Terror!, de Ben Rivers (Reino Unido, 2007)

fevereiro 13, 2014 em Em Vista, Fábio Andrade

Terrorismo e reificação
por Fábio Andrade

Artista que transita entre o cinema e as artes visuais, o britânico Ben Rivers vem construindo uma obra que ocupa espaço fronteiriço entre o documentário, a ficção, a instalação e a fotografia, marcada pelo manuseio expressivo da película cinematográfica e por uma predileção por personagens e temas cuja existência é intimamente marcada pelo convívio (nem sempre harmonioso) com a natureza bruta, em uma atualização da experiência existencial e filosófica de Thoreau que parece cada vez mais decisiva para a arte contemporânea, incluindo o cinema. Seu longa-metragem Two Years at Sea, de 2011, por exemplo, permanece como uma das mais dedicadas pesquisas sobre os potenciais criativos da película nesses últimos anos (ao lado de alguns trabalhos de Tacita Dean e da dupla brasileira Gustavo Jahn e Melissa Dullius), recriando a rotina de um personagem em aparente exílio da civilização pelo encontro com o potencial bruto de analogia permitido pelo 16mm, acentuando os efeitos da revelação manual e os riscos e pontas dos rolos de filme como possibilidade de expressão de uma experiência de mundo.

Two Years at Sea (2011), Ben Rivers

Two Years at Sea (2011), Ben Rivers

Essa breve síntese serve para dizer que Terror!, curta realizado pelo diretor em 2007, não poderia ser mais diferente de tudo isso. Um dos raros filmes de Rivers que usa o vídeo como suporte, a partir de material originalmente captado em 35mm, Terror! é um filme de apropriação, no qual o artista forma uma espécie de coleção de convenções do cinema de horror dos anos 1970 e 1980 – não à toa, o filme é uma encomenda de um projeto que toma emprestado um termo do hip hop: Mixtapes. Ao longo dos 24 minutos do curta-metragem, não há uma imagem sequer filmada por Rivers. Seu trabalho se resume a pinçar e rearticular pequenos trechos de outros filmes – alguns deles bastante reconhecíveis, como Halloween (1978), de John Carpenter; Suspiria (1977), de Dario Argento, e Scanners (1981), de David Cronenberg – sem fazer qualquer distinção perceptível entre eles, como em uma composição musical a partir de samples.

terror3

A princípio, Terror! parece não ser muito mais do que uma experiência de desconstrução pós-deleuzeana, um trabalho de inventariar e cruzar padronagens encontradas nos cacos simétricos de um gênero estilhaçado pela passagem do tempo. Se tomarmos como princípio a máxima do próprio Deleuze de que o estilo seria a diferença subordinada ao idêntico, Ben Rivers parte da exclusão da diferença e para privilegiar do idêntico – ou seja, promove o apagamento do estilo. Como o estilo é ferramenta essencial para o cinema de gênero – que, justamente por seu apego às suas próprias convenções, precisa inventar novas maneiras de filmar sempre as mesmas coisas, sem que as coisas deixem de ser as mesmas -, em um primeiro momento Terror! parece se aproximar desse universo com uma abordagem de fonte intelectual que negue as vísceras até que reste apenas o cálculo, que remova a diferença de forma a deixar aparente o idêntico.

Esse movimento fica claro na primeira “sequência” do filme. Após um curto prólogo, Terror! sequencia planos gerais que mostram as fachadas das casas que servem como locação para diversos filmes de horror. A atmosfera noturna e enevoada acoberta as particularidades arquitetônicas já bastante sutis das diferentes casas (em uma inversão cronológica, “casa de filme de terror” poderia ser um gênero arquitetônico), instaurando a entrada em um universo (na famosa estratégia, muito usada por Hitchock, de usar a decupagem para localizar o espaço de ação e, em seguida, adentrá-lo por meio de planos progressivamente mais próximos – um quarteirão; uma fachada; uma porta; um quarto, por exemplo) que demarca pequenos espaços para diferenças – um carro que passa, uma janela que se acende, um vulto que aparece por trás de uma cortina. Há, neste primeiro movimento do filme, uma decupagem cenográfica de qual seria o espaço do cinema de horror por excelência, e que ganha peso justamente nessa repetição dos mesmos motivos – a lua; a sombra projetada pelas árvores; a luz solitária que se acende ou se apaga em uma das janelas; o silêncio (por vezes quebrado pela entrada da música que parece ser original ao plano, e interrompida quando o filme passa ao seguinte) as varandas vazias.

terror1

Essa abertura é importante, pois, de certa forma, Terror! manterá sua lógica de construção e quebrará com sua lógica de sentido no decorrer de sua duração. Manterá, porque a montagem do filme é bastante aderente ao protocolo imutável que determina a reunião de elementos em blocos temáticos: assim como as casas são reunidas em um mesmo bloco, teremos sequências inteiras de personagens abrindo e fechando diferentes portas, outras de objetos de cena reunidos de maneira a ressaltar seu potencial iconográfico (um sofá, uma cadeira, uma luminária, um molho de chaves), e outras ainda de personagens a andar, a chamar outros pelos nomes, a acender e apagar as luzes e a atender o telefone. Há, portanto, uma aplicação de montagem modular que fica patente logo neste primeiro momento e que será mantida ao longo de todo o filme. Ao mesmo tempo, à medida em que ele avança, essa lógica, embora imutável, tem seu sentido transformado. Se uma sequência de fachadas colocadas lado a lado ainda chama a atenção para o protocolo que norteia a própria montagem, aos poucos a entrada e saída dos vários personagens em espaços que, apesar de não serem os mesmos, são organizados de maneira contígua pela montagem, Terror! começa a se parecer com um labirinto de paredes moventes, de perdas e desencontros, de nomes chamados que não respondem, de pessoas buscadas e nunca encontradas, de ligações telefônicas condenadas ao eterno retorno do primeiro “alô”. A partir daquele desejo original de inventariar os elementos de construção de um gênero, Terror! se torna, em si, um filme de horror com uma lógica própria, mas tão sufocante quanto a das fontes que ele solicita.

terror5

O que temos aqui é uma espécie de contramão de um suposto pensamento pós-modernista, partindo de procedimentos que já têm o estilhaçamento como base para, a partir deles, reconstituir a impressão de algo uno. Da soma de todos aqueles desconexos “espaços quaisquer” – termo que Deleuze usa para a grande sequência de montage em Pickpocket (1959), de Robert Bresson -, Ben Rivers consegue, pouco a pouco, restituir a sensação de um espaço íntegro, indivisível. Daí, justamente, a atmosfera de horror. Aquela casa – de muitas portas, muitas fachadas, muitos cômodos, muitos corredores – se torna, com o passar do tempo, uma espécie de cubo mágico que se arranja e rearranja para nunca permitir uma saída. Se as paredes têm olhos e ouvidos, nada mais invasivo do que uma casa de paredes infinitas.

terror4

Nesse sentido, o filme que parece mais próximo de Terror! talvez seja Toda uma Noite (1982), um dos mais belos longas de Chantal Akerman. Mas enquanto a diretora belga implode o particular da ficção em um sem número de falsos-raccords – a ação desempenhada por um casal em uma cena pode ser concluída por outro casal, na cena seguinte, transformado em mesmo justamente pelo truque da montagem -, dando a impressão de um grande romance universal, em Terror!, Ben Rivers estabelece uma sensação de unidade espaço-temporal a partir não de falsos-raccords, mas de raccords falsos, criando uma impressão de continuidade impossível (vejo que é quebrado, então como cola?) sem depender do ilusionismo do truque. Enquanto a potência do faux-raccord se guarda no momento de indecisão que antecede a surpresa, do gap entre a crença no truque e a percepção de sua falsidade, a montagem de Ben Rivers expõe a falsidade de antemão, forçando um raccord que é abertamente falso. Ainda assim, acreditamos e esta casa se alimenta de nossa crença para crescer e crescer, até poder engolir a tudo e a todos.

Nesse sentido, é importante um deslocamento proposto por Ben Rivers no título do filme que pode, facilmente, passar desapercebido pelo hábito da língua portuguesa. Pois embora “terror” seja, literalmente, o termo usado para o gênero de cinema no Brasil, em inglês a palavra não tem associação direta com o cinema de horror (horror movies), e sim uma relação muito mais automática e patente com a idéia de terrorismo. O que separa o terrorismo da guerra e impõe a necessidade de novas estratégias de confronto e de controle é a sua completa desterritorialização – ou seja, a ausência de um vínculo direto com um território identificável, com uma noção de autoria que seja localizável com precisão. Terror! se aproxima dessa idéia ao retirar qualquer identificação dos planos reaproveitados pelo filme, provocando ligações e conexões que não estão no material original, de forma que a percepção de quem comanda a(s) violência(s) do(s) gesto(s) se torne no mínimo difusa.

Essa dubiedade esbarra em uma camada mais profunda imposta pelo gesto terrorista, que está na maneira como Terror! propõe expectativas para revertê-las no momento seguinte. Se começamos a assistir ao filme acreditando estar diante de um trabalho conceitual, a insegurança e o medo que vão aos poucos se infiltrando nessa rígida estrutura – por fim, transformando a peça conceitual em um filme de horror verdadeiro – é ainda mais efetiva justamente por se voltar contra a certeza primeiramente estabelecida pelo próprio filme. Se a montagem a princípio parece se pautar pela seleção dos interlúdios de espera, construindo um lento e dispersivo anticlímax (em dado momento, a montagem se concentra em pequenas tarefas domésticas, como fazer ou tomar uma xícara de café, lembrando outro filme de Chantal Akerman: Jeanne Dielman, 23 Quai du Commerce, 1080, Bruxelles, de 1976), nada mais surpreendente do que a reunião, próxima ao final, de uma sucessão violentíssima de momentos do gore mais extremo, enfileirados em uma sequência tão fria, “monótona” e protocolar quanto qualquer outra do filme, prolongando a catarse sangrenta a um limite do absurdo indiferente que nem os filmes de horror mais frontais costumam se permitir. Nesse jogo de espelhos infinito entre a peça de museu e os dejetos da indústria de entretenimento, Terror! implode de tal maneira seu próprio estatuto que se torna impossível diferenciar a homenagem da pilhagem, a paródia da paráfrase, o fetichismo da reificação.

terror6

Share Button