Ela Volta na Quinta, de André Novais Oliveira (Brasil, 2015)

setembro 1, 2016 em Cinema brasileiro, Em Cartaz, Juliano Gomes

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Samba sobre o infinito
por Juliano Gomes

O trabalho de André Novais como diretor, neste longa aqui em questão e nos curtas Fantasmas (2012), Pouco mais de um mês (2013) e Quintal (2015), representa um caso bastante raro na constituição surpreendentemente sólida de uma voz, um tom, um manejo particular das imagens hoje. Neste conjunto de filmes, mais do que perceber um certo grupo de procedimentos e elementos comuns, nota-se a imposição de um tom. Assim como na música, a esse tom se relacionam uma série de velocidades, ritmos, variações e melodias. Ela Volta na Quinta é uma espécie de peça, de construção sinfônica que demonstra com mais clareza as nuances desse tom. Tal tonalidade se mostra muito hábil em constituir uma espécie de forma de sentir, uma política da sensibilidade de afinação singular que consegue englobar numa escala comum elementos extremamente diversos entre si.

Aqui, temos uma crônica familiar mobilizada por um momento de fragilidade do casal Norberto e Maria José Novais Oliveira. Acompanhamos o casal e seus dois filhos, suas respectivas namoradas – sendo assim três casais – em torno da questão condutora da tensão na relação entre os personagens mais velhos. O modo que descrevi acima pode ser caracterizado pela igual habilidade do filme em ser direto e indireto. De certa forma, o projeto estético parece apontar para onde ser direto e indireto se tornam a mesma coisa. O cinema de André Novais constrói um estranho jogo entre o concreto e abstrato, no qual os limites de cada um vão se perdendo em sua expansão no tempo, criando um espaço agudo e tênue, imanente e ambivalente.

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A entrada do filme cabe como exemplo: fotos antigas, levemente danificadas, signos de tempo passado, das mesmas pessoas através do tempo: Maria José, Norberto, Renato e André. Percebemos que se trata de uma família. Depois da última foto, um plano aberto de um poste e uma vastidão de casas – algo que podemos reconhecer como uma zona de subúrbio. A este plano, segue o de um quintal vazio, onde um cachorro passa, e no seguinte, uma senhora na janela, em contraluz, num plano onde os tons escuros dominam a apreensão; a personagem Maria José leva mão ao rosto e cai no chão. O filme está todo resumido aí: a materialidade da imagem, a relação com um território, a passagem do tempo nos materiais e nos corpos, e a ameaça da morte no corpo desta mulher. A isso é adicionada a canção de Cassiano, “O Vale”, na primeira versão do filme, exibida em festivais. Uma melancolia difusa, uma alegria discreta e a marcha da vida e sua dissolução implacável constroem a pedra primeira que fornece a chave para toda a apreensão sensível do que se desdobra.

Daí se segue para um considerável segmento que poderíamos caracterizar como apresentação dos personagens. Entretanto, estas primeiras aparições têm como função o estabelecimento de um modo de mostrar e acontecer que delicadamente nos faz perguntar “onde é o centro disso?” ou “qual a utilidade disso que agora vejo?”. Norberto aparece em seu trabalho, consertando geladeiras, e uma longa seqüência se segue mostrando esse trabalho. Em relação ao seu relacionamento com Maria José, o conjunto de fatos mostrados aqui não tem desdobramento direto, e esta será a tônica geral: um certo equilíbrio entre função e disfunção dramática. Na segmento de Norberto, há um grande detalhamento do manejo com a geladeira, do ambiente de trabalho, da conversa com seu parceiro recente, uma atenção evidente à observação do homem em ação no mundo, no espaço. Não se busca aí somente o enunciado “Norberto trabalha”, ou “mais um dia comum na vida de um homem”; o que se almeja é uma cadeia de acontecimentos variados onde já não poderemos distinguir o ordinário do extraordinário.

Há uma espécie de “sede descritiva” que compõe a atmosfera do filme, alimentada por uma precisão perspectiva. O trabalho em longa-metragem permite perceber com mais clareza as minúcias de um manejo com as distâncias. Uma ambivalência das escalas se produz na medida em que é claro que os elementos estão intimamente relacionados com o espaço à sua volta, mas não parece haver, afinal, uma instância que prevalece. Nem o meio subjuga a experiência afetiva humana, nem a individualidade prevalece sob as linhas de força macro. Toda atenção aos trajetos de Norberto e de Renato, o gesto de mostrar seus caminhos, soa como a construção de espaços de ação subjetiva dos personagens: vemos eles “sentindo”.

O risco dessa opção estilística é bem conhecido: o fetiche do plano longo e uma gramática dos tempos mortos e de uma inanimação. Entretanto o que se dá aqui é uma espécie de ação subjetiva entre filme e espectador na qual o julgamento do que é central e útil se torna cada vez mais difícil. Precisamos acompanhar os personagens, nos alimentamos dramaturgicamente da energia de suas presenças performáticas construídas sobre esta tonalidade, mas no fundo o que está em construção é um sistema de igualdade profunda, onde as pessoas e as coisas se equivalem em natureza, pois sua natureza comum é findar. Daí a importância de durar e estar junto.

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Toda a dança de repetições e remissões e refrões corrobora para o desenho de um sistema de relações onde as diferenças tendem a se dissolver. Os casais, as cenas na cama, as viagens, as questões conjugais, e, acima de tudo, o que é uma família senão a imagem mais exata de um conjunto de repetições e diferenças? O cume dessa forma é o ponto de onde cada imagem parece evocar diretamente todas as outras, onde cada elemento se torna presente – em ausência, em potencial – no outro. Não por acaso, esse é um raciocínio que se aplica comumente às peças musicais, e, a música é um dos elementos mais presentes e expressivos em Ela Volta na Quinta. Um dos exemplos mais recorrentes do uso de música se dá na utilização deliberada de canções sobre ações que a princípio seriam insignificantes ou mesmo “inações”, como na cena em Norberto molha o chão com uma mangueira ou dirige sozinho seu carro, ou ainda numa estranha “subjetiva” de André no ônibus. Nesta última, uma câmera muito mais movimentada do que a média do filme é acompanhada pelos movimentos da “Afro-American Symphony” de William Grant Still. O resultado da seqüência constrói um grandiosidade e uma agitação que contrastam com a simples imagem de uma cidade vista da janela de um ônibus e o próprio ato de se estar neste ambiente bastante comum. Assim, cria-se uma espécie de deslocamento do espaço das sensações, não exatamente suscitando estados mais intensos quando não há matéria explicitamente dramática em cena, mas justamente estendendo o entendimento do que é matéria dramática no filme.

A canção “Nada de Novo” de Paulinho da Viola talvez seja o que existe de mais literal entre os materiais do filme – um certo manifesto possível, ou carta de ações de trabalho de Ela Volta na Quinta. O tema do artista carioca é ouvido durante uma seqüência na qual Norberto anda de carro pela cidade, com o sol oscilando sobre seu rosto, logo após a cena em que Maria José tem uma queda na rua. No quase refrão da música, o canto de Paulinho faz uma discreta e decisiva intervenção: estende a palavra “nada” e coloca uma pausa entre ela e “de novo”. O significado assim se altera. A separação faz com que se abra uma ambigüidade para além do sentido de que não há nada de novidade, indo em direção a uma afirmação bastante mais aguda. Essa afirmação, gesto paradoxal que ecoa poeticamente no filme, é a de materializar a idéia de “nada” (o “nada” existe e é uma coisa, e uma imagem, ali, para os nossos sentidos), e “de novo”. Mais um nada, uma composição de “nadas”, é o que André parece buscar em seu filme.

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A cena onde os irmãos André e Renato conversam sobre o drama dos pais é exemplar dessa dinâmica dos sentidos. No primeiro plano, mais aberto, vemos André de frente, o computador e Renato, de costas. André vai mostrar pro irmão vídeos na internet. Escolhe um viral de um programa de TV com dois homens negros em que um deles chora. Eles vêem, riem, e começam a ver as variadas remontagens do vídeo original. Chegam em um vídeo mais longo, e ele precisa de mais tempo para carregar devido à conexão de internet. Daí, os irmãos têm que esperar. Dada esta situação, contraplano, Renato em close começa a falar. Primeiro fala coisas que não desdobrarão, e, sem sobressalto, chega à relação de seus pais e sua crise. Uma vez que isso se estabelece e percebemos que o objetivo da cena é essa revelação, a posição inicial volta e eles reproduzem o vídeo recém carregado. Não é que o assunto dos pais não tenha importância terminando assim, mas há uma espécie de multiplicidade subjetiva em curso, desfazendo as finalidades e linearidades, inclusive dramáticas. O principal é também banal e vice-versa.

Há uma série de conexões possíveis entre as proposições de Paulinho e André Novais. Cabe aqui destacar a construção de uma certa brandura de condução que estranhamente parece se transmutar numa face absolutamente trágica e em sensações subitamente expressivas, como algo que parece calmo e suave passa a ser veículo de intensidades sensíveis de outras escalas. Uma dimensão emocional dominante que atravessa o trabalho do músico constitui uma aparição ímpar como fato cinematográfico no Brasil, no que diz respeito à materialização de uma espécie de “melancolia negra”. Um sentimento de lamento, que indiscutivelmente tem suas raízes na diáspora e que constitui o big bang dos grandes gêneros musicais populares do século XX, ganha em Ela Volta na Quinta um local de profunda experimentação. Uma ampla matiz de silêncios, esperas, decepções (ritmada com pequenas iluminações), opressões, ganha morada nessa crônica, e assim parece formar-se como um fato bastante singular dentro do panorama contemporâneo brasileiro. Driblando discursos sectariamente identitários e apropriações defensivas do lugar de fala, André Novais materializa formalmente um campo de sensações praticamente inédito no ambiente das figurações de nosso tempo. Uma família de negros de classe média no Brasil de hoje que se dá a ver como construção estética e subjetiva, cuja constituição dos modos de sentir e existir é igualmente coerente com as conjunções históricas e políticas (opressão pela precarização do trabalho, o machismo) e também com uma justeza simbólica que dribla uma das maiores disputas simbólicas atuais: a imagem do brasileiro médio urbano.

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A inventividade do filme diz respeito a um certo rigor histórico-inventivo que tem um linha de conservação, de passado, de “de novo”, contraposta a uma outra, absolutamente inventiva, de uma escrita dos tempos, sensações e distâncias, dos modos de sentir, que se apóiam uma na outra. Novamente comparando com Paulinho da Viola, do ponto de vista das formas, parece haver aqui uma espécie de investimento de experimentação para dentro e não para além dos domínios constituídos. É uma postura artística que parece ter uma temperatura anti-iconoclasta, mas que somente não crê no pressuposto teleológico que ampara o senso comum da idéia de vanguarda. Porque o que está em jogo em todas essas operações não é exatamente o deslocamento da periferia para o centro, mas o questionamento dessa divisão. Tal modelo se espalha pela dramaturgia. Mesmo que não haja duvidas da linearidade e progressão dos acontecimentos entre Noberto e Maria José, o modo de condução narrativa cria uma atividade mútua dos componentes do filme que questiona a centralidade destes acontecimentos e os torna uma espécie de motivo que permanentemente se metaforiza nas outras partes. Assim, uma idéia de tempo, de arte e de história se constitui na forma de uma ladainha, de um canto de trabalho, de um spiritual.

A filiação direta à obra-prima de Charles Burnett, Matador de Ovelhas(1977), pela utilização de algumas músicas em comum e pela analogia do recorte, ao narrar o cotidiano de uma família negra como um cosmos, é também um vetor de diferença. Requisitando uma linha de constituição de um cinema negro, Ela Volta na Quinta o faz escolhendo um objeto que se caracteriza por um predomínio de uma construção estético-subjetiva em detrimento de uma dimensão identitária e causal. A perenidade do trabalho de estréia de Burnett se dá justamente pela sua escolha por um sistema descontínuo e despedaçado de vinhetas sensoriais, cujo compromisso de composição atinge seu objetivo representativo trazendo o esgarçamento das relações para a materialidade do filme. A constituição da história deste cinema negro porvir se dará pela percepção desses modos de sentir, de encadear, de reequilibrar, e por final destruir o centro, que nunca lhe relegará plenamente o direito à ficção. A compreensão de um filme como o de Novais como um registro do pré-existente (do tipo “cineasta de periferia filma a própria família como ela é”) comete um equívoco e uma injustiça perante o que é talvez mais importante em um artista e no mundo do trabalho em geral: inventividade metodológica. Buscar anterioridades, “verdades” por detrás dessas imagens, assim como em Burnett, é buscar o reflexo do reflexo de um fantasma que nunca esteve ali.

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A cena final, seguindo uma violenta elipse, é um exemplo do feixe de sentidos que faz do longa de estréia de André Novais um marco tanto no cinema contemporâneo brasileiro quanto na longa história da figuração de tais personagens e sensações, contemporâneas e ancestrais. À maneira do cinema de Ozu (referência que paira sobre o trabalho de André não só pelas crônicas familiares, jogos de diferença e repetição e fino humor), o filme cria uma espécie de resistência pela matéria formal, pelo jogo das reorganizações dos sons, das imagens, dos altos e baixos, dos centros e das periferias, e a esta resistência se opõe uma força de resignação. Diante no novo cenário, da casa nova de Renato, condomínio de um branco que cega (evocando o paralelo subjetivo-arquitetônico da nova morada de Ventura e Vanda em Juventude em Marcha (2008)), há uma imobilização diante da ausência de Maria José, uma espécie de aceitação do fim. Mas justamente a ausência, numa cena quase imóvel, que dura em sua mobilidade, é somente a observação da expansão da sensação dessa ausência sobre toda a sala, novamente com a janela aberta para fora. Voltando derradeiramente à canção “Nada de Novo”, há um processo de montagem que coloca de forma sucinta o funcionamento do filme: “alguém partiu/alguém ficou/é carnaval”. O trabalho da ausência, dos “nadas”, do que falta, da evocação, é o meio expressivo mais intenso aqui, justamente porque paradoxal, suscitando uma apreensão sensível e não representativa. Não só Maria José está ali fantasmaticamente, mas toda tragédia geral de todas as Marias José pairam por aquela sala. E tudo irá se repetir. E tudo vai ser diferente.

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