Sobrevivendo em terreno hostil: o cinema de Walter Hill

maio 16, 2013 em Em Vista, Filipe Furtado

The Warriors (1979), Walter Hill

The Warriors (1979), Walter Hill

por Filipe Furtado

Os melhores filmes de Walter Hill expressam o conflito moral em um universo que submerge na selvageria, a sobrevivência em um mundo prestes a fugir do controle. É um sentimento atrativo para um cineasta que, ao longo de quatro décadas, vem procurando formas de manter-se viável numa indústria em constante movimento. De Roy Del Ruth a John Flynn, passando por nomes como Andre de Toth e Phil Karlson, ser um autor orientado à ação sem pretensões aparentes não te leva muito longe no cinema americano. No máximo, à ocasional retrospectiva e à alcunha de mestre pós-fato. É trágico observar o número de carreiras promissoras interrompidas ou que perderam o viço após meia dúzia de longas. O universo do filme de ação médio é um dos mais dispensáveis da indústria cinematográfica americana, pois trata-se afinal de realizar um produto para ocupar salas entre lançamentos importantes, sem grandes retornos de reputação, seja comercial ou crítica. Trata-se de um caminho com poucas saídas, mas que serve perfeitamente ao temperamento de alguns artistas como Walter Hill.

O corpo da obra de Hill descreve perfeitamente o arco da carreira de um cineasta como ele: um começo muito forte com seis ótimos longas entre Lutador de Rua (1974) e 48 Horas (1982), seguido por um longo período em que a irregularidade dá o tom, com os ocasionais filmes fortes convivendo lado a lado com trabalhos desiguais e outros em que quase nada deu certo. Seus melhores filmes (The Driver, The Warriors, Southern Comfort e Gerônimo) se comparam, sem nenhuma perda, com os melhores trabalhos de nomes mais celebrados da sua geração, mas há sempre um 48 Horas Parte 2 (1990), em que o desinteresse de todos os envolvidos é notável, e muitos dos filmes de Hill se assemelham a um Inferno Vermelho (1988) ou ao novo Alvo Duplo (2012), em que o cineasta usa todo seu talento para manter as engrenagens do filme funcionando com facilidade, sem que nada de memorável jamais aconteça. Quando seu material lhe permite, porém, Hill sempre é capaz de extrair um belo filme de onde menos se espera, como em Undisputed (2002), em que, do aparente banal confronto entre ex-lutadores de boxe num presídio, se localiza um filme bem potente sobre a sociedade de espetáculo reduzida a seus elementos mínimos, traduzida perfeitamente na imagem de dois babacas a se espancar para o prazer do espectador dentro e fora da tela.

O primeiro trabalho de expressão de Hill foi o roteiro de A Fuga (1972), de Sam Peckinpah, e o mote central da caçada no centro daquele filme se multiplica ao longo da sua obra. Quase todos os filmes de Hill partem da ideia do cerco. Seus dois grandes filmes do fim da década de 1970, The Driver (1978) e The Warriors (1979), oferecem os modelos sobre o quais eles invariavelmente se constróem. Em The Driver (que foi lançado por aqui com um título sem sentido, mas que capta o principio do cineasta: Caçador de Morte), temos a dança cuidadosa entre as duas partes – o motorista de fugas (Ryan O’Neal) e o policial (Bruce Dern) que lhe persegue – ambos esperando o erro do outro para melhor dar o bote. Já em The Warriors, resta o grupo caçado por um adversário quase mítico invisível, uma lógica de filme de horror aplicada à fita de aventura. Mesmo um filme como Alvo Duplo mostra um esforço visível para elevar o vilão mercenário interpretado por Jason Mamoa como um adversário digno de enfrentar Sylverster Stallone de igual para igual, enquanto a maior parte de filmes do gênero tratariam-no como mais um vilão rotineiro. Daí nasce um dos ocasionais fatores limitadores de muitos dos filmes menores de Hill: castings pouco inspirados que terminam tornando o que deveria ser um dueto num solo, com uma das partes quase sumindo de cena (Inferno Vermelho, Ruas de Fogo).

Walter Hill se encontra mais à vontade justamente quando a estrutura dos seus filmes se mostra mais simples e prática, como em The Warriors. O objetivo se resume a uma jornada espacial – a gangue precisa cortar Nova York para voltar para casa –, personagens são mínimos e a estilização do projeto cobre a maior parte das suas possíveis fragilidades. The Warriors foi o primeiro sucesso de Hill e permanece o filme pelo qual ele é mais frequentemente lembrado (48 Horas é por demais ligado à personalidade dos seus protagonistas). É um filme de uma pureza na sua depuração essencial que raramente encontramos. Menos um filme de ação do que um filme de puro movimento, os Warriors precisam fugir rapidamente, e o filme encontra o contraponto visual para este desejo plano após plano. É o filme ideal de Hill: nenhum movimento desperdiçado, nenhuma gordura narrativa, somente uma noite cinematográfica e corpos em fuga coreografados perfeitamente para a câmera. É um filme que traz à mente o conceito de herói vazio de Rogerio Sganzerla, e, por meio da sua disposição exploratória, consegue uma imagem de pesadelo urbano bastante incomum.

The Warriors (1979), Walter Hill

The Warriors (1979), Walter Hill

Boa parte dos princípios que norteiam The Warriors seriam aperfeiçoados na obra-prima de Hill, Southern Comfort (que recebeu aqui o genérico titulo Confronto Final), um ainda mais austero filme de caça.  Há um grupo de membros da guarda nacional em manobras de fim de semana na Lousiana, e basta um desentendimento para que, logo, sejam caçados impiedosamente por um grupo de cajuns invisíveis. Na sua essência, Southern Comfort é sobre um bando de machões literalmente borrando as calças em face do desconhecido. Existe o terreno inimigo (e inevitáveis ecos de Vietnã, por mais que Hill insista em negá-los em entrevistas) e sua capacidade de devorar todos no seu entorno (ideia tornada literal num par de cenas) e, sobretudo, existe ali, no fora de campo, este outro inexplicável. O exército de gangues sem nome que se multiplicava sobre os Warriors se torna aqui um exército invisível, pequeno mas implacável, que engole um a um o grupo de soldados amadores.

Boa parte do cinema de ação e correlatos (guerra; horror; faroeste; etc.) se constrói sobre o outro e o temor que ele levanta, mas são raros os filmes que trazem este conceito para o centro, que permitem que este temor ressoe e seja colocado num contexto. Logo, nada mais natural que o Southern Comfort termine por colocar seus sobreviventes dentro da comunidade cajun, e que aquele inimigo abstrato de repente ganhe forma, rostos e principalmente uma cultura. A estratégia visual de Hill é simples e básica: o inimigo esta além do quadro, o que automaticamente transforma todo um espaço num campo hostil, e uma paleta entre o verde e o escuro que pode a qualquer instante significar morte acompanhada por uma banda sonora cuidadosamente construída para reforçar a ameaça. Seu verdadeiro clímax não é seu desenlace tanto como a imagem do soldado acuado, prestes a morrer, gritando que não deveria estar ali.

Southern Comfort (1981), Walter Hill

Southern Comfort (1981), Walter Hill

Uma parte essencial do projeto de Hill é uma aposta em personagens esvaziados, pouco mais que arquétipos a realizar seu jogo de gato e rato (não por nada, em The Driver ninguém tem direito a um nome). Hill normalmente confia no rosto dos seus atores cansados, que geralmente já interpretaram múltiplas versões daqueles mesmos tipos policiais ou marginais, para comunicar seu sobreviver desencantado. A exceção a esta ideia são seus westerns, que sempre se assumem como filmes históricos, pegando eventos da mitologia americana (a caçada à gangue dos irmãos James/Younger; o cerco a Geronimo; os últimos dias de Wild Bill Hincock) e destilando-os em vinhetas dramáticas crepusculares.

São filmes revisionistas à sua maneira, obcecados com a morte e finitude, em que o sentimento mais forte é de derrota e desperdício, mas que não escondem o prazer com que cada plano é arquitetado, como se retomar uma tradição estética por si só compensasse lidar com o peso da história. A maior parte dos faroestes americanos dos últimos 40 anos lida com o gênero ou como um playground dos realizadores ou como um fardo que o filme precisa carregar, como se responder a uma história e uma tradição fosse mais do que os filmes são capazes de tratar. Nada mais distante das incursões de Hill pelo gênero, dos poucos westerns pós-Liberty Valance que combinam consciência ao trafegar pelas armadilhas da história com um prazer genuíno de se articular junto a um amplo imaginário cinematográfico.

Há uma diferença enorme entre um filme como Cavalgada dos Poscritos (1980) e, por exemplo, Sem Lei e Sem Esperança (1972), que Philip Kaufman filmara a partir da mesma história, em que a necessidade de se dobrar como um anti-western por vezes engole todo o filme. Hill confia um tanto demais que seu conceito de ter os irmãos Younger, James e Miller interpretados pelos irmãos Carradine, Keach e Quaid carregara o filme na sua tentativa de construir momentos dramáticos melhor definidos que seus trabalhos anteriores, mas algumas sequências trazem muita força (especialmente nas cenas envolvendo Cole Younger com um David Carradine sempre a um passo de um desaparecer melancólico) e todos os momentos de ação vêm acompanhados de um prazer de descoberta que os faroestes na virada dos anos 1980 raramente alcançavam. É um processo melhor resolvido quinze anos mais tarde em Wild Bill (1995), realizado naquele curto momento em que o sucesso de Os Imperdoáveis tornou o gênero viável novamente. É o mais radical dos faroestes do período, com a ação suspensa por uma longa espera, enquanto o famoso pistoleiro aguarda seu desfecho inevitável. Da ação para somente um homem à espera de uma morte violenta. É o mais próximo que Hill chegaria de um filme de retrato.

Mas o melhor dos seus faroestes (e provavelmente o melhor dos filmes da segunda metade da sua obra) é mesmo Gerônimo (1993). Há alguns bons faroestes indianistas como Willie Boy (1969), de Abraham Polonsky, ou A Vingança de Ulzana (1972), de Robert Aldrich, mas nenhum como Gerônimo, que pode ser descrito como um épico sobre genocídio pelo ponto de vista dos vencedores. Um olhar sobre a história como uma longa derrota vergonhosa (é impressionante como nada no filme se constrói, o exercito reduzido a passar vergonha perseguindo em círculos uma pequena tribo), o filme tem uma raiva própria e uma dureza invulgar. Às vezes seu tom é um tanto opressivo, dominado demais pelo gosto de John Millius (que escreveu o excelente roteiro) pela nobreza na derrota, mas o filme majoritariamente escapa dele graças a um olhar incisivo e o melhor elenco com que o cineasta contou (o scout veterano de Robert Duvall, em especial, é um pequeno achado de autenticidade). É uma coleção de equívocos e pequenas derrotas construídas sobre um desastre maior; ao fim, todos perdem, menos aqueles poucos bem longe do plano, prontos a lucrar com as terras indígenas. Não há lugar em Gerônimo para o bom herói branco pronto para extrair uma pequena vitória que afague nossa consciência… no máximo, um pequeno gesto de protesto que resulta em nada. Todo o continente americano é construído sobre a barbárie, o filme reforça a cada nova imagem, e a história apenas encontra palavras mais amenas para descrever o extermínio. Os planos finais com os índios restantes (incluindo todos os scouts que colaboraram com o exercito americano ao longo de anos) sendo reunidos e despachados para a reserva indígena torna impossível não pensar nos campos de concentração. A história é só uma questão de amenizar a consciência dos vencedores.

Geronimo: an American Legend (1993)

Geronimo: an American Legend (1993), Walter Hill

Próximo ao final de Gerônimo, há um excelente confronto no bar entre dois grupos a caçar os índios que reforça como Walter Hill é hábil em localizar textura mesmo nas mais cansadas situações. Por vezes, um detalhe bem localizado basta para tornar o rotineiro em algo, se não novo, sempre vivo. Muito do charme do seu primeiro longa, Lutador de Rua (1975), se encontra justamente na descrição das lutas ilegais durante a grande depressão e a fauna de tipos que passeiam por eles; os arquétipos podem ser conhecidos, mas o filme os mantém frescos, e o mundo que eles trafegam sempre convidativo. Por outras vezes, esta mesma textura pode ser a única coisa em favor do filme, como em Um Rosto sem Passado (1989), um bastante peculiar thriller de vingança em que todo um agressiva coleção de significantes neo noir e de submundo convive lado a lado com as cenas da recuperação de um pequeno criminoso (uma das melhores performances de Mickey Rourke). O filme dentro do filme jamais consegue escapar da sua lógica determinista um tanto juvenil (no seu pior, Hill não é imune a confundir sujeira com profundidade), mas a torna muito mais interessante do que ela merecia.

Diante de uma carreira com a de Hill, não deixa de ser curioso observa como ela reflete as várias mudanças que o cinema de ação sofreu ao longo do período. Afinal, ele não tem uma personalidade tão forte como a de um John Carpenter, cujas idiossincrasias engolem sem problemas as diferentes superfícies de seus filmes, e Hill nunca mostrou nenhuma vergonha em seguir os modismos de cada época, desde que servissem de boa plataforma para ele se expressar. Seja destilando tendências, apontando-as, comentando-as ou se apropriando na cara de pau delas, o corpo da obra de Hill revela um inesperado ecletismo, um diálogo constante com a construção da imagem cinematográfica dentro da indústria americana.

Pensemos, por exemplo, num par de filmes da década de 1990: Os Saqueadores (1992) e O Último Matador (1996), separados por apenas quatro anos, mas representando momentos tão distintos que parecem muito mais distantes. Seria fácil imaginar o roteiro de Os Saqueadores (curiosamente escrito por Robert Zemeckis e Bob Gale, pela época que seus filmes começaram a se distanciar da leveza de um pequeno filme B como este) como um “direto para vídeo” ligeiro dirigido por um Ernest Dickerson ou Albert Pyun: dois bombeiros seguem um mapa do tesouro de um velho prédio num subúrbio abandonado e acabam acuados por uma gangue violenta (liderada por Ice T, com Ice Cube dando credenciais hip hop extras). Dos planos escuros de cores quentes à trilha hip hop, tudo aqui remete à primeira leva de thrillers urbanos como New Jack City (1991), mas estamos também num retorno a Southern Comfort, no qual o outro é muito visível, mas igualmente raivoso e incompreensível. É um filme um tanto didático demais (o homem branco não pode acreditar que a policia nunca passa por aqui), mas seu colapso de ganância e violência urbana tem uma força própria e suas imagens de prédios abandonados encontram uma potência pulp política (o filme produz uma bela sessão dupla com Candyman, de Bernard Rose, lançado à mesma época, que extrai uma força similar de espaços urbanos como estes). Já em O Último Matador – um remake de Yojimbo que retorna à história a paisagem de gangster na depressão de Dashiell Hammett –, estamos no terreno pós-Pulp Fiction, e se Hill jamais seria capaz de realizar algo derivativo como Coisas para se Fazer em Denver (1995), é impossível não notar o tom autoconsciente e excessivamente cool que o filme adota como bem distintivo do período. O Último Matador amplifica a frieza de Kurosawa a um extremo caricatural, mas sua misantropia sem filtros ajuda a iluminar outros trabalhos do cineasta.

Nenhum filme americano da década de 1970 captura o desejo de elevar o filme de gênero à condição de filme de arte como The Driver.  Sua soma de influências é de uma precisão matemática: Hawks, Melville, Bresson. Quando um filme como Taxi Driver naturalizava todo este processo, The Driver tornava-o sua própria razão de ser. Toda sua soma de apropriações produz um universo próprio excessivamente estilizado. O profissionalismo hawksiano  é contaminado pelo cinema dos anos 1960 e tornado algo doentio. Até a oposição dos seus atores centrais – a sensibilidade de Ryan O’Neal e a aspereza de Bruce Dern – não poderia ser mais do seu momento. O universo do motorista de fugas é um veículo perfeito para a lógica da sobrevivência que permeia seus filmes: a cada mudança de marcha, uma nova escolha dotada de consequências. À parte Assalto ao 13º DP, de Carpenter – outro filme dedicado a revestir um sentimento hawksiano de um espirito doentio bem próprio do período –, é difícil pensar em outro filme policial tão dedicado a esvaziar numa completa austeridade. Se o minimalismo de Carpenter encontrava uma imagem perfeita nas balas cortando a papelada burocrática no seu tiroteio central, Hill a multiplica ao longo de uma série de sequências de perseguição de carros com planos e locações perfeitamente escolhidos. Suas imagens de um centro de Los Angeles abandonado são as co-estrelas do filme, e há uma pureza na forma que Hill as capta que aproximam The Driver de Robert Bresson muito mais do que os óbvios exercícios bressonianos, como os filmes de Paul Schrader. Se The Driver, por toda sua austeridade e distanciamento, se revela um filme tão sedutor, é justamente por conta de uma apreensão material do seu mundo. Suas imagens assombram bem depois que ele se encerrou.

The Driver (1978), Walter Hill

The Driver (1978), Walter Hill

Assim como The Driver se apropria de uma década de tentativas de legitimar o filme B em 100 minutos, 48 Horas (1982) segue, para bem e para o mal, o filme mais influente dirigido por Hill. Tony Scott geralmente recebe a maior parte da culpa, mas muito do filme de ação da escola Joel Silver-Don Simpson-Jerry Bruckheimer pode ser traçado até aqui (Martin Brest aperfeiçoaria a formula em Um Tira da Pesada; Scott e Shane Black lhe dariam o polimento final no fim da década; e Michael Bay a tornaria verdadeiramente grandiloquente e repelente anos mais tarde): explosões rápidas de ações; uma montagem intensa; piadas grosseiras; performances agressivas e um tom abrasivo sustentado sobre uma trama que reforce seu caráter dispensável. O corpo é de um filme B dos anos 1930, de alguém como Walsh ou Wellman: somente dois tipos trocando insultos, enquanto as várias partes no seu entorno se reconfiguram para manter as engrenagens do filme andando. Mesmo depois de ser derivado muitas vezes (inclusive pelo próprio Hill), o filme mantém seu charme, parte pela precisão das suas sequências de ação, a boa química entre Nick Nolte e Eddie Murphy, e um desejo por certa autenticidade que seus imitadores pouco se preocuparam.

Dado o sucesso e influência de 48 Horas, pode parecer estranho que o movimento seguinte de Hill seja justamente se distanciar ao máximo do filme de ação. Seus trabalhos do meio da década de 1980 (Ruas de Fogo, Chuva de Milhões, A Encruzilhada) tentam adaptar seu estilo a uma serie de materiais diversos, com resultados pouco consistentes. Ruas de Fogo (1984), com sua tentativa de refazer Rastros de Ódio como uma aventura mítica adolescente com visual de videoclipe, é sem dúvidas o mais curioso, uma espécie de filho bastardo dos experimentos que Coppola realizava no período, dramaticamente inerte e por demais derivativo para funcionar, mas bastante pessoal à sua maneira. Hill só retornaria ao cinema de ação em 1987, com No Limite da Traição, dos seus melhores filmes tardios e um que de certa forma comenta a sua própria distancia do gênero. No centro do filme está justamente a lenta espera pelo confronto inevitável por dois destes tipos surrados que tanto lhe atraem (Nick Nolte e Powers Boothe como dois ex-amigos em lados opostos da lei), mas esta dança é interrompida por um grupo de mercenários, ex-soldados dados como mortos em uma missão misteriosa. É como se os soldados de Southern Comfort ressuscitassem como zumbis, anabolizados com todos os excessos do período, e tomassem o filme como refém até se autodestruírem e permitirem que Hill por fim retome o seu cinema.

As partes não dialogam e o filme dentro do filme não podia ser mais distante do espirito do cineasta; o resultado final é um massacre descoordenado e gorduroso, violência inflada como poucas vezes Hill captara. Um amigo descreveu No Limite da Traição certa vez como “Meu Ódio Será sua Herança que os anos 1980 merecem” e isto descreve a experiência do filme, ao mesmo tempo sedutor e frustrante. Tudo aqui leva ao excesso, desperdício e corrupção. É um filme de um niilismo muito próprio, mais das suas imagens do que de seus personagens, que Hill localiza na figura quase simpática do traficante de Boothe, menos uma ameaça que um gringo decadente cheirando e bebendo até a morte inevitável. Hill é profissional demais para não nos servir ação clara, coadjuvantes que preencham bem as cenas, um sentimento preciso de local, mas o que sobrevive do filme não é seu bom artesanato, mas a inadequação que domina as suas imagens. Quando Hill retoma 48 Horas, numa sequência tardia três anos depois, resta pouco mais que pura corrupção: a forma está morta e chegou hora de passear por outros cinemas de ação.

Boa parte dos filmes de Hill desde o começo da década de 1990 sugere um longo passeio por outras formas, sejam elas da tradição, sejam do momento. O recente Alvo Duplo é um exemplar perfeito de tal passeio, se não um dos mais bem sucedidos. Apropriando-se da estética dos DTVs de ação como os veículos recentes de Steve Austin (que poderia facilmente substituir Stallone aqui) e o mesmo tom retro da série Os Mercenários, do próprio Stallone, Alvo Duplo aposta um tanto demais na boa vontade do espectador de perdoar-lhe certo cansaço com a sua familiaridade, na certeza de que não haverá nos multiplexes nada como ele. É um dos filmes mais esvaziados de Hill, e por isso mesmo um veículo bastante adequado para o que lhe torna distinto: um bom olho para o movimento, um hábil uso das locações em New Orleans (por questões financeiras, há dois tipos de filmes de ação de baixo orçamento hoje: aqueles rodados em territórios estrangeiros filmados de forma genérica, e os passados na Louisiana), a forma como a luz artificial reflete sobre atores igualmente artificiais (a figura grotesca de Stallone é posta em muito bom uso).

Alvo Duplo é o filme de ação como puro veículo formalista. Este sempre foi o destino final dos bons autores do filme de ação médio, em seu status descartável, a única saída possível enquanto busca a sobrevivência. Em um meio em que se premiassem cineastas como Hill, haveria mais filmes como The Driver do que como Alvo Duplo. Mas eles não estão tão distantes. O que seduz nas imagens de ambos é o mesmo sentimento, o mesmo mundo em constante movimento no qual o homem está sempre diante de uma escolha, rodeado pelo absurdo e a selvageria.

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