De Palma, exilado: uma viagem do olhar

fevereiro 9, 2014 em Em Pauta, Raul Arthuso

Passion (2012), Brian de Palma

Passion (2012), Brian de Palma

por Raul Arthuso

Dentro de sua geração, Brian De Palma foi o cineasta de relação mais ambígua com Hollywood. Mesmo dentro do sistema, nunca foi inteiramente colocado no verdadeiro lugar que lhe é devido; por sua vez, nunca rompeu com ele, ainda que mantivesse uma postura crítica com o imaginário da indústria. Os anos 1990 marcam o auge da tempestiva relação com a Hollywood que o diretor ajudara a formar na década de 1970 e na qual sempre conseguira se manter. Até que, com Missão: Marte (2000), algo se rompe e o próprio filme testemunha esse rompimento. Trata-se de uma viagem espacial na qual o personagem conscientemente abandona seu lugar (os Estados Unidos) e seu tempo, viajando a Marte sem garantias de um retorno próximo. É, portanto, uma história de exílio voluntário, por razões profissionais primeiramente, mas depois, no filme, por motivos pessoais: ao final da missão marciana, Jim McConnell contempla o infinito, vê diante dos seus olhos a história da vida na Terra e tem uma visão total do universo ao alcance de sua mão. É uma metáfora da “visão total” capaz de enxergar a vida enquanto fenômeno e abstrair a relatividade do tempo e do espaço: para Jim, tudo agora faz sentido e portanto não é mais fundamental apegar-se ao que quer que seja.

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Missão: Marte (2000), Brian de Palma

Esse questionamento filosófico se manifesta nas entranhas de Missão: Marte, por sua vez, também uma viagem em busca de uma “visão total”, livre de um afã pela pertinência, lapidando as imagens por especulação: ao mesmo tempo em que contém em si todo o imaginário do cinema de ficção científica feito ao longo do século XX, essas referências trucidam a possibilidade da identificação individual delas a partir do momento em que são sobrepostas. 2001 – Uma Odisséia no Espaço (1968), Viagem à Lua (1902), Contatos Imediatos de Terceiro Grau (1977), Perdidos no Espaço (1968)… A busca por uma visão do infinito, da essência, turva o detalhe rococó, embaralha as formas e cria novos sentidos, sensibilidades e arranjos a partir dessa sobreposição. O filme é o ponto de explosão da virtuose maneirista, um caminho sem volta, da possibilidade de ver além do já visto e, por isso, Missão: Marte é uma prospecção de um possível novo olhar longe de casa, longe da cultura norte americana.

É este o começo de Femme Fatale (2002), ressaca desse processo, no qual a câmera se afasta da tela da televisão que mostra o clímax do filme Pacto de Sangue (1944), de Billy Wilder. Seguido a esse traveling que se afasta da imagem do filme noir clássico, o gênero americano que mais impactara os europeus no pós-guerra, revela-se que a ação se passa em solo francês. O cineasta cria seu alterego na figura do fotógrafo Nicolas (Antonio Banderas), também ele um estrangeiro, na França a trabalho. Exilado como De Palma, Nicolas passa seu tempo livre dedicado à sua arte, observando cenas cotidianas e captando fragmentos fotográficos para compor um grande painel que forma a imagem daquilo que se passa em sua janela. Não seria esse painel a metáfora perfeita do ideal maneirista e da essência da mise en scène de De Palma até então? A arquitetura em devir de imagens ganha uma lado trágico, pois essa série de fragmentos busca compor uma “visão total”, a mesma de Jim em Missão Marte, ainda que essa reconstituição seja impossível, pois imprecisa: ela será sempre uma reconstituição de fragmentos, nunca uma representação do todo. Esse é a tragédia do cineasta: o sonho, o devir, o eterno retorno… repetir as mesmas imagens e investigar suas obsessões a troco de perseguir uma contemplação distante, melhorar um detalhe em cada nova obra, mas no fundo não poder captar o sentido primeiro disso. Repetir Um Corpo que Cai (1958) e Psicose (1960) ad infinitum sem efetivamente conseguir repeti-los. Nesse sentido, Femme Fatale introduz uma idéia de imagem metaforizada abertamente logo em seguida, em Dália Negra (2006): Hollywood – e o cinema – como um grande cenário construído sobre um pântano onde todos afundarão com suas imagens, conscientes ou não desse fim.

Femme Fatale (2002), Brian de Palma

Femme Fatale (2002), Brian de Palma

Assim, parecem naturais os desdobramentos de seu cinema em Guerra sem Cortes (2007) e Passion (2012). O primeiro traz um impasse: é todo feito de estilhaços de simulacros, como restos de linguagem recolhidos após a explosão do maneirismo de Missão: Marte. Não existe em Guerra sem Cortes a imagem-matriz, como Um Corpo que Cai para Dublê de Corpo (1984) ou Psicose para Síndrome de Caim (1992), mas “mise en scènes-matrizes”: a televisão, os streamings de internet, os diários filmados com camcorders pelos soldados, as câmeras de vigilância. A montagem aqui, diferentemente de seu cinema até então, não exorciza um imaginário que é recomposto em abismo pela mise en scène, mas tenta compor uma imagem inacessível: os simulacros de real dão a ver aquilo que não apenas Hollywood não mostra, por mais que Guerra ao Terror e congêneres cumpram certa função de expurgar a culpa liberal dos artistas, mas que é inacessível a qualquer tipo de mise en scène que não esta de Guerra sem Cortes. É um filme que duvida, ao mesmo tempo em que arrisca criar o paradoxo de um simulacro que não imita, mas inaugura, que vê pela primeira vez. As imagens não dão conta do inferno da guerra e da situação das personagens, pois se originam distantes, criadas a partir de um filtro de simulacro que visa quebrar certas barreiras, mas que ao mesmo tempo impede uma aproximação completa. A imagem está presa em seu próprio jogo, um eterno retorno de simulacros, uma descida sem fim ao inferno, um infindável resgate da intensidade que o depoimento final deixa como um tira-gosto de um filme que termina com a impressão de nunca ter começado.

Guerra sem Cortes (2007), Brian de Palma

Guerra sem Cortes (2007), Brian de Palma

E, então, este impasse desemboca em Passion, um filme de um exilado assumido, disposto a cumprir certos protocolos autorais – o suspense, o virtuosismo, o erotismo – enquanto aponta, por outro lado, para uma re-invenção, uma tentativa de superação do impasse criado desde que iniciara sua viagem em Missão: Marte. Em Passion, De Palma arma um novo discurso do olhar, como se após o inferno de fragmentos de Guerra sem Cortes fosse necessário recomeçar a olhar o mundo. Não parece acaso que este seja seu filme mais identificado e dedicado a um protagonista desde O Pagamento Final (1993). Sonho e realidade se confundem numa trama em abismo mais complexa que a proposta de Femme Fatale, mais claramente blocada como um longo sonho, e a mise en scène se constitui de um mergulho com a personagem em suas sensações e em seu olhar.

É estranho ver um filme de De Palma em que seu virtuosismo se mostra contido e a trama de suspense, paranóia e confusão mental não se apropriam do imaginário hitchcockiano. É um De Palma diferente, disposto a uma identificação do olhar para colocá-lo em crise. Sua tese se condensa em uma cena: a do espetáculo de balé, na qual De Palma usa um recurso considerado sua “marca registrada” – a divisão da tela em duas – mostrando momentos concomitantes. A cena começa com um olhar da personagem de Noomi Rapace para a lente da câmera, observando algo no fora de quadro. O corte para a apresentação de balé (uma peça clássica) nos leva a crer que ela acompanha o espetáculo, até que a tela é dividida com a festa na casa da personagem de Rachel MacAdams, que termina com seu assassinato a sangue frio, filmado por uma câmera que dá a visão subjetiva do assassino. De um lado, o olhar emula o papel do observador do teatro, imóvel; do outro, o assassino em movimento. É uma seqüência de paralelismo: ela propõe uma simultaneidade entre um olhar fixo e outro em movimento, entre o belo e o grotesco, entre a arte e o assassinato, a vida e a morte. Mas, principalmente, propõe um questionamento: como podem conviver duas visões tão contraditórias no mesmo olhar? Quando, mais à frente, o filme coloca as duas ações vistas em paralelo como consecutivas e o observador das duas cenas sendo o mesmo, percebe-se não serem tão contraditórias as duas visões – são frutos do mesmo autor, o mesmo olho e agente. Trata-se de um truque do cineasta que discute sua assinatura e a coloca em xeque ao expor o procedimento: não se tratava de uma visão do cineasta, que decidira, como autor-demiurgo, mostrar duas ações que acontecem ao mesmo tempo, mas da visão simultânea de o que a personagem enxergara em dois momentos diferentes. Estamos, nos dois planos que dividem a tela, ao lado da personagem. É ela quem vê e move a divisão da tela.

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Passion (2012), Brian de Palma

A modernidade da travessia realizada por Brian De Palma de Missão: Marte a Passion é a síntese de um processo de percepção da mudança do mundo: o poder dos filmes criados pela geração de De Palma e seu imaginário já se diluíra num sem número de estilhaços de imagens que o cinema dos anos 1990, a televisão, o videoclipe e a internet banalizaram. A busca de alternativas desemboca numa remissão: a atenção para as contradições do mundo e sua representação, os estilhaços de imagens, os fragmentos, um devir alternado entre belo e feio, vida e morte, presença e ausência. Os Estados Unidos de De Palma, a Hollywood e o imaginário de seus primeiros dias como cineasta não existem mais. Para um novo mundo, é preciso um novo olhar.

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