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Da centralidade do corpo

. 49º Festival de Brasília .

Diante da parede desgastada de seu apartamento, Elon (Romulo Braga) faz uma espécie de exercício – inapreensível ao espectador pelo plano mais fechado – que agita seu dorso nu. De costas para a câmera, os ombros do personagem se contraem e relaxam com intensidade cada vez maior, como se o homem corresse sem sair do lugar. Os músculos se tonificam e criam um desenho gráfico de pele e ossos em movimento que transfigura no corpo a condição atormentada da personagem, dominando o quadro feito da instabilidade da matéria viva do humano sobre o fundo morto da alvenaria. Na brevidade desse plano, Ricardo Alves Júnior mostra toda a potência de Elon Não Acredita na Morte em seu gesto de capturar os movimentos, as imprecisões e instabilidades do corpo, colocando a câmera junto de seu protagonista que percorre espaços-limites – escadas, corredores – áreas de trânsito que obrigam Elon a deslocar-se rumo ao incerto. O protagonista procura sua esposa desaparecida, mas sua busca o leva para mais longe. A escolha por locações de passagem, espaços-labirintos que restringem e conduzem ao incerto, cria uma coreografia de perdição cujo ponto de fuga é este corpo do qual espera-se respostas. Mas o corpo, mesmo vivo, é só matéria. A imagem deste corpo espera revelar algo. Acompanhar é, aqui, uma forma de análise.

Pois Elon é um personagem perturbado, progressivamente negando qualquer revelação que seu corpo não seja capaz de mostrar. O pesadelo rondando sua vida é físico, mais que mental, pois a câmera não faz imagens do pensamento. Quando os demônios de Elon se concentram na sequência em que sua esposa supostamente reaparece, este devaneio mantém o mesmo registro do restante do filme, conservando o corpo como veículo para se chegar à imagem. Por isso é um devaneio: no dia seguinte, não há mais o palpável.

Aqui, por sua vez, Elon Não Acredita na Morte revela uma fragilidade, pois, onde não há presença e movimento no filme, emerge um drama pela palavra que pontua tudo aquilo que o corpo por si só não pode esclarecer, mesmo que já tenha dito. As personagens coadjuvantes, como o chefe na empresa de segurança, o ex-marido e a amiga de trabalho da esposa, ou ainda uma amiga com quem Elon passa a tarde, servem ao drama mais do que ao regime de presenças e modulações dos corpos que o filme articula. Ao contrário do périplo de Elon, sua interação com essas personagens é estática, em quadros mais abertos e encenação grosseira, que economiza nos planos e paga a conta na cena. Ricardo Alves Júnior opta por uma dramaturgia dependente de uma economia sagaz entre a ação de não-dizer e o apontamento dos sentidos. Essas pequenas grosserias desestabilizam o drama de movimento do corpo e planos longos sempre dinâmico, silenciosos em sua marcha atrelada à instabilidade de Elon.

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Há ainda outro corpo no filme: Clara Choveaux, encarnando tanto Madalena, a esposa, quanto Jasmin, irmã dela. Sua primeira aparição, como Jasmin, é um corpo que se dá a ver, uma imagem da mulher que oferece a presença a partir do movimento, mas que, ao perceber Elon, recusa o olhar. Depois, como Madalena, o corpo se oferece, se suja, se movimenta, aderindo ao compasso de Elon, porém, Madalena não é um corpo, e sim a imagem de corpo, a ideia fixa do protagonista que procura e vai, por duas vezes, ver um cadáver no IML que não reconhece como sendo o dela. Da primeira vez, a câmera não mostra o cadáver. Da segunda vez, mostra o corpo inerte de Clara Choveaux na maca, e, após um chicote para o rosto de Elon, sua negativa: “Não é ela não”. Pois Madalena não é um corpo e sim uma imagem. Elon persegue a imagem de um corpo que só lhe é apreensível enquanto espectro. Essa relação entre corpo e imagem retoma o motivo hitchcockiano de Um Corpo que Cai (1958), algo que é explicitado pelo próprio nome da personagem (a de Um Corpo que Cai se chamava Madeleine), em outra “grosseria” de drama de gosto amargo, pois pode ser tanto uma blague paródica quanto uma explicitação (Brian De Palma nunca recorreu a tal recurso, em suas apropriações muito mais ostensivas do modelo hitchcockiano).

Assim, Romulo Braga e Clara Choveaux atuam com o corpo inteiro, pois Elon Não Acredita na Morte traz o corpo como referente e não só referencial. É no corpo e a partir dele que emergem sentidos, movimentos, imagens. O inferno de Elon é ser um corpo em busca da imagem de um corpo, num universo onde a imagem só pode existir nessa presença que o corpo realiza. Sua peregrinação pelo inferno imagético termina na tragédia do reconhecimento de que corpo e imagem não se confundem mais.


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