corpodelito-header

“Eu sou a lei, foda-se a lei”

De um lado, Corpo Delito lida com um dos temas mais urgentes do país – o sistema penitenciário brasileiro e sua burocracia burra e sufocante; de outro, toca de forma aguda num dos grandes dramas da condição humana – a restrição, neste caso, parcial, do livre-arbítrio. Ivan Silva foi preso. Depois de anos de cadeia e, supostamente, bom comportamento, ganhou o direito à liberdade condicional: trabalha na fábrica-escola e volta para casa de tornozeleira. Em sua rotina, não deve desviar desse trajeto. No primeiro diálogo do longa, uma psicóloga conversa com Ivan sobre seu “desejo de vida”. Ele tem vontade de fazer muita coisa e a tornozeleira acaba limitando-o. Ele não pode errar em nenhuma das “3 coisas”: não pode deixar a família, não pode quebrar a pulseira, não pode abandonar o trabalho. Está dado o conflito: a tornozeleira, este pequeno objeto eletrônico que nunca cessa de apitar durante a projeção confronta seu jeito de ser, prende sua liberdade. O arco do filme é um mergulho em sua ressocialização, palavra tão gasta e tão mística.

Ressocializar: tornar-se social ou sociável novamente. Na lógica de alguém que acabou de estar encarcerado, pensa-se (enganosamente) que uma liberdade pela metade é um fruto monumental: a pessoa se transfere de um claustro a outro, mas, nesse novo reduto familiar da casa, reaprende paulatinamente a se socializar, se deparando com velhos entes conhecidos. Difícil escapar, assim, de sua casa como centro gravitacional; de um filme de internas, onde meros segundos a ver o mar se transmutam em um respiro aliviante; de um filme com raras pessoas fora do seu círculo social que lhe deem recondicionamento sobre o que é a diferença.

Pedro Rocha consegue uma proximidade com suas personagens e, assim, trabalha com desenvoltura uma dada espontaneidade, mesmo que ocasionalmente haja ainda uma desconfiança no ar: Gleici, no plano em que seu marido fala ao telefone no quarto, dá uma espiada para ver se a conversa está sendo registrada, e Ivan, ao ajudar seu amigo a sentar na cadeira de rodas, olha ao fundo para a lente da câmera, como se houvesse um outro elemento de vigia para além da “tartaruga no pé”. Ivan nunca está realmente à vontade, seu olhar não se engana: está sendo duplamente monitorado. Os infernos são os mesmos.

Esta “monitoração” parece querer compensar o fardo de vigília inevitável através de uma justiça poética trêmula que nunca chega. A primeira e talvez maior sabedoria do filme é a de não transformar o caso em um julgamento moral: jamais saberemos qual é seu crime. Isso não importa. O que importa é seguir a vida de Ivan. Suas outras pequenas escolhas éticas geralmente são acertadas, como não filmar, num primeiro momento, o rosto do homem do judiciário que solta a asneira “a vida na fábrica-escola é melhor que a minha casa”, só o registrando quando ele decreta a manutenção do regime em semiliberdade. Parecemos estar diante de um filme que sabe bem o que não fazer e que é conduzido por acertos em cada tópico.

Mas sabemos que no reino da arte “acerto” é uma palavra que não condiz necessariamente com justeza, e a promessa de alguém tão cheio de vida nunca se dá em tela. A princípio, isso parece algo inerente à condição de Ivan: estaríamos diante de um filme sobre a privação de uma pulsão de vida. Mas nesse caso, o que interessa não seria justamente a contradição? A força do conflito não seria experienciar essa vida sendo podada? Isso não está no Ivan em cena; no máximo, podemos tentar mentalizar o vislumbre dessa pulsão em Ivan nas palavras de Neto, quando, na praia, avisa sereno, que seu amigo tá infringindo a condicional por várias noites. Lá pela última parte do filme, vemos por alguns segundos ele bêbado, comemorando a virada do ano e outra hora ele numa festa sentado, coberto de farinha. A alegria, que poderia contaminar, fica longe, é derrubada pela frieza da câmera que entende como ninguém de composição do quadro e harmonia, mas tem muito pouco de sentimento – uma composição que ilustra mas não se envolve. A frieza se dá outras vezes, impávida diante da polícia que revista Neto; imersa na distância branca da sala de espera com Neto e Gleici, avoados, enquanto Ivan, na sala ao lado, recebe a pior notícia de sua vida.

Essa falsa pista que a psicóloga dá logo de cara sobre um “desejo de vida” é a fagulha do procedimento recorrente de Baronesa, por exemplo. Enquanto lá a intenção de cada cena era ver uma combustão acontecer diante da câmera, diante de nós espectadores, era achar a tal Graça nessa fricção das relações, mesmo com todo o contexto da guerra por trás, em Corpo Delito, a seriedade da questão sociologiza o olhar – uma sociologia humanista, cáustica, mas ainda assim, estatística. Então, o que se tem é uma postura “precisamos falar sobre isso” e, com ela, toda uma rigidez de abordagem.

Essa seriedade se desdobra em fleuma: um olhar cirúrgico, analista sobre as coisas, que nos apontam recorrentemente para a ideia do incontornável. Pode se chamar tal atitude de realista, mas também de impassível. Essa insensibilidade não é uma reivindicação por um assistencialismo barato, que ajude Ivan a sair dessa – não, de novo: suas atitudes políticas em relação ao mundo são condizentes, mas moral é uma questão de travelling também. A introdução de um assunto urgente a um público (relativamente) amplo é louvável, mas que não caiamos, como dizia Francis Vogner dos Reis, na falácia da “seara dos documentários necessários”: não basta ilustrar, não basta que as imagens tenham rigor; é preciso vigor.

Muitas vezes, uma câmera escreve por linhas tortas, linhas que são seguidas de outras encadernações prévias, outros cadernos de cinema. Dado o manancial de documentários brasileiros recentes que visam a alteridade periférica, a estratégia de Corpo Delito parece consciente dos erros mais grosseiros cometidos quando uma câmera se instala em uma outra realidade distante. Não fetichiza, mas também mantém uma distância asséptica. O material em mãos é promissor – uma reinvenção de si sendo castrada – mas para existir reinvenção é preciso que se observe antes o “si”. Sabemos que Ivan, assim como Neto, assim como uma multidão da periferia e além dela, gosta de Racionais. Sabemos que Ivan tem uma suástica tatuada na mão. Sabemos que Gleici tem um buraco, aparentemente de bala, na coxa. Esses signos instigam e revelam a frustração de nunca podermos travar um real contato com essas pessoas, diferente, por exemplo, de Baronesa onde esses detalhes – como a própria tornozeleira em Negão – acumulam camadas de profundidade. A câmera imóvel é um sinal: uma fotografia de longa exposição precisa que não haja rompantes. O método da sociologia aí é científico: da hipótese (a tornozeleira ajuda, mas não é solução para o problema carcerário), cria-se uma teoria (a tornozeleira é melhor do que a prisão mas ainda assim é sufocante) e confirma-se a lei (Ivan não aguentou a claustrofobia da tornozeleira). É um trajeto teleológico com a previsibilidade trágica do fim. Neto, no último plano olhando para o horizonte, discute qual é a boa do fim de semana com o amigo. Ivan já ficou para trás. É preciso seguir em frente, sempre, não com essa passividade, mas com a dor mobilizante incrustada no coração.


Leia também: