história(s) do cinema brasileiro
Os anos 60/70 de Ismail e o cinema
brasileiro hoje
por Cleber Eduardo
Em 27 de setembro de 1985, durante um seminário
na Universidade de Brasília, o crítico/pesquisador Ismail Xavier,
dividindo uma mesa com o então cineasta Ipojuca Pontes, analisa
a produção dos anos 70. Voltar às suas palavras e avaliações,
por meio da leitura de sua participação no volume Perspectivas
Estéticas do Cinema Brasileiro, editado pela UnB, nos traz
pontos próximos e distantes de 2006.
Ismail começa com um diagnóstico geral da dicotomia
de linhas estéticas e de produção na virada dos anos 60 para os
70. De um lado, o cinemão, empenhado na reconciliação com o público,
após a impopularidade das experiências autorais (Cinema Novo),
mais reconhecidas que conhecidas. De outro, os marginais e independentes,
radicalizando a autoralidade, não sem alto grau de ironia e esculhambação.
Tem-se uma continuidade da contundência estética,
agora em outro diapasão, e um fluxo de ruptura com o cinema moderno,
por meio de retomadas de práticas familiares, mais confortáveis
até em sua contundência. Em linhas gerais, os anos 70 domesticaram
os 60, em nome da conquista do público. O crítico identifica essa
atenuação da agressividade no diálogo com a chanchada clássica
dos anos 40 e 50 (entre os quais Joaquim Pedro de Andrade com
Macunaíma e Cacá Diegues com Quando o Carnaval Chegar),
nos melodramas extraídos de Nelson Rodrigues, nas adaptações de
livros de Jorge Amado e na adoção do pitoresco nacional como forma
de comunicação. Esse conjunto de estratégias revela disposição
em se explorar traços culturais já reconhecíveis pelo espectador
(inclusive na televisão).
Nesse início da participação de Ismail no seminário,
localizamos questões familiares aos nossos dias. Temos lá o embate
entre cinema de autor e de indústria, hoje retraduzido para cinema
com major e Globo Filmes (a indústria) e propostas incompatíveis
com os padrões dessas alavancas de visibilidade (os independentes
semi-invisíveis). Temos ainda a proximidade com a exploração de
franquias culturais, que, se antes eram as páginas de transgressões
culturais de Nelson Rodrigues e de erotização dos estereótipos
nacionais de Jorge Amado, hoje se espalham por peças empenhadas
em celebrar seus próprios artifícios (A Máquina, Irma
Vap), livros vinculados a realidades violentas (Cidade
de Deus, Carandiru), biografias de celebridades históricas
e culturais (Cazuza, Dois Filhos de Francisco, Olga).
Chega-se à tela com algo já dado e reconhecido. Mesmo a crítica,
nesses filmes, pressupõe o conforto (no caso, de estar diante
de algo já legitimado pela literatura e pela realidade adaptada,
o tal inspirado em caso real).
Ismail avança na comparação entre os dois momentos
históricos e salienta a substituição das metáforas sobre a condição
do subdesenvolvimento (Cinema Novo/Marginal) pela afirmação da
figura do malandro. Essa troca seria uma forma de atenuar os conflitos
sociais em jogo. A imagem a berrar de indignação e revolta deixa
lugar para a celebração dos efeitos da condição de periferia mundial.
Reconciliação ocupando o espaço anterior do confronto. Hugo Carvana
torna-se, assim, figura emblemática (Capitão Moura Brasil,
de Antonio Calmon, Quando o Carnaval Chegar, de Diegues,
Vai Trabalhar Vagabundo e Se Segura Malandro, do
próprio Carvana). Há outros abrandamentos de tensões anteriores.
Os rituais religiosos deixam de ser associados à alienação e passam
a ser considerados sinais culturais do povo. Ismail ainda detecta
evidências de conciliação nas soluções imaginárias de Dona
Flor e Seus Dois Maridos, de Bruno Barreto, e Eu Te Amo,
de Arnaldo Jabor, que buscam no não-realismo um espaço utópico
de harmonização das tensões.
Está em jogo a definição de qual a identidade
brasileira a ser construída no cinema e a ser explorada em sua
comunicação com o público. A noção de uma identidade revolucionária,
lembra Ismail, sai de pauta na passagem dos 60 para os 70: não
se vincula mais a condição de brasileiro aos conflitos. Mesmo
no percurso mais experimental de um cineasta como Julio Bressane,
Ismail vê a suavização da exasperação e do confronto com o espectador,
que, nos anos 60 para 70, marca Matou a Família e Foi ao Cinema,
Cara a Cara e as produções da Belair, e, na continuação
dos 70, é abandonada pela valorização da pesquisa identitária
(O Rei do Baralho, O Monstro Caraíba).
Tentemos atualizar, genericamente, esses diagnósticos.
O que mudou dos 80 para os 90? Primeiro esse período é marcado
por uma mudança estrutural de produção imposta por um governo
(o de Collor). Isso resultou em colapso e posterior aquecimento
da produção, durante o qual, para se evitar os sinais daquele
cinema dos 80 caçado por uma assinatura presidencial (fim da Embrafilme),
procurou-se criar uma idéia de “novo cinema brasileiro”. Esse
discurso de autoproclamação da novidade e da diversidade já cria
para si um marco de rompimento com o estágio anterior que foi
perseguido nas práticas formais e dramatúrgicas de muitos realizadores.
Seria preciso para melhor esboçar essa ponte entre uma década
e outra retornar pelo menos aos títulos mais expressivos do período
anterior. Isso revelaria uma visão mais apurada e em perspectiva.
A abrangência de propostas impossibilita uma síntese
conclusiva. Temos as experiências “auto-centradas” ou “ou por
dentro do cinema” do então “novo cinema paulista” (Wilson de Barros,
Sergio Toledo, Chico Botelho, Guilherme de Almeida Prado), o prosseguimento
do percurso de Carlos Reichenbach (em especial com Filme Demência
e Anjos do Arrabalde), a adaptação de Cacá Diegues aos
desafios do momento (Um Trem para as Estrelas, sobretudo),
a tangência de Nelson Pereira entre Memórias do Cárcere
e Jubiabá, os trabalhos de Sergio Rezende (O Homem da
Capa Preta, Doida Demais) e Murilo Salles (Faca
de Dois Gumes), a aposentadoria de Arnaldo Jabor com a “performance
dramática de alcova” de Eu Sei que Vou Te Amar. Um cinema
ainda sem um padrão técnico de aceitação internacional, mas também
sem a energia vulgar que, a despeito do abrandamento da virulência
identificada por Ismail, ainda emite sinais de inadequação aos
padrões dados nos 70. Persegue-se um respeito das elites.
O que marca essa nova fase, a dos 90-00? Para
afirmar-se como nova, renovou-se a mão de obra, com a promoção
de estreantes como nunca se viu antes. Mudaram também os discursos
e formas. É preciso destacar a freqüência rala de diretores iniciados
nos anos 80, ou com a maior parte da filmografia situada na década,
segmento geracional do qual Sérgio Rezende, Ugo Giorgetti, Sergio
Bianchi, Tizuka Yamasaki, Murilo Salles e Fabio Barreto foram
os mais presentes. Protagonistas do Cinema Novo e do Marginal
mudaram tom sem sair do mesmo trilho: Paulo César Saraceni (O
Viajante), Ruy Guerra (Estorvo), Nelson Pereira dos
San tos (A Terceira Margem do Rio), Cacá Diegues (Orfeu,
Deus é Brasileiro), Julio Bressane (vários). No geral,
da parte desses cineastas, não surgiram novidades, mas permanência
ou variação.
Já a renovação de realizadores significou algumas
alterações de convenção a ser perseguida como hegemônica. Percebe-se
a partir de 1995, um esforço maior de organização dos sentidos
e da narrativa, cujo maior sintoma são os workshops, laboratórios
e cursos de roteiro. O cinema brasileiro afastou-se, em sua soma,
ainda mais da vertente moderna. A dinâmica e os signos da televisão,
ainda concentrados em Renato Aragão e Xuxa nos anos 80, desdobraram-se
com adaptações e resumos de séries (Os Normais, Casseta
e Planeta, Auto da Compadecida, Caramuru). A TV
torna-se ainda tema de enredo (Zoando na TV, com Angélica)
e estabelece um padrão de imagem (Guerra de Canudos, Olga,
Os Normais). Também temos um novo reencontro com a chanchada
(Carlota Joaquina).
Certamente também se adquiriu uma obsessão pelo
padrão técnico e narrativo aprovado pelos circuitos de exibição
e pelas empresas de distribuição (a parceria de curadores da visibilidade
no cinema). Houve um recuo das situações eróticas, da nudez, da
intimidade nem sempre suspirante dos casais. A hegemônica identidade
brasileira representada nas telas ficou mais vestida e mais arrumadinha.
Conflitos conjugais, com exceção de Um Céu de Estrelas,
Latitude Zero e Um Copo de Cólera, foram tênues
ou cômicos, sem o mal estar inerente ao padrão das relações contemporâneas,
ou dos desencontros de demanda afetiva entre homens e mulheres
(ou outras configurações). Saiu Arnaldo Jabor e entrou Sandra
Werneck, ou Mara Mourão, ou Daniel Filho, ou Rosane Svartman.
A questão da identidade nacional foi também tratada
de forma explícita, como nos 70, em filmes com propostas e resultados
muito variados. Vemos essa preocupação, em alguma medida, em Carlota
Joaquina e Terra Estrangeira, em Desmundo e
Brava Gente Brasileira, em Deus é Brasileiro e outras
viagens ao sertão. No recente Árido Movie, para se levantar
placas para um dos temas tratados (a identidade deslocada de um
sertanejo apaulistanado em seu regresso à origem), menciona-se
O Estrangeiro, de Albert Camus. Persevera-se na permanente
investigação de origens, pertencimentos e reconhecimentos, revelando
um incômodo com nossa constituição cultural moderna, mas também
um estranhamento diante de sinais da pre-modernidade. O brasileiro
profundo ou depauperado é o outro, em uma relação em que se está
diante dele, não ao lado e com ele, o que pode ser um sinal de
conciliação procurada e não espontânea.
A retomada dos conflitos sociais, quando não foi
tratada com o cinismo impotente de um 16060, de Vinicius
Mainardi, tendeu a escolher mediadores (entre nós e a classe social
dos personagens). Vemos claramente esses “nossos representantes
de classe”, em representação direta ou figurada, em Abril Despedaçado,
de Walter Salles, Carandiru, de Hector Babenco, e em Cidade
de Deus, de Fernando Meirelles, nos quais os protagonistas
são de fora da zona de conflito ou sentem-se de fora mesmo lá
dentro. Talvez seja essa uma característica bastante sintomática
de um cinema que, nesse período, embora tenha se esforçado para
construir um discurso e uma ligação com idéia de cultura nacional,
não disfarça um sentimento de estrangeiro em casa. Não é à toa
que os “filmes marcos” do início do ciclo, no sentido cronológico,
sejam Terra Estrangeira e Carlota Joaquina, um sobre
um rapaz que foge do país, outro sobre uma espanhola que nunca
quis ter pisado aqui. Variações de estrangeirismo interno estão
tanto em Árido Movie como em Brasília 18%, só para
citar dois títulos mais próximos de nós.
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