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“E a tempestade que faz dobrar os dorsos dos operários nas ruas?”

Ficcionalização

– “Qual é a primeira pergunta para abrir um negócio?”, pergunta uma professora do Sebrae.

– “O que a gente gosta de fazer?”, responde uma aluna.

– “Não, isso é um erro, um equívoco natural. Todo mundo gostaria de fazer o que gosta. (…) O que você precisa se perguntar é: o que o mercado precisa?”, direciona a professora.

Esse diálogo poderia naturalmente existir na vida real, em qualquer palestra sobre marketing, empreendedorismo ou novos negócios. Apesar de crível, esse mesmo diálogo, em uma tela de cinema, tem o enorme potencial de um naufrágio. Claro, um grande diretor tem o poder transformador de se apropriar das palavras do roteirista e transformá-las em peças de seu jogo cênico – tomar a expressão e dar um outro sentido ao significante; mas seu significado, a princípio, é o da obviedade: olha como os players do mundo capitalista desumanizam o indivíduo em benefício do capital.

Em Sem Raiz, de Renan Rovida, esse diálogo, transcorrido numa sala de aula precarizada num bairro de periferia cujas alunas são jovens trabalhadoras em funções consideradas “subempregos” segundo o capitalismo contemporâneo, é agravado à enésima hipérbole para ilustrar o ridículo da situação e acentuar o delírio do mundo atual. Mas, no fim das contas, a situação expõe apenas o ridículo da encenação.

Da redundância às vezes faz-se força. Agita-se um mutirão. Na arte, essa redundância que faz espocar, geralmente, está coagulada a outro tempero. Wang Bing em Até que a Loucura nos Separe (2013) faz da repetição um estopim do tempo – nos enlouquece através da duração interminável de uma insanidade exaustiva. Em Sem Raiz, a ficcionalização se apropria do discurso bruto do mundo e o põe em cena – como se fosse possível – sem qualquer lapidação. A atuação da professora do Sebrae se apropria de um roteiro previsível e o afunda ao exagero de uma caricatura banalizada, jogada às feras numa articulação de planos que, como Pilatos, lava as mãos de sua apropriação como se esta caricatura fosse um dado. Temos a palavra estanque, desguarnecida de nuances, representada como verdade tão aguda como se pudesse prescindir de um estilo, de uma forma que venha combinar o verbo à imagem.

Uma cena não ganha força pela simples precisão política, nem torna-se crível porque pode estar no mundo, e, sim, porque cabe ao próprio mundo de seu cinema.

 

Plano

Sem emprego – A câmera acompanha uma mulher na calçada até parar na frente de uma farmácia. Parada do lado de fora, ela deixa a personagem se distanciar até a sessão de tintas em segundo plano, enquanto foca nos tubos de Neutrox em primeiro plano. Depois de a moça pagar, uma panorâmica acompanha sua saída e então, parada, a câmera observa a personagem indo embora.

Sem lucro – A moça chega em casa, brinca com a filha e senta numa cadeira atrás dela. Sua cabeça está cortada, mas sua tia, que estava sentada, se levanta e fica em primeiro plano, de costas, tampando tudo o que acontece na cena por alguns instantes. Ela dá a volta por detrás da cadeira da sobrinha, senta, e a cabeça da jovem continua cortada.

Sem propriedade – Um enquadramento estranhíssimo: dentro de uma sala, a câmera, atrás do namorado e do filho, angula um contra-plongée pegando ambos de costas, o videogame que jogam, e a porta por onde vai entrar a mãe. O teto – ar que sobra entre a cabeça e o limite superior do quadro – é desproporcional: o espaço está preparado para a entrada da mãe (que já acompanhamos na cena anterior) e assim ela o faz. A personagem vai ao encontro do filho e o beija – o foco fica na porta, deixando todos os personagens borrados. O filho sai no eixo da câmera, o foco continua na porta e os dois sobram em primeiro plano. Ao fim, o namorado levanta e nem o teto alto evita cortar sua cabeça.

Sin comunidade – Uma sala de aula de uma universidade. Em pé, uma jovem mulher estrangeira – seu sotaque não nega – se apoia na mesa enquanto fala sobre a reforma agrária, necessária no Brasil. O quadro torto corta sua testa. Corta-se para um plano de conjunto – outro quadro torto – ironizando a quantidade de gente na sala: dois alunos. Volta para o plano anterior, da personagem, que demora excessivamente limpando suas mãos, dando tempo para que o foco, agora em último plano, possa mostrar o que está escrito no quadro negro.

A câmera na mão, um dos grandes legados estilísticos da cinematografia brasileira para o mundo, reconfigura o empreendimento arquitetônico do cinema: como compor linhas harmoniosas se elas não se fixam? Sem Raiz não é um filme todo de câmera na mão, mas nem seu tripé guarda alguma simetria, sem que qualquer contingência do olhar justifique um uso tão mal ajambrado da câmera ou do espaço. Não se trata de tornar-se exato ou primoroso com os ângulos, de um conservadorismo das formas – elas estão aí, despudoramente libertas de qualquer convenção claustrofóbica – mas, nesse caso, a techné parece sempre corroborar com a sensação de pressa na construção dramática. Quase não há decupagem no interior das cenas – os cortes nunca retrabalham o mesmo espaço, os planos são geralmente únicos. A esquiva à gramática plano/contra-plano parece só um recurso deliberadamente negado, como em Eu Não sou Daqui, de Luis Felipe Fernandes e Alexandre Baxter. Lá, a percepção de que uma estética contemporânea, essa coisa difusa, precisava ser privilegiada ante ao recorte do espaço. Aqui, a coisa parece mais ideológica, como se o contra-plano fosse algo intrinsecamente americano, imperialista, colonizador, e até o mais básico gesto cinematográfico fosse, às últimas consequências, uma derivação política. Curiosamente, motivações tão distintas levam a soluções de encenação similares…

Da urgência, às vezes aponta-se prioridades. Alberto Salvá em Na Carne e na Alma (2011) tem uma pressa que se distancia do apuro técnico e formal. Como escreveu Thiago Brito, “o filme é feio, é bruto, é extremamente urgente”, mas ele “se entrega, de corpo e alma, aos dramas de Rodrigo [seu protagonista] e está disposto a tudo para jamais se afastar daquilo que considera importante”. Aqui, a prioridade está no discurso da angústia do capitalismo, mas não há entrega. Há, por um lado, uma simples repetição vazia e não elaborada dos discursos correntes. Por outro, uma simples repetição vazia e não elaborada das estratégias de encenação correntes. A angústia nunca se concretiza sem uma dimensão poética.

 

Política

Por entre os conflitos urbanos das quatro moças de cada episódio, são pontuadas algumas poucas cenas no campo, de uma trabalhadora do MTST. A fome do dogão, do milho e do espetinho das trabalhadoras urbanas é contrastada à suculenta mandioca do campo. A primeira mulher (Esperança) vende rosas num lugar abolido de qualquer romantismo; a segunda (Débora) é assediada na rua; a terceira (Ruth) planeja se mudar para o campo; e a quarta (Juana) mal consegue criar forças para sair de casa. Enquanto esta última roda uns slides na parede da cozinha, uma frase ecoa: “se o campo e a cidade se unir, a burguesia não vai resistir”. Parece querer ser uma frase-síntese do filme, mas que, por outro lado, nunca esteve lá de outra forma se não por um grito fora de quadro. O que chega até nós se assemelha muito mais ao conflito dicotômico cidade-campo, onde em um há caos e, no outro, uma certa tranquilidade, mesmo quando se discute alguns problemas pontuais (como o plano-sequência do casal do MTST andando e conversando perto do fim).

Além do êxodo rural, no último episódio a mulher abre a janela de uma sala repleta de plantas, como se precisasse de ar para anuviar o pandemônio sufocante de sua vida urbana. A cidade é este inferno-raiz do capitalismo. A zona rural no filme tem, ao menos, um contato direto com as coisas que se desenraizam e dão sustância. Mas nada muito além disso. As trabalhadoras da cidade estão desenraizadas por que estão sozinhas, individualizadas. No campo, há alguma união. Há o feijão, que só quer três águas, como afirma uma das personagens no último plano do filme: “uma água pra nascer, uma pra aflorar e uma pra cozinhar”. Na cidade, há nossas vidas atravessadas pelo capitalismo, que se tornaram por demais complexas para só carecerem do básico.

 

Poesia

Se o processo de ficcionalização é canhestro, o plano não tem a mínima ambição estética, e a política não é elaborada criticamente, como daí arrancar inspiração de luta? Se alguém argumentasse que o filme não se propõe a isso, deveria ser rebatido de imediato com a própria sinopse como carta de intenções: “Poesia arrancada como erva daninha do solo de nosso tempo”. Um desígnio que vislumbra mas nunca alcança o subterrâneo de nada. Quer nos transmitir um ardor de luta, mas como receber qualquer informação pelo cinema sem a poesia? A razão bastaria ao cinema (ao mundo)? Não seria a palavra, como pura informação, uma mera instrumentalização oca se não recombinada aos signos poéticos do cinema?

Sem Raiz parece se encontrar no nem-tão-seleto-grupo de filmes políticos que se sentem satisfeitos em estarem do “lado certo”. É um filme de mulheres trabalhadoras que lutam pelo seu sustento e são assoladas pelo capitalismo – o dever de casa das boas intenções está feito, mas para onde nos carregam essas mulheres? No debate em Tiradentes, alguém pergunta: “vocês pensaram em quem veria esse filme?”. Uma das atrizes responde: “a gente vai muito em assentamento, manifestações, convive com essas pessoas, gente de esquerda”. Sintomático: o filme é como uma roda de pregação para crentes – desnecessária a carpintaria, pois o que é preciso mesmo é retomar a palavra de ordem, quantas vezes for necessário.

Pois, é preciso refundar o imaginário brasileiro. O cinema político é muito mais do que a mera instrumentalização, a gasta repetição do já sabido como microfone humano-artístico. Não é apenas uma ferramenta do engajamento, um engajar-se e fazer-se engajar, mas também um fazer-se (contra) movimento, junto aos filmes, junto à história, condição de transformação efetiva. A dimensão política das artes, cada vez mais, precisa se voltar à esquecida dimensão poética como um húmus a se espalhar pelo solo do nosso tempo.


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