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Cool story bro

Em um dos primeiros planos do mais novo filme de Sergei Loznitsa, um pequeno grupo de pessoas se põe à espera. Elas parecem turistas, mas não há pista de onde elas estão. A esta altura do filme, poderiam estar em qualquer lugar: na Disney, no London Dungeon, em um festival de música. Naquele grupo, chama atenção um rapaz em especial, que veste uma camisa com dizeres em letras brancas garrafais:

“Cool story bro”.

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Essa afirmação parece ecoar uma citação hoje já cult no cinema francês, imortalizada pelo ator Jean Dujardin em OSS 117: Lost in Rio (Michel Hazanavicius, 2009). Quando lhe contam que o oficial nazista Adolf Eichmann tinha que pagar pelos crimes que cometeu, o bronco espião pergunta: “que são…?”. “A participação no genocídio”, responde, perplexo, o agente Mossad do outro lado da mesa.

“Ah, isso? Que história…”, arremata o espião francês.

Ao longo do filme, Hubert Bonnissseu de la Bathe (o personagem de Dujardin) vaga pela cidade do Rio, perdido no espaço e principalmente no tempo, incapaz de dar perceber qualquer coisa (além da presença das mulheres). Alheio às tensões políticas, econômicas e sociais ao seu redor, ele é movido pelos poucos objetivos que são tanto sua missão profissional quanto seu prazer pessoal, carregando uma câmera para cima e para baixo, fotografando, sem cerimônias, as mulheres elegantes e as favelas que coexistem na metrópole brasileira. Sua desconexão faz dele um bufo intragável, com o atenuante de que sua dedicação ingênua e irrestrita terminam lhe emprestando certa simpatia – um truque clássico da comédia. Assim como o personagem de Dujardin, muitos dos turistas em Austerlitz parecem perdidos, desorientados e desconectados com tudo a seu redor. Os lugares que eles visitam são os campos de concentração desativados Dachau e Sachsenhausen.

Terá Loznitsa dirigido uma comédia?

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Resta-me apenas imaginar a surpresa do diretor e do montador Danielius Kokanauskis quando se deram conta de que as imagens registradas nos antigos campos de concentração eram sobretudo sobre camisetas. Muito como la Bathe, um personagem das décadas de 1940/1950 catapultado para o centro da contra-cultura que mudava o mundo nos anos 1970, essas citações encorporadas do século XXI são reinseridas no coração do horror do século XX. A tensão resultante é análoga, oscilante entre a consternação e o riso.

Humor negro para um turismo sombrio. Essa modalidade especial de viagem é um campo de estudo razoavelmente recente, tratando-se de um hábito que é ao mesmo tempo ancestral e contemporâneo à própria idéia de turismo. Grosso modo, trata-se de visitar locais associados a grandes tragédias. Não é preciso muito para que o rótulo em si se torne controverso: seriam as pirâmides turismo sombrio? O coliseu? Os calabouços medievais da inquisição? Será todo turismo, em alguma medida, sombrio?

Um dos primeiros reflexos dos irmãos Lumière após patentear sua invenção foi enviar operadores de câmera pelo mundo para capturarem imagens e trazerem-nas de volta aos olhos das pessoas. Desde o princípio, o cinema esteve ligado às atividades de turismo, que àquela altura já vinha crescendo há algumas décadas. Naturalmente, o mesmo cinema teve papel fundamental na sua divulgação global (ou melhor, da Europa para os outros lugares), uma vez que essa reportagem de um mundo a ser visto acontecia em paralelo à expansão nas possibilidades de transporte, ambas se integrando em uma crescente tecnologização. Ambas as atividades se colocam em uma corda bamba entre lazer, entretenimento, diversão e erudição, educação e reflexão. Ambas dependem de redes técnicas com profundo impacto social e ecológico nos lugares que elas “invadem”. Ambas vira e mexe se vêem confrontadas com a questão que Austerlitz levanta: como dar conta de um espaço que tem uma história específica, preservando-a como resultado de um certo movimento da história, e não apenas como um espaço geográfico?

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O filme de Loznitsa parece oferecer o princípio de uma resposta ao criar um mundo destituído desta preocupação – um ambiente onde a meditação parece ausente, ou ao menos se finge estar, e a história se restringe aos fatos. A primeira decisão importante tomada pelo diretor ucraniano é a negação de qualquer reenquadramento, ajuste ou modificação dentro dos planos. Não há passagens de foco ou movimentos de câmera; apenas um enquadramento que permite entradas e saídas de plano. Essa rigidez extrema por vezes se torna uma limitação cinematográfica, revelando-se um dispositivo por demais retórico que chama atenção para si, como se o filme servisse a um sistema que lhe é externo.

Mas seria, por outro lado, uma limitação necessária? Ao se manter estático, o filme direciona a atenção para o movimento humano, para as pessoas como massa (tema recorrente na filmografia do diretor). Com a gramática de uma imagem objetiva, ele seleciona um recorte específico do espaço para revelar a relação que os espectadores travam com a história deste mesmo espaço: um lugar onde se “segue o mestre”, seja o guia ou qualquer outra pessoa, e onde não há espaço para a experiência individual. Esse recurso cria um contraste impressionante com o movimento similar que guiava aqueles mesmos campos em sua origem funcional: o metódico assassinato em massa de seus “visitantes”.

Esse contraste é elevado pela forma como os guias orientam os turistas naqueles espaços. Dotados de explicações extremamente factuais, eles se mostram como máquinas sistematicamente insensíveis quando confrontados ao conhecimento do espectador de tudo que aconteceu naqueles lugares e com a reação apática dos visitantes que acompanham o tour. É patente a ausência de mediação, das histórias e da habilidade em narrá-las. “Cool story bro”, mas que história? Visitar as pirâmides e ouvir quantos blocos de pedra foram necessários para construí-las certamente interessaria a alguém como eu. Receber a informação do número de pessoas que morreram na empreitada ou ouvir sobre os criativos mecanismos usados para transportar aqueles blocos gigantescos talvez satisfaça minha curiosidade sobre as possibilidades técnicas da construção. Mas apenas a narração cuidadosa me permitirá não apenas ter dimensão do feito histórico, mas também nutrir empatia com todas as vidas ali envolvidas, dos faraós aos escravos. É claro que a mediação tem, também, limites que só podem ser suplantados pela imaginação, mas o mesmo vale para um campo de concentração. O que é encenado em Austerlitz, porém, é sua bruta ausência: apenas números e imagens. Nenhum testemunho, nenhum poema, nenhuma narrativa.

Como resultado, os visitantes acabam tomando para si tal responsabilidade – com resultados desastrosos. Turistas posam para fotos como prisioneiros em pelourinhos. Se as câmaras de gás estivessem abertas a visitação, decerto teriam pessoas fingindo tomar um banho agradável. Sem orientação maior de como se relacionar com o significado histórico inerente ao espaço, ou com medo de fazê-lo, alguns optam por reencenar – às vezes de maneira inocente, outras, cínica – suas próprias histórias.

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É outra semelhança entre o turismo e o cinema: um desejo de reencenação, muitas vezes extraviado. Assim como há um grande número de exploitations históricos, o turismo também carrega mediações duvidosas. Nos EUA ou no Brasil, qualquer pessoa pode fazer um “tour da escravidão” – um exemplo de quando a fome por reencenação se sobrepõe aos predicados formais que essa narração deveria assumir.

Noite e Nevoeiro (1956), de Alain Resnais, talvez o filme seminal sobre os campos de concentração, já se mostrava abalado por esse contraste. Sobre os crematórios, e sua própria configuração, o filme pontuava: “eles se parecem com um cartão-postal. Anos depois, nos dias de hoje [em 1956], os turistas viriam a tirar fotos em frente a eles.” Decerto, a passagem do tempo faz com que esses questionamentos pareçam menos urgentes e chocantes. Mas não se diz que a comédia é a tragédia com o benefício do tempo?

Aqui, Loznitsa individualiza uma massa de pessoas para questionar o espectador e sua postura diante de tudo que ele constantemente confronta: as histórias, a História e a prática do turismo. Como podia se imaginar, não há respostas fáceis: o filme encena sua própria premissa justamente ao produzir, no espectador, certa confusão e ao evitar representar uma tipologia de visitantes – em suma, ao criar gaps ricos em sentido.

Uma das razões para o brilhantismo de Frederick Wiseman é sua capacidade de familiarizar o espectador com um espaço. Ao filmar um museu, uma casa de ópera, um cabaré ou um hospital para pacientes com problemas mentais, ele consegue, através de rimas, repetição e manipulação do tempo, com que o espectador reconheça rostos e lugares que ele nunca antes viu. Austerlitz faz exatamente o oposto. Em consonância com seus filmes anteriores, assim como documentários como Leviathan (Lucien Castaing-Taylor & Verena Paravel, 2012) ou There is no Sexual Rapport (Raphaël Siboni, 2011), Loznitsa nos dá pouco ou nenhum contexto. Ele (quase) nunca retoma um plano mostrado anteriormente, evita articulações mais voltadas à compreensão geográfica dos espaços, confundindo o espectador quanto à sua própria localização e quanto ao que ele está vendo. Com sorte, um ou outro trecho de conversa pode servir como pista ou indicação a ser decifrada.

Da mesma forma, Loznitsa se limita a filmar pessoas e grupos cumprindo, bovinamente, seu papel de “sheeples” – a exceção salta aos olhos: um close de uma mulher que toma quase toda a tela, visivelmente emocionada por algo que ela vê, mas que nos é negado. Estruturalmente, é um recurso que remete aos dois filmes mencionados: em Leviathan, quando um marinheiro dorme em frente à televisão; em There is no Sexual Rapport, quando dois atores compartilha momento de real candura em um trabalho extremamente invasivo (mas invasão de outra natureza).

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Diferente, por exemplo, das catedrais e outras edificações religiosas – que carregam um protocolo de comportamento já bastante assimilado – a postura diante de locais históricos é de natureza um tanto diversa. A melhor ilustração dessa distinção fica visível na comparação entre templos religiosos abandonados e aqueles que seguem ativos: enquanto os primeiros parecem encarnarem hoje um valor puramente estético, os segundos ainda carregam o peso da doutrina que eles representam, colocando os visitantes em posição de automática humildade.

Os campos de Dachau e Sachsenhausen ficam próximos a áreas de densa população – Munique e Berlim – e, logo, estão mais acessíveis ao turismo de massa. Dito isso, tendo eu mesmo visitado outros campos de concentração e me dedicado ao dever de rememoração há algum tempo, posso atestar que eles podem ser, e frenquentemente são, espaço de rituais (religiosos ou não), de lembrança, de partilha e de emoção. Eu já ouvi histórias em lugares como esses; já estive diante de um sobrevivente, que relatava-me seus traumas. Como aponta nosso guia ucraniano, o encontro do “memorial com o museológico” não é livre de complicações. Mas ele não é impossível. Este filme compartilha certa impressão, ou mesmo temor, de ver esses lugares lentamente solapados de seu sentido original na mesma medida em que eles são esvaziados dos diários, dos romances, das canções, dos poemas que narraram as histórias pessoais escritas entre essas paredes, e que deveriam permanecer ali para sempre. Noite e Nevoeiro já encerrava com estas palavras: “Dizemos pra nós mesmos que isso se limitou a um único país, a um momento histórico. Fazemos vista grossa ao que nos cerca, e ouvidos moucos aos gritos que não cessam”.

Em era de pós-verdades, fatos alternativos e neologismos outros – uma era em que o presidente de um dos maiores poderes envolvidos na libertação desses mesmos campos refuga diante da “gritaria que não cessa”, refuga em reafirmar judeus, ciganos e qualquer outra minoria como a vítima primordial daqueles lugares, o filme não parece ambicionar soluções educativas. Afinal, todo esse material já existe e está prontamente disponível. A maior dificuldade está em convencer as pessoas da necessidade de conhecê-los, de entender e de se reconhecer nestes problemas.

O que o programa formalista de Loznitsa oferece é um vislumbre de como a rememoração conjura diferentes mediadores, e como eles se conectam. Memoriais esvaziados não são mais do que objetos estéticos para servirem como pano de fundo em uma fotografia; museus reafirmam (às vezes, felizmente) que o que eles abrigam já está morto, já virou História, mas se mantêm factuais em sua natureza; outros meios de expressão apelam diretamente ao emocional do público, mas tendem a cair no vácuo ficcional se deslocados do trabalho dessas instituições. Mesmo os sítios históricos, que poderiam ser pensados como o entroncamento desses três vetores da cultura, não estão imunes à negação de sua própria existência, ou ao menos de sua relevância. Ao fim, o filme acaba afirmando sua própria fragilidade: sem mediadores, mesmo Austerlitz pode parecer apenas um passeio pelo parque. O filme de Loznitsa tensiona a delicada premissa moral de que o holocausto é algo a ser constantemente lembrado, mas essa mesma premissa só existe se articuladas aos mesmos mediadores que o filme põe em dúvida.

Tendo, eu mesmo, sempre aceitado tal premissa, qualquer coisa além da rememoração parece fardo indecente ao visitar um campo de concentração. Ao menos por ora. Até que, como mostrado em vários momentos do filme, um visitante adentre um quartel de olho em seu celular, vestindo uma camisa que diz “Just don’t care”, enquanto a de um outro nos informa que “Fucking Fuck Happens”.

* Tradução do original em inglês por Fábio Andrade.


Elie Aufseesser é crítico de cinema, roteirista, diretor e produtor. Formado em Filosofia e Estudos de Cinema pela Universidade de Lausanne, atualmente, faz pós-graduação na Columbia University, em Nova York. Aos 19 anos, dirigiu seu primeiro curta-metragem para um projeto escolar e desde então continua a dirigir projetos pessoal de curta, tanto ficções quanto documentários. Contribui para a Cinética desde 2015.


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