Sem Pena, de Eugenio Puppo (Brasil, 2014)

setembro 21, 2014 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Em Campo, Raul Arthuso

sempena

A visualidade do sistema
por Raul Arthuso

Nos últimos anos, filmes como O Prisioneiro da Grade de Ferro (2003), de Paulo Sacramento, Juízo (2007)e Justiça (2004), de Maria Augusta Ramos, e Carandiru (2003), de Hector Babenco, trataram do sistema de justiça e da questão carcerária. Mas Sem Pena, de Eugenio Puppo, difere em larga medida pelo desejo totalizante na abordagem do assunto: não se trata de aproximar-se de um caso específico ou uma determinada situação, mas sim de mirar na descrição do sistema de justiça penal no Brasil. Os discursos totalizadores no cinema brasileiro recente são inusuais e aí já reside um duplo desafio ao filme: o da denúncia desse estado que claramente move o filme, e uma tradução cinematográfica que, paradoxalmente, evite o denuncismo – algo que o jornalismo já faz diariamente com sua sede de justiçamento. Coloca-se então uma questão essencial ao cinema: qual a forma justa de filmar?

Sem Pena se funda em entrevistas apenas com as vozes das personagens – que não são identificadas – enquanto, na imagem, observa-se algo relacionado ao depoente. No caso do primeiro entrevistado, Puppo opta pela observação do trabalho do ex-preso, agora pintor de quadros bastante expressivos de certo assombro e distorções que, por sua vez, parecem assombrar o olhar da câmera. Em outros, se concentra no lugar de onde supostamente vem essa voz – o jurista cuja voz é montada sobre imagens da faculdade de Direito da Universidade de São Paulo vazia, fantasmagórica, sendo higienizada sob o olhar do busto de Ruy Barbosa e outras figuras históricas cujas faces compõem a decoração do prédio. Em especial esses dois momentos trazem uma carga semântica poderosa na forma de olhar para a obra do entrevistado (no primeiro caso), e o prédio histórico, de tradição aurática quanto ao tema. Assim, o recurso das vozes sem rosto ou nome trazem uma polifonia que constitui o discurso totalizante, sem distinção da imagem do portador da voz, como se a palavra dita e o discurso pudessem se embaralhar, constituindo um grande painel do desastre da justiça penal brasileira, que, por um lado, não julga, mas ao mesmo tempo julga em excesso, perdendo a noção do que propriamente é justiça.

Em um assombro promissor, logo nos primeiros momentos do filme, um rápido travelling lateral bastante instável mostra incontáveis estantes, tomadas do chão ao teto de arquivos de processos criminais, a perder de vista no horizonte. Mais adiante, mas ainda no começo do filme, um dos depoimentos é ilustrado pelo trabalho dos arquivistas que, com suas portentosas escadas, deslocam pastas, recolocam arquivos nas prateleiras, num movimento sequencial quase mecânico de encaixe das pastas e dos processos para, literalmente, perdê-los de vistas, mergulhados no mar de caixas e números do arquivo. Com o desenrolar do filme, esse momento revela-se mais inerente à estrutura do que apenas um esquete ilustrativo de entrevista: a visualidade de Sem Pena é a do arquivo morto dos processos.

Essa revelação acontece primeiro pelo olhar: na maior parte dos depoimentos, ele é difuso, como a olhadela envergonhada pelo pudor do risco de exposição. Os planos transitam entre desfoques do fundo frente a barras, celas e portões que separam a câmera de o que é filmado; a figura humana é recortada em planos detalhes que impedem sua identificação; e o plano geral, uma despersonalização pela distância e o número, torna as pessoas e figuras uma massa uniforme que anda pelo pátio do presídio em círculos, que se desloca por entre celas, que existe, mas não vive – pois a vida é a desalienação. O olhar não se volta para a particularização; desmantela-se na incapacidade – ou impossibilidade – de penetrar as entranhas do processo, apenas compondo a evidência do arquivista: o relato dos pontos de vista (ainda que escolhidos todos para o mesmo lado de provar a falência do sistema), o retrato das conjecturas, as evidências como se fossem provas.

A montagem segue, então, o encaixe dos arquivos, como blocos que são tirados das prateleiras e recolocados logo em seguida, para então sumirem no infinito. As informações vão se perdendo, orientando o contato com o tema enquanto ocupam a banda sonora, mas logo perdidas num excesso de idéias cuja articulação não progride, mas se amontoa. Se a música de John Cage colabora com certo clima de desconstrução nos interlúdios de montagem nos quais o depoimento dá lugar à articulação de planos de passagem, ela por sua vez confirma a sobreposição, o acúmulo e a perdição na qual a visualidade se joga. Sem Pena reproduz o arquivo morto a perder de vista sua própria razão de ser. Se existe uma pulsão de denunciar um estado de coisas falido, a clareza da idéia pelo acúmulo de dados é turvada pela própria escolha do dispositivo fundador, pois, para manter-se de pé, arma-se a cilada do filme que não consegue diferenciar-se da própria realidade denunciada. Essa “visualidade de arquivo” conduz o filmepela ausência da integralidade do corpo, da figura humana que se destaca, do rosto, dos gestos, do olhar para a alma apreendida no meio de um processo falido. Quanto mais se avança, mais fica clara a “visão do sistema” que o filme incorpora sem atentar, curiosamente adensada pelo gesto de recolher mais provas, e que é representada pela “voz do especialista” que domina após o primeiro corpo tomar a tela em sua integridade.

Este primeiro corpo é a estátua da justiça em frente ao Superior Tribunal de Justiça, em Brasília. O monumento é observado em detalhes, até aparecer de corpo inteiro – o primeiro contorno humano com rosto do filme, mas sem os olhos, vendados, pois a justiça é cega. Mas o firmamento chora sobre a justiça, que, no plano, aparece melancólica, sob a chuva que desaba sobre a capital federal. Sem Pena, então, troca o registro das partes, ou da despersonalização humana, pelo olhar para as construções, a opulência do tribunal, a aura histórica da faculdade de Direito do Largo do São Francisco. Ao contrário de um Frederick Wiseman, para quem misturar-se ao lugar é um processo de encontrar seu ritmo próprio, um olhar da parede para o mundo, o olhar de Puppo é o do mundo para a parede: mostra-se a opulência vazia, ainda que se descreva ruínas. A busca é também – e se intensifica – por explicações que se somem às provas. Os depoimentos não mais são de detentos ou ex-detentos em dificuldade de retornar à sociedade, mas de juristas, advogados, sociólogos, filósofos… enfim, especialistas que possam adicionar ao processo um saber formulado de cátedra.

A apoteose se dá na filmagem de julgamento, um pouco aos moldes de Maria Augusta Ramos em Juízo, mas sem a presença da reencenações para poder mostrar o rosto da ré. Assim, juiz, promotor e defensor ganham rosto e identidade, iram possuidores de seu discurso quando, ao fim do julgamento, comentam a própria ação. Tornam-se, assim, os únicos personagens, propriamente ditos, do filme, na medida em que o discurso ouvido os pertence, diferente do restante. As peças do motor do tribunal ganham a batalha e tornam-se a única prova encarnada de todo o arquivo.

Um plano destoa da mecânica do filme: um grupo de pessoas pobres observam e fazem troça de uma Ferrari estacionada na rua, saindo da vaga exatamente no momento da filmagem. A câmera revela estar em frente à faculdade do Largo do São Francisco, adicionando uma carga simbólica aos profissionais do direito que uma série de depoimentos não é capaz de fazer. Curiosamente, este plano, aparentemente tão perfeito em sua mecânica, sugerindo uma possível encenação (mas, pouco importa), tem mais vitalidade que toda a frieza de arquivismo do olhar que recolhe provas (em teoria) espontâneas e evidentes. Pois, a despeito de um pulsão de denúncia de uma sistema falido, existe uma escolha estética que, a motivo de manter seu rigor de pé, apenas reproduz essa mesma estrutura a ser denunciada. Na ânsia pela forma justa de filmar as ruínas sem, contudo, expôr suas vítimas, o filme reproduz as estruturas de visibilidade do sistema que denuncia: despersonaliza e relega ao amontoado de informações a individualidade em favor do todo, único corpo que interessa salvar do apocalipse que se apresenta. Isso não quer dizer, por sua vez, que contradiga a pulsão dominante do filme, e que, portanto, o filme seja pró-sistema, depondo contra seus entrevistados. A força do tema se impõe pela imediatez do problema e da realidade brasileira. Mas uma escolha, digamos, “estética”, tornada princípio e fim, desvia o problema do tema para a forma, da informação para o olhar, pois eles nunca se encontram – como a câmera e o objeto filmado, sempre separados por uma distância da proteção armada pelo próprio sistema: cercas, redes, grades e, em dado momento, um grupo de policiais que a câmera acompanha. Paradoxalmente, a expressão do olhar vira refém da ordem formal. Sem isso – por pudor ou recalque -, o cinema como conhecimento, possibilidade de reação ao sistema e verdadeira visão de mundo do artista, se deposita no acúmulo de mais um processo colocado nas estantes do arquivo morto a perder de vista.

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