos, e mais o tipo de coisa que parecemos estar vendo, pois são estes tipos que nos definem socialmente. Nada disso é excesso ou falta de cinefilia ou de contemporaneidade; é apenas a adoção da aparência como se ela fosse dotada de significado, dos procedimentos como bálsamo dos efeitos”.

A música é um caso notável: a mistura falsamente harmônica entre a música tribal e o eletrônico nos créditos iniciais apontava para o desconcerto da fábula, usando as cartelas como mais uma camada de narração a partir do som. Com o desenrolar da trama, a recorrência da música eletrônica vai se tornando um efeito de inadequação, reiterando sua presença fora de lugar naquele espaço urbano periférico do Norte do Brasil. Isso se dá até o momento em que Anderson, na beira do rio, faz movimentos coreografados que tomam seu corpo como se reconectado com uma tradição que pretende superar. A cidade está refletida nas águas do rio, enquanto pássaros cruzam o céu dando mais “brilho” para a cena, tudo isso ao som de uma música new age que poderia causar um ruído. Mas, em meio a esta coreografia feita para a câmera – mais uma vez a montagem elíptica esconde a intenção –, percebe-se que se trata de mais um momento no cinema brasileiro de música pop como acerto de contas de um personagem com si próprio. Digo isso, porque entre “as reconfigurações de tiques e acentuações” que falei anteriormente, os momentos de interlúdi(c)os com música como catarse das personagens, em diferentes intensidades, se tornaram uma constante, um clichê audiovisual. Metade dos longas e mais um bocado dos curtas do festival trazem cenas de “música para a câmera”. O caso mais marcante é Estado Itinerante, que, como aqui, traz a personagem se reconectando consigo mesma ao som de “Don’t Cry”, do Guns N’ Roses. Neste curta, é a violência catártica de uma espécie de renascimento da mulher se livrando de seu martírio de violência doméstica, que parece viabilizada pela canção. Até mesmo Malícia, de Jimi Figueiredo, um filme que vem de outro lugar, com outras referências, e que articula um sem número de clichês do cinema industrial, usa um momento de música – aqui com dança – para representar a intensidade emocional da personagem (e curiosamente, também envolvendo violência contra a mulher). A questão é que o recurso funciona, como todo o clichê bem executado. A significação, porém, está sendo franqueada como solução para situações diversas na camada do significante. A emoção existe, mas está no filme ou no meu reconhecimento da canção? É possível diferenciar nos casos específicos de cada filme, mas quando se começa a reparar que tanto De Pernas Pro Ar (2010) quanto Aquarius (2016) confiam a liberação corporal da personagem ao poder da música pop, tem algo aí.

Fechando o parêntesis (mas nem tanto), a cena na beira do rio, com música e coreografia, cumpre um protocolo dessa “sensibilidade de karaokê” que toma da música sua potência sem muito esforço. Se há uma catarse nesta cena, ela está mais no esvaziamento do conflito inicial, no ponto em que a dinâmica tradição-novo virou um refrão que ouvimos muitas vezes. Antes o Tempo Não Acabava se perde na não-identidade da personagem e isso permanece como a tônica do filme. Adotando um modo mais elíptico de narração, preenche a trama com generalidades, especialmente em relação à tradição. Sua recusa – ou incapacidade – de especificação leva a alguns mal-entendidos, como a suposta cura gay dos índios mais velhos e o desejo por um “nome de branco” do protagonista. Mais que a cultura urbana como solução para a personagem, o filme padece da generalidade dominante.

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Deserto (2016), Guilherme Weber

Com isso em vista, cabe um comentário sobre Deserto, de Guilherme Weber. Pois, entre os vistos em Brasília, talvez seja o filme que mais escape a qualquer das discussões que tentei propor nessa cobertura. Evidentemente, há o fato de ser um filme de estreia – e de um ator conhecido buscando uma voz. Mas há, também, algo interessante sendo proposto.

O filme acompanha uma trupe de artistas em seu périplo por um sertão árido e mórbido. Apesar de ser um cenário reconhecível na história do cinema brasileiro, o sertão do filme de Weber se quer uma fantasmagoria do espaço mítico do Cinema Novo no início dos anos 1960. Sua primeira cena se passa num terreno a perder de vista, cuja horizontalidade dominante só se interrompe numa árvore seca, cenário muito próximo do Esperando Godot (1953), especialmente na composição de Giacometti. Mas também não é Beckett: seu esvaziamento da linguagem do palco e especialmente da língua é o avesso do que faz Weber em Deserto.

O filme se ancora em referências do teatro e das artes plásticas, num repertório que destoa da cinefilia de boa parte do contemporâneo. É uma erudição rebuscada, que vai manejando frases, imagens, composições, apetrechos de cenário e um modo de encenação bastante coreografado. Citar referências aqui é trabalho inútil e diz mais sobre conhecimento do crítico partilhado pelo cineasta que do filme. A questão a se reter desse jogo é que, se Deserto lembra muitas coisas entre Hieronymous Bosch e Robert Wilson, ele o faz por um acúmulo rococó: o investimento está no detalhe – que muitas vezes escapa – até o limite do irreconhecível.

Mas a peculiaridade, no caso, é a retomada de uma tradição alegórica do cinema brasileiro. Claro, não é a mesma tinta alegórica que Ismail Xavier descreve em Alegorias do Subdesenvolvimento, mas há um gesto curioso em direção a não-personagens e não-lugares que serve a uma colagem de materiais visando falar da sociabilidade atual sem ir até ela. Vai-se ao sertão. É uma estrutura armada em torno da generalidade: as personagens de Deserto estão disponíveis a aceitar papéis sociais e reproduzir a fundação de um cidade perfeita no meio do nada, um lugar que não existe com pessoas que não existem. Tudo será feito, mas obedecendo tipos que dizem, em seus detalhes, alguma coisa sobre o Brasil de hoje. A estrutura é genérica, o específico é inusitado. Mas quando falo em específico, seria mais prudente usar o plural, já que, do plano mais corriqueiro à maquiagem mais ocasional, tudo em Deserto parece significar algo. A porca torce o próprio rabo e o rebuscamento libera uma verve para mais detalhes e mais detalhes. Em seu terço final, Deserto não só acelera – e as personagens começam a morrer e destruir toda a estrutura da cidade – como seu final aberto causa um estranhamento.

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A questão maior não é o controle ou o descontrole, a coreografia artificial dos planos ou a precisão da alegoria, mas sim o fato de que esta potência é seu calcanhar de Aquiles: a disponibilidade para a colagem própria da alegoria começa a se desfazer no rebuscamento cada vez mais detalhista de seu preenchimento. A balança que pendia para o genérico em Antes o Tempo Não Acabava tende aqui para a sufocante impressão do específico.

Em todas as ficções entre os filmes de longa-metragem este ano na competição de Brasília, uma tensão formal assim parecia pendente: narrativa mais firme ou desdramatizada, interior versus exterior, paisagens e rosto, plano geral e detalhe, alegoria e apontamento direto, genérico e específico. Algo da potência dos filmes estava na proposta inicial levada a cabo, e boa parte das fraquezas estava num equilíbrio fora de mão dessa tensão, que talvez seja a própria essência da ficção: o que contar? Como contar? Quando contar? Quanto contar?

O dilema, que apenas os artista podem resolver, talvez seja menos questão da precisão de cada uma das interrogações, e mais se vale a pena a busca de equilíbrio em tempos de ruptura.


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