Psicose (Psycho), de Alfred Hitchcock (EUA, 1960)

maio 16, 2013 em Em Pauta, Raul Arthuso

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O observador desnudado
por Raul Arthuso

A obra de Hitchcock é marcada por uma sexualidade interditada, por vezes sugerida, mas de certo modo conturbada, transitando entre o fascínio pelas mulheres à culpa por essa fascinação. Essa sexualidade se expressa muito pelo perigo que as mulheres correm nos filmes, pois a força de vontade delas é proporcional ao iminente risco de morte, como se opera claramente em Janela Indiscreta (1954) e O Homem que Sabia Demais (1934 e 1956). De alguma forma, isso parece refletir a sexualidade celibatária confessa do católico Hitchcock e este misto de fascínio/culpa pelo feminino se manifestará também em Psicose e, depois mais abertamente, em Os Pássaros (1963).

Contudo, Psicose (1960) é evidentemente um filme diferente dentro do corpus hitchcockiano. Essa estranheza já se mostra na primeira seqüência: Marion (Janet Leigh) está apenas de sutiã na cama com seu amante em dorso nu. Claramente, o casal acabou de transar e a relação tem algo de proibida. A cartela inicial mostrando dia e horário da ação estabelece ser este o único momento disponível para o casal manter relações sexuais. O cotidiano, tão presente em Hitchcock, não é apenas um dado em que o jogo de forças – sexualidade/celibato, comum/extraordinário, bondade/maldade, fascínio/anomalia – se desenrola como em A Sombra de uma Dúvida (1943) ou Festim Diabólico (1948). Esse aspecto já indica ao espectador porque Psicose será diferente em relação ao restante da obra hitchcockiana até ali: tudo será direto. O que era sugestivo e floreado pela poderosa virtuosidade de Hitchcock, com sua capacidade de brincar com os desejos e expectativas do público, se torna matéria explícita. É interessante notar que, na primeira hora de Psicose, a câmera é extremamente descritiva, há poucas elipses e as cenas acontecem num período muito próximo uma da outra, atentando mais para a descrição minuciosa da cada ação e gesto das personagens. Hitchcock não esconde, preocupa-se pouco com o jogo de revelar/esconder que marca seu suspense.

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Psicose é corporal, carnal, violento. A sexualidade é tratada da forma mais direta no cinema de Hitchcock, um erotismo além da sugestão indo direto ao corpo: Marion é mostrada de sutiã na primeira cena após o sexo, flertará com vários homens para alcançar seus objetivos e depois aparecerá em dorso nu num prazeroso banho. Esse jogo é outro aspecto importante da obra do diretor inglês, pois ele se baseia no voyeurismo do espectador. Hitchcock sempre coloca o público numa posição de observação do privado, identificado com uma personagem, mas sempre dá ao espectador informações negadas ao protagonista. Isso dá posição privilegiada ao voyeur: o espectador observa sabendo, enquanto o personagem não sabe. Daí sai seu suspense e também o seu controle, pois a habilidade da mise en scène de Hitchcock está em saber dosar o que e quando é visto.

Em Psicose, por sua vez, tudo está na tela – e daí parte de sua violência. O Bates Motel, por exemplo, é uma locação única nos filmes de Hitchcock: uma casa suntuosa de estilo gótico, praticamente abandonada, no alto de uma pequena colina com um motel de beira de estrada em seu pé. É um código de clima de suspense que o diretor inglês sempre evitou em favor do comum, do conhecido, do cotidiano, no qual o voyeur se manifesta mais intensamente: o Albert Hall, o Rushmore, a ponte de São Francisco, o apartamento do vizinho da frente, até a própria casa da personagem. Por isso, o voyeurismo é inteiramente desvelado na cena do assassinato de Marion, sem símbolos ou analogias: Norman Bates (Anthony Perkins) aparece olhando por um buraco na parede e a câmera faz um plano subjetivo dele. É assim, frontal: o espectador em seu momento mais abertamente voyeur dentro de um filme de Hitchcock.

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Desvela-se o jogo, desfazem-se as formalidades: a violência física, na cena mais famosa do filme, a morte Marion, é a mais gráfica do cinema de Hitchcock. Em outros de seus filmes, o crime não aparece, como em A Tortura do Silêncio (1953) e Festim Diabólico, ou então revela-se por mediação de algum objeto, como o assassinato pelo reflexo do óculos em Pacto Sinistro (1953), a areia na pia em Sabotagem (1936), o toque dos pratos no concerto em O Homem que Sabia Demais. Existe um prazer estético pelo crime. “Filme os seus assassinatos como cenas de amor e suas cenas de amor como assassinatos”.

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Pacto Sinistro (1953), de Alfred Hitchcock

Em Psicose, é diferente: por um buraco na parece, Bates observa Marion tirar sua roupa. A partir de então, o gesto é o do espectador: veremos Marion abrir o chuveiro e deleitar-se brevemente com a água em seu corpo, assim como a chegada de uma estranha que abre a cortina e esfaqueia a moça até escorrer a última gota de sangue, sobrando apenas um corpo morto que mira fixamente o espectador-voyeur. Nesse sentido geral do assassinato em Hitchcock, o de Marion é um estupro, como alerta François Truffaut. Pois há o crime brutal, os cortes que realçam seus detalhes e a crueza do ato. Há o corpo, desnudado, detalhado e retalhado. Não há moralidade nem culpa e prazer no gesto; há violência. Hitchcock nunca foi tão pornográfico.

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Norman Bates é, então, a velha interdição desse erotismo: ele deseja a mulher, mas sabe que não pode, não deve e tenta não querer. A única alternativa passa a ser seu desaparecimento e, portanto, torna-se inevitável sua morte. Se, ao longo da obra de Hitchcock, a mulher desejada chegava perto da morte, mas escapava por causa de sua vontade de vida no último instante (Disque M para Matar, de 1953, como exemplo máximo), a morte inevitável de Marion é obra do gênio do diretor, que, tomado de culpa por seu desejo, só pode se livrar de sua protagonista. O diferencial se dá no tempo de ação: se a culpa em Hitchcock parece sempre acompanhar o desejo, por vezes antecipando-o, a violência da morte de Marion Crane indica o quanto esta interdição, mais que interditar, está resolvendo um problema, correndo atrás para impedir o já exposto (o corpo, o prazer, o sexo), no fundo, tentando limpar o olhar contaminado pelo pecado. Mas, violência e morte são tentativas abjetas de restituir uma pureza já contaminada. Essa corporalidade é, no mínimo, pouco usual a Hitchcock, cujos filmes lidam mais com imagem/imaginário e sentidos/sensações que propriamente com a materialidade do mundo.

Então, se a modernidade de Hitchcock atravessou os anos 1950 até atingir seu cume em Um Corpo que Cai (1958), Psicose é de alguma forma a modernidade do cinema atingindo Hitchcock – a escrita cinematográfica, da qual o diretor inglês talvez tenha sido o grande decodificador e manipulador, não dava mais conta por si só; era preciso atravessar uma porta, destruir certezas e partir para o contato direto com a materialidade do mundo.

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O gesto violento do assassinato de Marion, então, não é apenas de Norman e sua mãe, na história, ou o do celibatário gênio autoral de Hitchcock tentando varrer a sujeira de seu objeto de desejo sexual, num plano mais interpretativo. É também um golpe na própria organização desse prazer de olhar que a cena ilustra. Se o grande pilar do cinema até então é o personagem psicologicamente acabado com quem o público se identifica e que guia sua percepção ao longo da história – a orientação, a unicidade, a transparência –, a morte de Marion simboliza uma mudança formulada pelo mestre dessa organização numa explícita autoconsciência da imagem e dos valores atrelados à sua construção, como gênero, narratividade, transparência, manipulação, artifício, clichê, usado aqui para sua auto-des(cons)tru(i)ção.

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Quando o corpo morto de Marion Crane mira fixamente a câmera, não se está diante de uma simples quebra da quarta parede e da ilusão de um mundo que se passa diante dos olhos, e sim a proposta de um novo jogo passando pela consciência de que olhar-ver-observar é uma relação entre o objeto e o observador. O cinema agora é um observador desnudado. Norman Bates, o solitário perturbado, preso a uma ilusão auto-suficiente, somos nós, espectadores.

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