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“Em teu seio, ó liberdade”

Depois de duas cartelas, contextualizando a época da ditadura a um período fértil de filmes populares e eróticos, “chamados pejorativamente de pornochanchada”, o terceiro informe avisa que irá contar a história da década de 1970 através desse cinema. Ou seja, seu princípio será dos filmes como método, e seu interesse está na memória de um país e não no de sua cinematografia. Fica subentendido: isto não é um best of, mas uma investigação histórica dos costumes, “estrelada”, como dizem os créditos iniciais, pelos próprios filmes. O trabalho de Fernanda Pessoa se concentra na pesquisa e re-edição do material tirado das obras originais, de maneira a acentuar conexões entre elas e delas com a vida do país naquele momento.

É curiosa a escolha da pornochanchada como mote de investigação sobre o que era o Brasil a certa altura da história, pois o que se tem com esse conjunto de filmes não era uma ideia de movimento. Dentre fatores mais consistentes que perpassam grande parte das pornochanchadas, estão seu modelo de produção e ainda o local onde eram majoritariamente produzidos – na Boca do Lixo em São Paulo (outro polo era o Beco da Fome no Rio, mas ainda assim, bem menos significativo). Embora certa coerência fílmica talvez tenha levado à titulação de gênero, o termo também é complicado, visto que, dentro deste mesmo rótulo, havia faroestes, melodramas, filmes de cangaço, de suspense e aventura, policiais, sertanejos, etc. Esta “vampira de gêneros”, como dizia Nuno Cesar Abreu, tinha outra coisa em comum que talvez seja o que mais interesse a Histórias que Nosso Cinema (não) Contava: um certo público como alvo.

Junto à chanchada, a produção da Boca do Lixo era o que mais chegava perto da ideia de um cinema popular – termo que não inclui só a bilheteria, mas o público que frequentava as sessões – e, claro, esse dado era uma via de mão dupla que refletia sobre a tela. Os exibidores investiam na produção dos filmes, os ingressos eram mais baratos que o busão pra chegar na rua do Triumpho, e empréstimos nominais eram tomados para financiar as produções – os filmes eram feitos a partir da famosa premissa de Godard quando perguntado porque fazia filmes: “para fazer o próximo”.

Seu conteúdo, portanto, era um reflexo do Brasil, e isso, a partir de Histórias – ou seja, visto aos olhos do presente –, torna-se um choque sem tamanho para os desavisados de plantão. O humor das ruas avinagrado ao racismo corrente, preconceitos automáticos sobre o homossexualismo masculino (lesbianismo, por outro lado, era bastante explorado) e, claro, uma forte obsessão pelo erotismo misógino eram absolutamente naturalizados.

José Carlos Avellar dizia que esse “conteúdo reacionário estaria de acordo com o modelo de comportamento da ditadura – a valorização da força bruta e da prepotência, sendo o sexo mostrado como uma representação da luta pelo poder”. Sales Filho pensava que isso podia ser desmontado com uma análise um pouco mais aprofundada dos filmes, afinal, “o casamento é indissolúvel, (até certo ponto), a fidelidade é inquestionável (até que apareça uma primeira oportunidade), a integridade da família é suprema (às vezes), somos todos católicos (alguém se lembra?)”. Para ele, o que caracteriza as condutas majoritárias desses personagens e que, afinal, nos distingue como brasileiros é o conservadorismo. “Se pouco contribuíram para a evolução da linguagem cinematográfica, ou do questionamento de aspectos sociais, não há como negar o valor desses filmes enquanto documentos históricos, notadamente expurgados justamente por apresentarem, em technicolor, aquilo que sempre procuramos ocultar”.

Parece ser isso que Histórias quer evidenciar em tom maior, às vezes denotando uma certa tendência política mais forte do que o grosso da produção permitia aferir (O Enterro da Cafetina, filme de 1971 dirigido por Alberto Pieralisi, por exemplo, sobressai na montagem como um longa altamente politizado, ao mesmo tempo em que evidencia essa aura conjunta política dos filmes). Contrapondo ao machismo de todo dia, havia as prostitutas que faziam greve “como qualquer operário que é explorado pelo patrão”, havia as mulheres soberanas no alto de seu sex appeal sobrepujando o primeiro esteio das vontades masculinas e também – por que não? – mulheres que desejavam trabalhadores ordinários como os peões de obra da esquina em As Aventuras Amorosas de um Padeiro (1975), de Waldir Onofre, algo inimaginável nas moneychanchadas de hoje, por exemplo. O manancial de preconceitos prevalece ao longo da projeção e o filme trabalha conscientemente a partir desse embate de vivências antagônicas entre o politicamente incorreto e sua possibilidade de, numa era de extrema repressão, ser político também.

Aos navegantes de primeira viagem, fica o impacto de uma história monstruosa esquecida, posta de baixo de panos quentes. Mas, aos que não mais mistificam o quase-ontem-nem-tão-longe-de-ser-hoje, o que sobra? Resta um outro filme, aquele que se apropria das imagens, reconstruindo seus significados originais.

Os mecanismos de montagem de Histórias são um tanto traiçoeiros. Lá pelos quarenta minutos, vemos um suicídio de um jornalista em uma cela e os oficiais pouco se importando com o fato – “se ele quis, problema dele” (E Agora José? Tortura do Sexo de Ody Fraga). Corta para um corpo sendo coberto por um tapete até ser jogado no rio em câmera lenta (Noite em Chamas, de Jean Garrett). Enquanto, no filme de Garrett, há uma tentativa de esconder um crime passional, talvez até sem querer – um homem acorda de uma orgia e vê a mulher sem respirar – Histórias encaminha-nos à interpretação de que esse corpo é o do jornalista do plano anterior, tornando o crime uma faceta sombria da ditadura. Um pouco depois, vemos a imagem da mulher sendo propagandeada, comissionada, objetificada aos sete ventos – não há publicidade melhor que seu corpo –, enquanto Beth Lemos (Maria Lucia Dahl), estrela maior das comédias eróticas, grava seu discurso de suicídio: “Se eu não fosse especializada em comédias eróticas, se eu fosse uma grande atriz dramática, uma jornalista, uma crítica conceituada, ainda assim eu seria uma mercadoria de consumo. Todos fazemos parte do grande jogo de interesses”. Por fim, não há apropriação mais desvirtuada de um contexto original do que o close do acidente na mão: de novo, em Noite em Chamas, um homem se acidenta nos cabos da maquinaria do elevador e vira um dos traumas do zelador que explodirá o hotel; em Histórias esse cara, depois de alguns discursos de greve feito inclusive por prostitutas que estão aprendendo a se organizar, transforma-se simbolicamente no líder sindical por excelência do país, o Lula.

Esse tipo de liberdade associativa se choca com a organização em grandes grupos temáticos, que abrigam subgrupos encadeados: lá pelos quarenta e cinco minutos, uma antena de transmissão anuncia a chegada da televisão, como gancho para falar da publicidade e o consumismo, perpassando pela imagem altamente rentável do corpo feminino, até terminar nos carros, ao som de Gal cantando “Meu Bem” (de consumo). Esse instante posterior ensaia uma sequência menos óbvia com a sucessão de planos onde o vermelho predomina – dos carros vermelhos, ao tapete, ao neon Coca-Cola, a camisa da mulher que dança que vai e volta na montagem, aos bobs de cabelo e a camiseta do cabeleireiro, passando pelos livros de coleção ao fundo, pela sinalização eletrônica, fechando no travelling onde um fusca vermelho ofusca de relance para depois dar lugar a veículos de outras cores mais sóbrias. É um tipo de construção menos sintagmática que é abafada pelo grande mutirão utilitarista da pauta de costumes.

“Os bons costumes estão aí, ainda hoje” – o filme parece querer gritar – quando quebra o ritmo por completo com uma cartela lembrando que um autor nega mostrar sua própria arte por não querer se “associar a nada relacionado à ‘pornochanchada’”. O moralismo, que lá era evidenciado e escrachado, hoje é respeitado e, com sorte, sabatinado. Pedro de Lara, nosso eterno jurado, interpretando a si mesmo em Bonitas e Gostosas, de Carlos Mossy, intempesteia: “O Brasil tem tradição familiar e eu sou família, não sou efeminado”. O crítico mais ferrenho da nossa arte mais popular incorpora a caricatura do conservador que se espelha como a figura mais mundana e conterrânea de nossos tempos pós-golpe. Histórias, que levou cinco anos para ser feito, teve a esperteza ou a sorte (o azar é do país) de espocar na tela em tempos onde o mais verborrágico reacionarismo não mais se esconde nas profundezas de um Brasil distante; volta a ficar ali, lado a lado do nosso dia a dia.

Conservador em sua forma, o filme faz o movimento inverso: revela o que já não é mais passível de ocultamento. A esquerda caricata de O Enterro da Cafetina é hoje um vislumbre a se almejar, ao demonstrar a incisividade da ação: “camaradas, estamos aqui como pacatos cavalheiros, como gente comum, como gente que sofre, mas, no momento oportuno, viramos guerrilheiros. Um Molotov aqui, outro Molotov ali. (cortado do original: Um ministro que pega fogo enquanto está na cama com a amante.) É assim que fazemos a história”. Se não isso, o desbunde está aí, às mãos, para combater o niilismo decadente de outrora que volta.