Morro dos Prazeres, de Maria Augusta Ramos (Brasil/Holanda, 2013)

dezembro 23, 2013 em Cinema brasileiro, Em Cartaz, Victor Guimarães

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Transparência e opacidade
por Victor Guimarães

Rever um filme longe de um contexto de festival – e da imediatez de uma cobertura diária – pode ser uma oportunidade e tanto. Permite atentar para detalhes que nos escapam à primeira vista, refinar argumentos, nuançar percepções, reformular juízos. No caso de Morro dos Prazeres, a revisão era uma necessidade: filme nada óbvio, de encenação e montagem complexas, com muitas camadas de sentido e recheado de desafios para o espectador, demandava um olhar mais paciente. Se a argumentação que lanço aqui está longe de ser definitiva (e quando é que é, mesmo?), ao menos tenho a sensação de estar mais inteiro, mais seguro da minha experiência do filme. E como não acredito em crítica que não seja mediada por essa experiência profundamente subjetiva, ser honesto com ela é o mínimo – e o máximo – que posso oferecer.

O filme começa com um prólogo que faz lembrar o epílogo de Juízo (2007), o belíssimo filme anterior de Maria Augusta Ramos. No interior de uma casa entre a ruína e a reconstrução, incrustada no alto de uma favela carioca, algumas crianças encenam alternadamente os papéis de policiais e traficantes: armas feitas de madeira e papel, cocaína feita de serragem. Uma mise en scène muito bem construída apanha a presença dos corpos negros nos cômodos de reboco e fabula junto desses meninos, transformando uma brincadeira infantil em um poderoso comentário sobre o complexo universo de relações ao qual o filme irá se dedicar. Numa cena, os policiais tomam de assalto a boca (“Perdeu! Perdeu!”). Noutra, os traficantes vêm reclamar a droga confiscada, e agora são os agentes da lei os acuados pelas armas, alvos da mesma arrogância guerreira. O leitmotiv da repetição diferida, tão presente na convocação dos dublês (de corpo, de rosto e de fala) em Juízo, reaparece: no jogo das crianças – como no cotidiano que veremos a seguir –, as diferenças entre os mundos são menos óbvias do que aparentam, e as inversões de papéis não serão uma exceção.

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Desse momento em diante, acompanharemos um conjunto de cenas que retratam o cotidiano das relações entre a polícia e os habitantes da comunidade que dá título ao filme, um ano depois da instalação de uma Unidade de Polícia Pacificadora. Ora centrando sua observação no trabalho dos policiais – entre a preparação de novos agentes e as rondas de patrulhamento dentro da favela –, ora no dia a dia de alguns moradores, o filme fará dessa observação de duas faces do mesmo processo social sua força motriz. Quanto à enunciação, o prólogo já anunciava um estilo extremamente preciso e rigoroso, que marcava os longas anteriores da cineasta e atingirá seu ápice no decorrer de Morro dos Prazeres: o quadro quase sempre fixo, composto com exatidão; uma preferência pelos planos médios ou de conjunto, que atentam aos corpos filmados, mas não os isolam do espaço em que se inserem; uma atenção dedicada à cor, que resulta em composições pictóricas memoráveis. De saída, uma constatação importante: Maria Augusta Ramos possui uma consciência da encenação – dos enquadramentos, da luz e dos movimentos dos corpos no espaço – que encontra pouquíssimos pares no cinema brasileiro de hoje, seja de ficção ou documentário.

E se as composições primam pelo rigor plástico, toda a enunciação será atravessada pelo mesmo gesto de controle. Como nas cenas no interior do Instituto Padre Severino em Juízo, a escolha da mise en scène é pela transparência: mesmo bem próxima dos corpos, a câmera não se faz sentir na cena; diante de qualquer fala, o antecampo permanece em silêncio. A operação da montagem segue o mesmo tom: passamos de um plano a outro como se estivéssemos em um filme de ficção clássico (com direito a variação do quadro no interior da cena, raccord de olhar, campo-contracampo). Qualquer vestígio de presença da equipe é eliminado pelas elipses, que nos conduzem com a destreza de uma narração ficcional: o que era o acompanhamento de uma caminhada dos policiais pelas vielas transforma-se em uma “batida” em dois moradores; no plano seguinte, em um diálogo revelador entre as vítimas dessa abordagem; alguns planos adiante, na apresentação do cotidiano de uma delas (Brulaine, uma jovem ex-traficante que, subitamente, adquire a força de uma protagonista).

Mas se a enunciação tende à construção ficcional, a dramaturgia rejeita a linha, a progressão biográfica dos personagens. Embora haja conexões, há uma recusa da curva dramática e uma tendência ao tableau: saltamos de um personagem a outro, de uma situação a outra, e o filme nos apresenta um variado painel das relações entre policiais e moradores, tendo como centro os conflitos no cotidiano da favela pós-UPP. Embora haja um interesse pelas diferentes retóricas em jogo (a aula sobre a “estética da guerra” do coronel para os jovens soldados; o discurso inflamado do livreiro para o dono do bar), Morro dos Prazeres buscará com muito mais afinco perceber as nuances daquilo que não constitui uma elaboração verbal bem acabada sobre o problema. A câmera frequentemente se deslocará pelas vielas e becos, ora acompanhando a vigilância dos policiais, ora perambulando pelo morro junto aos moradores. Tanto as inúmeras revistas da PM quanto os momentos mais íntimos e prosaicos (como as brincadeiras infantis noturnas, na casa de Brulaine) serão igualmente importantes para a tessitura da matéria densa que o filme vem abrigar. Como em Juízo, Morro dos Prazeres se interessa por construir não apenas uma arena de debate, mas um território sensível múltiplo, no qual todas as questões se sedimentam. Os planos noturnos da favela – cuja plasticidade lembra a trilogia das Fontainhas de Pedro Costa, e principalmente Ossos (1997) –, o rosto acuado do morador diante da lei – na conversa com o capitão da polícia – e a imersão nos espaços da periferia não são apenas ilustrações em função de uma narrativa predominantemente discursiva – como em grande parte do documentário brasileiro contemporâneo –, mas a matéria expressiva primeira, à qual o filme dedicará uma atenção sempre muito detida.

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Nesse sentido, a obsessão pela transparência encontra justificação em uma certeira recusa à intervenção verbal, que vem acompanhada de um desejo legítimo de se aproximar dos corpos e das interações de forma mais orgânica, menos explicativa: como em Wiseman, o espectador tem de se virar diante das imagens; é obrigado, forçado a encontrar seu lugar em uma mise en scène que expõe sem explicar. Diante de uma questão tão pungente e intrincada, esse mergulho em um realismo de presença – num gesto em que Morro dos Prazeres encontra filmes como O Céu sobre os Ombros (Sérgio Borges, 2010) ou Avenida Brasília Formosa (Gabriel Mascaro, 2010) – parece encontrar uma justa medida.

No entanto, se a decisão pela transparência e pela proximidade rende momentos de força arrebatadora (o samba cantado pela avó na volta do hospital; a afetividade entre as policiais mulheres), por vezes o controle da cena – que é o que permite a aproximação – é justamente o que impede que nos entreguemos sem ressalvas a essas imagens. No afã de nos colocar em contato com a ambigüidade do mundo – de forma direta e orgânica –, Morro dos Prazeres acaba por encontrar o artifício, a opacidade. Quando a câmera que acompanhava a polícia encontra Brulaine para mais uma abordagem humilhante, a coreografia que vemos diante de nós – antes repleta de uma vibração estranha e intensa – já nos parece gasta, ou pior: tornou-se apenas uma coreografia a mais. Filmar de tão perto deixa de ser uma exposição ao imprevisível da proximidade e torna-se um estar ainda mais vizinho do código, um ceder à tentação do retrato bem acabado e sem arestas: no plano do olhar humilhado de Brulaine que encerra a sequência, já não reconhecemos mais a potência de uma personagem enigmática, mas um clichê reiterativo de certo estado de coisas. Quando a steadicam sobe o morro uma vez mais, até os degraus já deixaram de ser um risco à encenação – que esbarra em um gesto de limpeza do mundo (que tanto interessa aos festivais internacionais quando se trata dos “cinemas do sul”).

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Nesse sentido, é interessante que o encontro mais tenso entre policiais e moradores – e o mais cinematograficamente poderoso, ao abrigar um bate-boca que expõe o conflito cotidiano como nenhum outro momento do filme – seja justamente aquele da saída do baile funk, filmado a uma distância bem maior (e em condições de iluminação e sonorização bem mais precárias). É precisamente no recuo diante do desejo de controle que o filme mais se aproxima dessa sensação que entrevíamos nas poucas falas dos moradores (“ser ajudado pelo inimigo é complicado”, constatava o carteiro Orlando; “polícia para quem precisa de polícia”, esbravejava o livreiro Wellington). Na resistência do jovem que reclama abertamente da arrogância do policial, na incompreensão do rapaz que não resiste em fitar a câmera como se fizesse um pedido (filme isto!), na impureza de um plano na madrugada escura, o microcosmo kafkiano inventado pela UPP aparece em toda a sua perversidade. No cotidiano da favela, às leis que regem o Estado brasileiro foram acrescentadas outras, suplementares e tácitas, que só um dos lados tem o poder de definir e só a experiência permite enxergar: a “pacificação” é feita por homens sensatos e tranqüilos – portando coletes à prova de balas, fuzis e pistolas –, sempre vigilantes contra o inimigo que espreita (“Olha aquele ali, incomodado com a nossa presença”), sempre prontos para a ação planejada e certeira (“Quem a gente achar por aí, a gente aborda”) e sempre a postos para a guerra iminente (“Vai comprar pipa onde?”).

Nessa tessitura complexa, embora tenda ao acúmulo de situações e à montagem por “polinização” (como escreveu Cézar Migliorin sobre alguns filmes brasileiros recentes), Morro dos Prazeres não escapa à construção de personagens arquetípicos: ao livreiro, não basta que ele seja o representante da revolta consciente (é preciso mostrá-lo lendo Bakunin); para o coronel, não é suficiente que ele demonstre seu potencial analítico ao falar do fuzil como “extensão peniana do soldado” (é necessário filmar seu discurso edificante no enterro da policial assassinada). A dramaturgia do tableau – plena de variações improváveis – cede ao esquematismo, que encontra seu ápice na construção do personagem do carteiro: pintado como um colaboracionista (que acredita na “adaptação morosa, mas possível”), Orlando é uma espécie de síntese da bondade cristã. Para o filme, não basta que ele seja um carteiro bonachão; é preciso treinar o time de futebol feminino da comunidade, levar as crianças para catar o lixo que se acumula nas encostas, ajudar um senhor deitado na calçada.

Ao construir essa figura, Morro dos Prazeres adere a uma perspectiva institucional às avessas: enquanto a PM (a instituição por excelência) é retratada de forma fortemente ambígua – com amplo espaço para os desvios de conduta –, Orlando é um personagem unidimensional, um homem acima de qualquer suspeita. O problema estético e político de uma escolha dramatúrgica como essa consiste na leitura possível de que, para afirmar a dignidade de um morador da favela, seja preciso depositar nele todas as ilusões burguesas a respeito de o que seria a performance desejável de um legítimo “cidadão de bem” na periferia. Nesse sentido, é salutar que também faça parte do conjunto a magnética Brulaine, com seu ar misterioso, seu olhar indecifrável e seus pequenos atos de resistência à norma (de comportamento, de moralidade, de gênero).

Perto do fim, a caminhada de um grupo de policiais mulheres e a conversa entre os militares que se segue a essa sequência reafirmam uma das principais virtudes de Morro dos Prazeres: a de tornar a experiência desses homens e mulheres de farda – quase todos negros e moradores de periferia – igualmente multifacetada e tingida de sofrimento (novamente, a poderosa figura do duplo se faz presente). Poucas vezes o cinema chegou tão próximo da experiência que jaz além do uniforme (com vergonha e medo de dizer que é policial, a moça diz apenas que é “funcionária do Estado”).

No entanto, ao assumir a espinhosa tarefa de narrar os dois lados do conflito, a enunciação de Maria Augusta Ramos – a despeito de seu rigor e controle – parece contida demais, reticente demais em assumir uma posição firme diante daquilo que filma (ou mesmo em expor o dissenso com uma intensidade que prescindisse de uma tomada de posição). Nesse percurso paralelo entre um universo e outro, a impureza da tensão latente termina, muitas vezes, por ser minimizada em favor de uma narração possível – e, no entanto, plana e pacificada. A impressão que temos é a de um filme que nunca consegue atingir novamente a potência enigmática e revelatória da opacidade de seu prólogo. Morro dos Prazeres se equilibra com vigor e dificuldade em cima do muro invisível, mas não tem o ímpeto de abraçar o risco, se jogar com ele e mergulhar de cabeça no desconhecido (seja para qual lado for). 

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