Três Irmãs (San Zimei), de Wang Bing (Inglaterra/Hong Kong/China, 2012)

março 1, 2015 em Em Vista, Victor Guimarães

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A China como uma infância
por Victor Guimarães

“a vida manifesta,
aberta como uma bela granada;
liberta da sua capa,
assimilável,
bárbara.
Teatro da pele.
Nenhum estremecimento me escapa.
Um deslocamento de planos contraria meu equilíbrio.
Projetado sobre a tela, aterrisso na entrelinha dos lábios.
Que vale de lágrimas, e mudo!
Sua asa dupla enerva-se e treme, hesita, decola, se esconde e foge:
Esplêndido alerta de uma boca que se abre.
Diante de um drama acompanhado assim de binóculo, músculo por
músculo, qual o teatro de palavra que não se afigura miserável?”

Jean Epstein, Estética da proximidade

“Contra a possível determinação e distinguibilidade do futuro
está o fato de o mundo se renovar a cada dia por meio do
nascimento e, pela espontaneidade dos recém-chegados, está sempre
se comprometendo com um novo imprevisível”.

Hannah Arendt, O que é política

Poucas cinematografias nacionais, hoje, podem contar com dois cronistas do tamanho de Jia Zhang-ke e Wang Bing. Dois cineastas muito distintos, mas que se aproximam em um aspecto fundamental: ambos assumiram, desde que começaram a filmar, o imenso trabalho de narrar um país. Seja em suas numerosas crônicas da contemporaneidade, seja em suas incursões ao passado recente – Plataforma (Jia Zhangke, 2000) e A Vala (Wang Bing, 2010) –, o que emerge das obras de ambos é uma tarefa maiúscula, que, em grande medida, parece ter saído de cena depois dos anos 1960: fazer cinema para enfrentar as contradições de uma identidade nacional; narrar, mesmo filmando no presente, vidas atravessadas pela História da China, para confrontá-las com as grandes narrativas dos vencedores.

Em Jia, a escolha pela alegoria é bastante clara desde seu primeiro longa (e atinge um ápice em Um Toque de Pecado, de 2013). Em Wang Bing, o que predomina é um acompanhamento extraordinariamente próximo das vidas singulares (cinema da matéria, “teatro da pele”) – vidas que, no entanto, são atravessadas pelas grandes transformações do país (essas que encontravam uma síntese na cartela que abria A Oeste dos Trilhos (2003) e era como uma carta de princípios do realizador). Mas se, como anotava o crítico chinês Lu Xinyu em seu texto na New Left Review, o objeto daquele filme era, de saída, “épico” – “o crepúsculo de todo um mundo social, junto com todas as esperanças e ideais que o criaram” –, logo na primeira sequência de Três Irmãs já nos damos conta de uma diferença fundamental: pelo menos à primeira vista, o que Wang Bing filma aqui não é a grande História, mas o mundo particular de três crianças, seu cotidiano entre o trabalho e a brincadeira, suas angústias e suas pequenas conquistas. Se é verdade que a História nunca deixa de se aninhar no fora de campo (Yingying, Zhenzhen e Fenfen são três crianças extremamente pobres, que habitam uma pequena aldeia isolada no norte do país, abandonadas pela mãe e vivendo sem o pai porque ele teve que procurar trabalho na cidade), o interesse central do filme é pela materialidade insubstituível dessa experiência. O que acompanhamos durante duas horas e meia é o descortinar de um mundo infantil; um mundo, por princípio, imune à alegoria. Afinal de contas, as crianças são esses seres que chegaram ao mundo tarde demais para sentir na pele o peso da História, e que vivem um momento da existência em que ainda é cedo demais para compreender sua gravidade.

Na primeira cena, esse mundo nos é apresentado em um episódio corriqueiro (mas nunca banal): as três irmãs se preparam para dormir na cabana fria de chão de terra, e, enquanto isso, conversam, riem, brigam com um pedaço de ferro, retiram o barro das botas, choram, fazem ameaças de morte uma à outra, cantam uma canção romântica, correm e riem novamente. A câmera, sempre ao rés do chão, quer estar à altura das crianças: quando seus corpos ocupam todo o quadro, em uma frontalidade fordiana, a cabana ao redor nos aparece imensa, vasto território a ser ocupado por elas. Desde o primeiro plano, Wang Bing sabe que alegorizar apressadamente esse mundo (construindo uma ponte narrativa entre uma cena e outra, entre a trajetória individual e a história coletiva) é trair algo de sua vitalidade fundamental: a infância é esse mundo à parte onde as contradições de um país ficam suspensas diante de uma querela entre as irmãs por um brinquedo, onde as explicações historicizantes não fazem o menor sentido, pois só o que interessa é viver o presente da descoberta de uma nova fruta, um novo inseto, um novo movimento possível do próprio corpo.

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Mas se Três Irmãs sabe erguer um verdadeiro monumento à infância – à altura de Alemanha Ano Zero (1948) de Rossellini, de A Infância Nua (1968) de Pialat, de Teremos Infância (1974), de Aloysio Raulino -, sabe também desenhar cinematograficamente cada uma de suas personagens. Fenfen, a mais nova, tem quatro anos e é pura aleatoriedade. Nunca é possível prever para que lado do quadro ela irá se mover, quando irá parar, a qual novo objeto dedicará sua atenção; no interior do plano, de um segundo a outro, ela passa da empolgação risonha e ruidosa ao abismo do choro interminável. É a graça, o acaso e a beleza em estado puro. Zhenzhen é a do meio: jovem demais para liderar, velha demais para atrair todos os olhares. Grandinha para ser carregada nos ombros do pai como Fenfen, pequena demais para não tropeçar nas próprias pernas quando tenta correr atrás deles. Coadjuvante, indecisa, é pura transição entre o que já não é e o que ainda não passou a ser. Yingying, a mais velha, é a incidência do trágico. Tem apenas dez anos, mas, para todos os efeitos, já é uma adulta, responsável por cuidar das irmãs mais novas, obrigada a assumir uma responsabilidade que não cabe em seu corpo franzino. Vive um momento em que, de forma absurdamente precoce, já não pode mais ser inocente. Boa parte do filme (que é o núcleo de Sozinha,  versão mais curta de 2013, que também circulou nos festivais) é dedicada a ela, e é ali que percebemos todas as camadas de sua estranha e fascinante subjetividade.

Poderíamos descrever um arco dramático em Três Irmãs: o cotidiano das meninas que vivem sem os pais, numa interação difícil com os avós e tios; o ponto de inflexão em que o pai volta da cidade e leva consigo as duas menores para acompanhá-lo na busca de um novo emprego; a permanência da mais velha e seus novos conflitos; a volta do pai à aldeia, com uma nova mulher e uma filha adotiva. Mas, como em toda a obra de Wang Bing, os grandes acontecimentos do drama são quase irrelevantes perto da inesgotabilidade dos detalhes das pequenas situações cotidianas, das camadas que se superpõem em cada cena, do tempo qualitativo que se enche de movimento a cada plano. A decisão do pai é tão importante quanto as estações que se transformam, a colheita do esterco, o cuidado com os porcos, a preparação da comida, as caminhadas pelas montanhas. A beleza das paisagens e a graciosidade dos sorrisos das meninas caminham lado a lado com a aspereza do trabalho, a dureza das condições de sobrevivência, a tristeza diante da injustiça dos mais velhos. Pois, desde A Oeste dos Trilhos, a câmera de Wang Bing consegue uma proeza rara: a de ser, simultaneamente, profundamente observacional e inteiramente implicada nas situações. Mise en scène contida, prefere não intervir verbalmente na cena, sem nenhum fetiche pela exposição constante do antecampo. Há um minucioso trabalho de construção de um mundo fílmico diante de nós, e é preciso olhar com atenção, sem concessões a qualquer palavra exterior à cena. Mas a câmera está sempre perto demais, dentro demais para não se deixar perceber, para não ser tocada pelo olhar ou pelo corpo. Quando Zhenzhen sai em disparada ao encontro de Fenfen na cabana, a câmera que espera não hesita em se transformar em câmera que persegue; o corpo que observa não vacila e parte em seu encalço. A menina (nos) olha, para, quase toca a tela antes de continuar a corrida. E se não há fetiche da reflexividade, tampouco há fantasia da transparência: quando o cobrador do ônibus pergunta pelo homem da câmera, não há titubeio em dizer que sim, ele está lá e os acompanhará na viagem.

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A obra de Wang Bing é um cinema da presença em um sentido muito próprio: o mundo que se descortina diante de nós é um mundo também habitado por aqueles que filmam – que permanecem em silêncio, mas se amalgamam a tudo que vemos. Como as conversas que se misturavam ao som ininterrupto dos caminhões em O Dinheiro do Carvão (2009), como a respiração ofegante que impregnava o plano desde as caminhadas sobre a neve em A Oeste dos Trilhos e agora partilha do cansaço dos que sobem a colina. Mas, como em qualquer filme de Wang Bing, a descrição aqui é fadada ao fracasso. Qual teatro de palavra crítica não se afigura miserável diante do conforto estampado no rosto de Zhenzhen ao descobrir que um curativo pode aliviar seu ferimento no pé? Ou da raiva inesperada que contamina a cena quando Yingying é acusada de bater em uma colega? Como descrever a densidade da neblina que se vê do alto, os ruídos dos porcos, esse caminhar titubeante entre o barro que parece descobrir um jeito de andar a cada passo? Ou esse momento sublime em que o pai chega à aldeia, e tudo parece estar suspenso por um golpe inesperado da felicidade que desaba sobre o plano? Como definir a sensação de presenciar o surgimento dessa nova Zhenzhen que, de volta à casa dos avós, atravessa um canto escuro e agora nos arrebata com um cabelo enorme e desgrenhado (qual uma pequena estrela de rock n’roll), e que nos mostra que, enquanto estava fora, aprendeu a arrotar? Filmar a infância de tão perto é obrigar o espectador a adivinhar o mistério da densidade de cada rosto, a grandeza de cada pequeno gesto. É nos fazer redescobrir, com o cinema, que quando éramos crianças o tempo passava de uma maneira diferente: toda ação levava mais tempo, toda tarefa banal era mais custosa; mas, também, cada pequena descoberta era uma rachadura no tempo, uma galáxia inteira que se abria diante de nossos olhos. Filmar de tão perto, e por tanto tempo, é nos colocar diante do exato tamanho da tragédia que constitui aquilo que eles, os adultos, enxergam como uma birra. No momento em que escrevo, uma criança chora copiosamente no prédio vizinho. Graças a Wang Bing, meu corpo agora sabe que esse choro carrega toda a tristeza do mundo. E que o sorriso que se seguirá a ele terá a imensidão de um milagre.

E o que esse cinema também nos faz reconhecer, uma vez mais, é que a política pode estar também ali, nesse microuniverso irredutível à alegoria. Em uma entrevista à revista Les Inrockuptibles à época de A Oeste dos Trilhos, o realizador dizia: “Eu não sei se realizei um filme político, mas a política faz parte da vida, e eu filmei a vida”. É de política também que é feito Três Irmãs. Perto do fim do filme, Yingying acompanha o avô até uma aldeia vizinha. Enquanto ela observa o jantar, tímida, encostada na soleira da porta, o chefe da aldeia explica aos cidadãos que o governo está construindo novas vilas – modernas, com casas de alvenaria e eletricidade – ao redor, mas que é impossível arcar com os custos dos novos impostos que virão. Os camponeses se veem diante de um impasse, e é preciso tomar uma decisão logo. Todo um modo de vida – esse que conhecemos nas duas horas que nos levaram até ali – está diante da marcha inelutável do capital, e a civilização triunfante e inevitável ameaça com sua chegada.

Mas o principal traço de pensamento que emerge dessas imagens e desses sons é esse que afirma – sempre pelos sentidos, sempre passando pelo corpo – que a política não existe apenas nesse momento em que os poderes se tornam perceptíveis na fala dos camponeses. Ela já estava lá, muito antes, a perpassar todo o filme. Pois o que Wang Bing descobre junto dessas três irmãs é o mundo em pleno processo de inaugurar-se. Filmar os passos de uma criança que descobrem o chão, filmar o olhar de uma menina que vê uma cidade pela primeira vez, é nos colocar diante de um estado de inauguração das coisas, dos movimentos, dos seres. Filmar a China na altura dos olhos de três meninas é descobrir que o cinema pode ser o abrigo daquela natalidade concebida por Hannah Arendt para definir a vitalidade da política, essa atividade humana que desafia a previsibilidade dos roteiros do poder e ousa imaginar o começo de uma nova maneira de estar juntos. Se “o milagre da liberdade está contido nesse poder começar”, e se a política é sinônimo de invenção, filmar a China como uma infância é fazer crer – por duas horas e meia ou para sempre – que a História não acabou, que os possíveis da vida não foram esgotados de uma vez por todas pelo capital, e que um país novo pode estar ali, à espreita, na geografia inaugural dos gestos de Fenfen, Zhenzhen e Yingying.

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