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“O silêncio cresce como um câncer”

Um senhor já idoso vive num pequeno vestiário travestido de barracão. Ali passa um barulhento trem, mas nem o alto ruído diário, nem a modéstia da casa o fazem voltar a morar com sua antiga família que em vão tenta abrigá-lo. O terreno é sítio de um campinho de futebol amador, paixão desse senhor já idoso. Enquanto, na substituição de um goleiro, vai imperceptivelmente ganhando um novo filho, sua rotina tem seus dias contados: a empresa dona do terreno cansou de “apoiar” o esporte e vai retomar a terra. Esta terra é sua vida.

Mas Eu Não Sou Daqui não é só sobre Zé Grande (Rui Rezende), o treinador do time. O filme, como diz a sinopse, é esse “encontro de duas solidões” que forma uma nova família. Existe um outro ser solitário, o novo filho – este andarilho que para e se assenta ao cruzar com um senhor já idoso, atravessando sua vida. Edson (Rômulo Braga) vendia peças aleatórias para ferro-velho ou para quem quisesse comprar; mesmo jogando mal, assume a posição de goleiro do time e de companheiro do barracão. Depois consegue um bico numa construção e, com a notícia da retomada de terra, vê Zé Grande esmorecer até a morte.

Mais curioso que o cruzamento entre personagens é o de seus atores: Rui Rezende está sempre um tom a mais do que o restante do filme, que começa inclusive com uma escalação grande de não-atores na partida de futebol. O técnico, com o pulmão prenhe de palavras sufocadas que reverbera num cacoete incômodo de repetir quase toda fala duas vezes, não consegue se misturar ao ambiente do futebol. Rômulo Braga, por outro lado, é a voz do silêncio. Parece estar ali emprestando sua cara, dando o ar e o tom contemporâneo que o filme não arreda. Uma face que falaria mais que mil palavras. Só que não: com a exceção de uma expressão fortuita de desentendimento sobre quem veio visitar no hospital, o que temos é a impotência do Verbo. Há uma eterna dissonância química entre o mutismo e a verborragia e, com a morte do velho senhor, vence o silêncio.

Nick Carraway dizia lá n’O Grande Gatsby que o “momento mais solitário na vida de alguém é quando se está vendo seu mundo inteiro ruir e só o que se consegue fazer é olhar pasmo”. O desmoronamento em Eu Não Sou Daqui é feito de forma inaparente, em virtude de sua narrativa elíptica. Quase nunca vemos os momentos chaves dos acontecimentos com exceção das duas cenas impreteríveis para o mínimo desenvolvimento e entendimento da história: a chamada para Edson jogar no gol e o aviso da posse da terra. Essa narrativa esburacada está lá para adiantar o andamento da estória – logo depois da cena em que Edson é convocado, vemos ele amarrar as chuteiras, ele no gol, ajudando Zé Grande a tirar a rede e, por fim, os dois entram na casa-vestiário. Com um objeto de cena – um retrovisor no banheiro – e um curto diálogo, já sabemos que muitos dias se passaram.

As elipses escamoteadas poderiam apenas dar ritmo a uma densidade de ações mais importantes, mas o que vemos em seguida não trilha esse caminho. A escolha das cenas certamente não é priorizada por seu potencial dramatúrgico; pelo contrário, parte do filme se ocupa de ações aparentemente inúteis. Em uma cena, o tempo dilatado que acompanha o passo lerdo de Edson não diz nada para além do fato de que “o fósforo acabou”. Na cena seguinte, descobrimos que a cena anterior servia como um mapeamento do espaço – a partir dela, a cama que a mulher se deita não é de Edson mas de seu Zé, o que também não nos mobiliza em nada. Esta sequência seguinte, aliás, evidencia a prioridade pela ausência das coisas, pela opção do não-narrar: Edson chega no forró, vê uma mulher dançando com um cara, corta para os dois no escuro chegando no barracão – o momento do encontro vira elipse, a beleza de uma primeira reação química entre os dois não interessa ao filme. Dentro do quarto, ela deita na cama perguntando se é a cama de Edson. Ele responde um “não” em um sussurro quase imperceptível. Estão aí as duas maiores marcas do filme: a) a rarefação como postulado estético – a cama não ser dele não faz a mínima diferença e ainda carrega consigo toda uma longa futilidade da cena anterior; b) o silêncio que precede a imagem do vazio – a transa vira elipse, e depois do beijo no pé, corta para um outro dia, aquele que receberá a notícia fatídica – nunca verbalizada – de que Zé Grande está hospitalizado.

A única decisão mais incisiva de revelar o que poderia também entrar no bojo das elipses é a morte de Seu Zé. Ainda sim, trata-se de uma percepção silenciosa, esvaziada de drama (medo do melodrama?): depois da descoberta no leito de hospital, corta-se em elipse para ele voltando ao trabalho, coçando prováveis lágrimas escondidas. A dor é quieta, como seu personagem, como o filme. A morte de Zé Grande é também a morte do Verbo. O que era lacônico vira mutismo. Nunca mais ouviremos palavras ou sequer sussurros da boca de alguém. Veremos o olhar de Edson nos encarando, mas não como a Mônica de Bergman: aqui, a quarta parede é um vazio.

Edson que trabalhava em construção agora destrói uma parede, transforma em buraco, em janela… seu mundo desaba e não há mais para onde andar senão em direção à cova. O personagem de Rômulo Braga, assim, como seu personagem em Elon, não acredita na morte. Precisa de um último abraço e nem mesmo este gesto final podemos ver: a câmera se recusa a adentrar ou então a apontar para o interior; desvia e o que vemos até a tela preta final é a esquiva em direção ao fundo de quadro desfocado.

Embora seja uma câmera que dificilmente larga seu personagem, ela opta sempre por fugir dos seus momentos de mais vigor. Enquadra mal o rosto fantasmático de seu Zé no banheiro do hospital só para não cortar para um contra-plano. Há uma coerência maior do plano-sequência que faz berrar uma cabeça cortada em primeiríssimo plano. O conceito vem a priori de tudo. O conceito, acima da vontade de narrar, asfixia o filme num tom menor, num sufocamento que nunca explode, nem mesmo na ida à terra dos mortos. O conceito é maior do que a vida, do que o drama e o caminho daqueles personagens. É preciso sempre desconfiar do poder das imagens, especialmente quando elas são preteridas em prol de uma suposta elegância contemporânea. Um buraco sem escavação é um vazio indolente.


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