rotina

As passagens

A primeira imagem de A Rotina Tem seu Encanto nos coloca em uma interessante posição na sala de cinema: vemos a imagem de uma fábrica. O plano possui alguns dos habituais elementos do estilo desenvolvido por Yasujiro Ozu – o uso da música leve e prosaica; o enquadramento em sutil contra-plongée; a caracterização simples e minimalista do espaço –, mas o diretor decide posicionar a câmera fora da fábrica, em uma das ruas que cortam seu entorno. A fábrica é apresentada de tal maneira que não podemos determinar se vemos a entrada principal ou a dos fundos. O único elemento a chamar atenção é a fumaça expelida pelas chaminés de listras vermelhas.

A escolha deliberada do diretor por eliminar qualquer caracterização mais determinante (nome de rua, nome da fábrica, luz do sol etc.) nos impele a olhar a imagem a partir de seus elementos internos mais imediatos, ao mesmo tempo que insere a fábrica dentro um universo mais amplo: uma rua. A partir de então, vem um conjunto de planos que, paulatinamente, adentram aquele lugar: um plano médio realizado em outro ponto do espaço; uma janela; um corredor, onde um relógio indica que é de tarde. Se o cinema não possui uma linguagem, uma gramática, como pensava Ozu, ele se caracteriza por um conjunto de estratégias, repetições e ritmos internos que embasam um universo, uma diegese, uma experiência espaço-temporal. Em todos esses planos, o elemento da fumaça das chaminés é o ponto de liga que denota um fluir temporal concreto, ao mesmo tempo que trabalha continuamente a noção de um fora de quadro.  Por todo o filme, o diretor compõe seus quadros a partir de um recorte espaço-temporal em que tanto seus personagens quanto suas “naturezas-mortas” – os famosos planos de Ozu de espaços vazios – são inseridos em um campo que possui pontos cegos: um biombo, uma parede, um corredor. Ao trabalhar continuamente essa fricção espacial, Ozu elabora uma sofisticada rede de relações em que algo sempre “resta”, em que o mundo em que esses personagens vivem é cuidadosamente desvelado, sem nunca apresentar uma face “objetiva”, clara e – por que não? – estanque.

Essa noção do recorte conjuga um tipo de narrativa elíptica que se esteia em uma percepção de mundo em que o tempo é irrefutável. A primeira imagem do filme de Ozu é, em algum sentido, uma imagem qualquer: não determina uma qualidade de início, tanto quanto a última não determina uma qualidade de fim. Estamos, por assim dizer, em um entre: dentro de um mundo que nos é maior e, em grande parte, “indeterminante”. Uma imagem recorrente na última parte do filme é a do espelho no quarto de Michiko: na primeira vez, o espelho é filmado de dia, após a sequência em que o pai vê a filha pela última vez; na última, o espelho é filmado de noite, com o pai na cozinha, buscando forças para seguir uma nova vida. Ambas as tomadas são iguais, formadas pelo conjunto de dois planos, a única diferença é a hora do dia. Entre essas imagens, está o pai.

É importante, pois, olhar para o funcionamento interno do plano de Ozu, em que o posicionamento da câmera cria um tipo de ambiguidade que une a maneira como filma seres humanos e naturezas-mortas. A câmera, aqui, não realiza uma diferenciação entre homens e objetos, mas sim expressa – em sua forma, composição e dinâmica – os dramas desses homens que bebem, conversam e riem diante de um universo que é imóvel, diante de um mundo que lhes é alheio. A posição quase sempre oblíqua, o recorte dentro do recorte e a montagem em cima do próprio eixo criam uma relação que, ao mesmo tempo que convida a olhar e a nos identificar com os dramas dos personagens, reafirma o caráter um tanto passageiro de suas próprias existências.

Embora A Rotina Tem Seu Encanto trate de questões como o rito de passagem (a filha ir embora, o pai em seu último estágio de vida), a nostalgia e o passado, ele sempre o faz com um certo nível de distanciamento, de ambiguidade, que aponta uma fresta entre o que sentem os homens e a imobilidade daquilo que está ao seu redor.


No dia 16 de Fevereiro às 19h, a Sessão Cinética exibe A Rotina Tem seu Encanto (Sanma no Aji), de Yasujiro Ozu (Japão, 1962) no Instituto Moreira Salles – Rio de Janeiro. A sessão será seguida de debate com os críticos da revista.

Uma vez ao mês, a Cinética faz uma sessão no Instituto Moreira Salles, no Rio de Janeiro, abrindo mais um espaço de reflexão e apreciação de filmes fora do circuito exibidor tradicional. A curadoria tem a intenção de programar obras importantes, de circulação restrita nas salas brasileiras, respeitando ao máximo as características originais de projeção de cada filme. Além disso, críticos da revista produzem textos especiais para as sessões e mediam um debate após a exibição.

A Rotina Tem seu Encanto será exibido em 16mm.

Ingressos: R$ 8 (inteira) e R$ 4 (meia). Vendas na recepção do IMS-RJ e no site ingresso.com.


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