Branco Sai Preto Fica, de Adirley Queirós (Brasil, 2014)

fevereiro 5, 2014 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Em Campo, Em Cartaz, Juliano Gomes

* Cobertura da Mostra de Tiradentes 2014

brancosai

Fogos e artifício
por Juliano Gomes

De A Cidade é uma Só? (2012) a Branco Sai Preto Fica, podemos concluir claramente que Adirley Queirós é um cineasta do espaço em transformação. Não só os planos abertos atestam isso, mas também a recorrência com que se estabelece a ligação entre os personagens e o lugar que habitam no filme. Se há algo absolutamente inquebrável ali é justamente isso: os personagens podem sofrer tudo, mas vão sempre estar ligados a este lugar (também de fala) – não um espaço qualquer, mas um território. Isto é, um espaço que foi dotado de sentido, de função, de fronteiras. Ambos os filmes vão tratar do espaço e da inerente disputa que é a criação de um território. São filmes de ocupação, no sentido concreto da habitação mesmo – do preenchimento pelo corpo e pelo tempo – e no sentido simbólico – dessa esfera de escritas que habitam as experiências, mas cuja presença só podemos ver quando manifestadas nos corpos e nos lugares, como por exemplo a música e o contar histórias (aqui belamente reunidos). Novamente, melodias e harmonias, narrativas enfim, são o centro propulsor do drama e do trauma. Na terra ou no ar, é preciso conquistar um espaço de presença, uma ocupação.

No seu primeiro ato, este último filme impressiona por uma mudança de chave surpreendente: a força de construção interna substituiu a exuberância centrífuga do filme anterior para uma força centrípeta catalisada pelo grafismo dos quadros de interiores, luzes artificiais e movimentos internos. A precisão da construção plástica deixa a leveza que sugeria espontaneidade em direção a uma artificialismo que desloca o farsesco para um nível bastante distinto do esperado. O grafismo dos enquadramentos e a lentidão coreográfica dos movimentos dentro do plano levam a hipótese do naturalismo (atores não profissionais; história verídica; uso de locações; planos abertos) a uma crise. Trata-se de um universo com regras e velocidades próprias que cria uma modulação do ver e ouvir que lhe é particular e não do mundo fora do filme – fundamento da ideia de natural (o que liga o dentro e o fora da representação). É sempre essa a disputa aqui: entre o espaço do real e o espaço do irreal, do que não tem natureza material. Esse é o ponto nevrálgico que faz com que os policiais invadam o baile do Quarentão a partir do qual o filme, inteligentemente, incide e se dispara.

O campo de batalha de Adirley é justamente o do cruzamento entre os espaços do mundo e as ficções que se instalam neles e lhes dão sentido. Tais operações são o que fazem de um espaço um país, uma propriedade privada, um terreno, e tornam um punhado de imagens um filme e um apanhado de sons uma música. Um território é necessariamente uma ficção. E para efetuar essa violência radical de conquista e invenção de um contorno novo num espaço verdadeiro (conquistar o Plano Piloto), Adirley percebeu a necessidade de tornar mais consistente essa armadura ficcional, intensificando tanto esse sentido que emana pra dentro, quanto a fabulação que o projeta pra fora. Brasília é talvez a maior realização desta natureza em todo mundo. O Plano Piloto é provavelmente a maior obra de imposição de uma ficção no espaço de todo o modernismo brasileiro, nossa maior obra de arte pública. Em vez de desmascará-la, decide-se aqui destruí-la jogando seu jogo, entendendo sua natureza artificial e arbitrária, numa disputa de construções e arbitrariedades.

O trauma do passado comum dos três personagens principais é justamente quando uma crença – nesse caso, do Estado – recai sobre o corpo. A disputa entre a diversão de periferia no baile black e a manutenção da ordem pela polícia é essa luta pelo domínio, pelo controle dos corpos, que é sempre o desejo final do Estado. Aqui, a fábula estatal chega até o osso, arranca-lhes os membros por ousar ameaçar-lhe o poder. E, neste caso, a música em questão, a canção sem músicos – o trabalho dos DJs – é duplamente ameaçadora nessa batalha estética. É implodido o mito de origem, que é afinal a forma do divino, da criação, e trocado por uma modelo de circulação, corte e apropriações, com o qual o estado não pode jogar (o mesmo acontece com toda a música eletrônica periférica do Brasil hoje, trinta anos depois). Se vocês querem pedaços, cortes e emendas, diria o Estado, é isso que vocês vão se tornar.

Branco Sai Preto Fica elimina qualquer possibilidade de uma leitura naif do que vemos na tela. A habilidosa composição desse universo dos artifícios invadindo o corpo e os espaços – as próteses, as máquinas, os trens, os carros, superfícies metálicas, luzes frias – tudo isso compõe um hibridismo que não é o da inclusão, da incorporação do outro, mas o da estetização de uma disputa constante. Não há reconciliação possível. Porém, o efeito não é a imobilidade nem o impasse, mas sim a imposição de uma mobilidade eventualmente troncha, manca, porém firme no seu ritmo claudicante. A mobilidade, eixo central de qualquer ideia de política, precisa ser aqui recuperada: entre duas cidades, entre dois mundos, entre o simbólico e o real, a liberdade dessa faixa de disputa intermediária é que precisa ser conquistada. Amputar é restringir, estancar, fixar. À amputação é preciso resistir.

A habilidade absolutamente incomum de construção de um universo particular, do estabelecimento de um tom, de uma velocidade, de um “toque”, ao mesmo tempo se acentua e se coloca em perigo. Essa ficção científica das máquinas, das projeções (com duplo sentido), dos motores, lentes e toca discos, é também a ameaça de um narcisismo que a forma mais permeada pelos exteriores não trazia. Na medida em que o o jogo dos artifícios se adensa, o trajeto para dentro e para fora dele se torna mais árduo, pois precisará tomar então novos caminhos. Ao adensar a camada de mediações, a trilha que faz o filme intervir no mundo se torna mais traiçoeira não por o filme se tornar mais falso, menos verossimilhante, mais por ter mais elementos internos a resolver e lhes dar movimento próprio.

O início acachapante das três trajetórias que compõem o filme parece em um segundo momento perder o fôlego e cair numa zona de indecidibilidade onde essa ficções parecem pesadas demais para o corpo do filme, como órgãos que não encaixam, que comprometem o deslocamento. Uma vez estabelecidos os ritmos, os lugares, o mito, fica um certo vácuo na porção central do filme de como fazer essas linhas se colidirem para causar uma combustão verdadeira que lhe dê energia para realizar a travessia que propõe, a destruição dessa ficção do real chamada Brasília que lhes ameaça. Atravessar o túnel – do tempo, dos regimes de luta – é uma tarefa árdua se o que se quer é inventar um novo jeito de andar, que não seja o mais rápido, o mais eficiente, mas que seja seu. Como mudar de extrato, como atravessar os domínios pré constituídos? É preciso um movimento em falso, que fuja da regra, mas que invente outra. Um traço novo no papel é um contorno e um limite e, para se tornar uma figura, é preciso voltar-se em alguma medida para si mesmo. E esse fechamento de contornos, essa constituição de um território, esse “tornar um só” é uma violência necessária, voltada para dentro. O perigo desse “dentro”, da constituição de um cosmos próprio, é duplo. Além da dificuldade inerente da auto-construção de um campo de variações singular, há também o problema de como sair dele.

O salto que o filme dá em direção ao mundo segue a linha, já pavimentada por diversos elementos do filme, da fabulação. Tal coerência de procedimentos esbarra num emaranhado ético que é justamente o da forma de disputa e embate. A destruição de Brasília pelo desenho, por essa força do falso, se é uma vitória simbólica, é também demonstração de uma fuga pela porta possível, que não deixa de ser uma solução sem resistência praticável do oponente. É uma volta do mesmo (“fabulamos nós mesmos”, encerram os letreiros). A escolha dessa investida como catarse dos trajetos do filme, pelos quais ele cumpre sua missão simbólica, é também a escolha por um caminho da pureza, do traço limpo, da ficção excessivamente lisa, que é o achatamento da política. Destruir a ficção do outro, essa revanche da margem, resvala também em um desejo reacionário pela sua limpidez, e pela sua imediatez de resposta, por usar as armas do inimigo enfim, acreditando em excesso numa espiral que nos faz confundir somente com nós mesmos.

A força desse cinema, cuja solidez estrutural já não pode mais ser uma surpresa, é justamente essa de criar soluções políticas que não sejam nem a imobilidade derrotista, nem a fantasia quixotesca de uma vitória ficcional sem dissenso. A vitória sem batalha real é também um mecanismo de exclusão e de fácil aderência. A ficção dos amputados é a construção de um mundo que carrega as feridas das derrotas e inventa assim um novo território de lutas, fora das técnicas de coerção do Estado e dos poderes institucionais. A relação aqui com o cinema de Tsai Ming-liang e Apichatpong Weerasethakul não é acidental, pois são os cineastas que se imbuem dessa batalha no campo dos signos, onde cada filme é a invenção de um novo campo de batalha dessa circulação de dentro para fora (construir um universo à parte para, a partir dele, voltar ao mundo e ver, ao final, tudo tornado mundo, abalando essa linha que os separaria).

Ao reatualizar o desejo de encurtar a linha que leva do cinema a vida (intervir no mundo, desejo do cinema moderno), o filme esbarra em escombros que ainda não haviam se tornado totalmente outra coisa. A sintonia fina entre filme, espaços e corpos parece se desencaixar quando o caminhar se acelera, ávido pela explosão. O álbum do mito original é abandonado, a fábula futurística se apressa, numa compressão que acaba por esfriar a combustão prometida. A fração de passado, essa força de retorno fora do campo da nostalgia que é o coração desse cinema, acaba por se rarefazer diante dessa ansiedade em chegar. O artesanato têm como trunfo justamente essa possibilidade do novo marcado indelevelmente pelo seus estágios prévios, pela sua manufatura. E, na medida em que se torna arte, não pode prescindir desse conjunto de marcas que é seu próprio corpo, híbrido, não natural, estranho e potente. Um desenho é também uma folha, algo que pode ser amassado e destruído facilmente. Para fazê-lo verdade, é preciso insistir nele, fazer passar nele outras linhas que não sejam prévias, que não sejam da ordem do dia, que estejam sugeridas nos movimentos anteriores dos elementos na tela. Nada deve parecer natural, nem mesmo o artifício.

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