umfilmedecinema

“E uma pequena vos guiará”

Alguns alunos se metem a fazer um filme para um trabalho de escola. A filha pede a câmera ao pai, ele diz que não – “é um equipamento caro” –, ela faz birra. Sem jantar com o resto da família e sem a mãe conseguir convencê-la, o pai vai até o quarto e cede, empresta a câmera. Nunca veremos esse filme – apesar de, ao fim, sabermos que é genial – mas temos algumas pistas: ela vai ao encontro da diretora da escola, da faxineira, do porteiro, do morador de rua, do próprio pai e faz perguntas profundas: “o que é a vida?”, “o que você mais gosta?”, “qual seu maior sonho?”, “por que você escolheu sua profissão?”. Nesse ínterim, a curiosidade infantil aparenta se aliar ao esforço do filme de criar uma cartilha filosófica, instruindo novos horizontes para as crianças. Perguntar é bom – crianças normalmente são prenhe de dúvidas – então que façam as perguntas certas.

Há um problema grave em Um Filme de Cinema, de Thiago B. Mendonça, que perpassa sua direção de atores de educacional televisivo noventista e sua direção de arte berrando a cada plano um novo repetido azul e vermelho. Parece que, ao passo que nos afastamos da infância, mais criamos uma imaginação fantasiosa própria sobre o que é ser criança, “infantilizando a infância”. O filme aposta na inversão da equação: dar a um universo selvagem um caminho que lhe cabe, “adultizando a infância”. A pedagogia defendida pelo filme, que se diz libertária (e, no fundo, é somente marxista) é, na verdade, doutrinadora: a criança deve se portar com toda a liberdade que o adulto acha que ela pode ter. Uma liberdade imposta, nunca realmente livre. Um problema, enfim, de etnocentrismo. A perda da inocência, palavra tão enganadora em se tratando desse universo, não é pela experiência do mundo, mas por uma pavimentação de uma estrada atribuída a ela. Em Filme de Cinema parece não haver livre-arbítrio para se andar com as próprias pernas, pois existe um caminho específico da diferença. Como dizia Gregório Bacic, diretor de Retrato de Classe (1977), “crianças são diferentes e, no entanto, estão cercadas por especialistas do igual”. Uma igualdade que estabiliza qualquer diferença. No fundo, mais adulto, impossível.

Trata-se de erro proporcionalmente intrusivo pois, assim, toda a grande potência filosófica da criança é drenada à mercê de um dogma da subversão. “Tudo o que não invento, é falso”, dizia Manoel de Barros sobre as brincadeiras infantis. Em Um Filme de Cinema, tudo que se cria é para se reinventar uma roda pré-fabricada da insubordinação. O filme quer poder dar uma nova coloração aos passarinhos, enquanto há muito as crianças – mestras da aquarela – já escutam as cores de seus cantos. O que tendemos a chamar de ingenuidade, em uma criança revela-se uma relação mais direta com as coisas, sem mediações dispersas, uma franca disposição de não regular um sentido prévio. A inocência pode ser vista também como uma subversão dos sentidos. Há, nelas, poucas – ou nenhuma – verdades absolutas; em seus olhos, uma moral desguarnecida, em convoluta formação. Sem raízes profundas, ficam libertas de ideologia e mais concentradas ao que lhes concerne agora.

Esse é um frescor que possibilita um vai-e-vem de opiniões, que no filme quase nunca vemos. Sabemos o que é a vida, o maior sonho, etc… dos adultos. Nossa relação é mediada por esse atravessamento adulto, o que não é um problema em si, não fosse o próprio filme calcado na ideia de que “as crianças são muito mais inteligentes do que a gente pensa” – vide a troca de DVDs que faz com que o pai ganhe o prêmio do festival exibindo o filme de sua filha, uma renovação surpreendente e criativa em sua filmografia.

Com esse “ensinamento intrínseco”, Um Filme de Cinema reflete sua barreira: assume com suas próprias mãos de adulto a tarefa de provar sua tese por outrem. E, assim, o que vemos é uma pedagogia canhestra, para não falar demagógica, sobre o que é certo e o que é errado para elas, nunca segundo o que a criança vê no mundo, mas no compasso imposto pelo filme. Nesse sentido, talvez a mais justa medida fosse deixar vermos o filme, senão da filha de Rodrigo Mendonça, um outro, feito pela filha do próprio Thiago Mendonça.

Toda a sequência dela procurando por seu cachorro até seu inesperado encontro aponta uma coragem tenaz: rebeldia infantil ou infantilização sobre a radicalidade? Sua coragem é recompensada não só com seu cão de volta, mas com o esbarrão em um anjo. Até então, todos os personagens negros do filme eram tristes ou subservientes, e as relações eram apaziguadas, mas aqui as circunstâncias avassaladoras do capitalismo dão vez a uma desilusão amorosa tão profunda que o personagem se desliga de tudo e acaba na rua. Não há qualquer possibilidade de ele ter alguma complexidade em sua personalidade, pois precisávamos ser empurrados pela ideia de que qualquer um pode ser alguém interessante, gentil e generoso… “até mesmo um morador de rua”(!). Perto dele, a moça que adorava pombos em Esqueceram de Mim 2 ganha auras dramáticas shakespearianas. Para uma criança o estranhamento vem de aviso prévio: tenta-se criar uma tensão pelo eventual risco de se sair por aí, sozinha, e quebra-se esse “perigo” com a “surpresa” de um velho bonzinho que dorme ao relento. A velha tentativa de desmontar preconceitos sendo preconceituoso, aliada à chapa-branquice de sua personalidade, inverte sua proposição: toma-nos, adultos e crianças, como preconceituosos.

Por fim, o lúdico. Não há filmografia com o vapor de magia condensada tão intenso como a de Charles Chaplin. Um Filme de Cinema tenta resgatá-lo, junto a Buster Keaton, Georges Méliès, O Mágico de Oz (1939) e outros fundadores de uma nova realidade chamada “encanto”: enxergar a Terra pelos olhos do cinema, seja pela lente que filma ou pela tela que arrebata, reverberando a poesia no mundo. Mas aí, neste ensejo de uma história do cinema, muitas vezes o imitador é um pai que perdeu a graça, um ex-palhaço que não faz mais rir, ou sua filha que segue seu caminho (a única, cheia de graça, é sua irmãzinha mais nova). Poético seria se houvesse fricção nesta contradição, se houvesse fascínio na imitação sisuda de um Keaton que nem a real tristeza consegue alcançar… em um Méliès apático que empurra uma mágica centenária aqui ou acolá com seu sorriso fugidio pouco ilusionista.

Um modelo exemplar do abismo entre o discurso de intenções em Um Filme de Cinema para o mundo que de fato se projeta em tela está na inclusão de uma rápida cena de Zero de Conduta (1933), de Jean Vigo, das crianças se rebelando. Cerceadas por um acúmulo rígido de regras, elas confrontam a própria ideia de terem qualquer missão no mundo. As plumas de seus travesseiros esvoaçados são o mais simples sinal: se houver imposições, haverá revolta.