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Cuidado, madame

O título escolhido para o lançamento de La Cérémonie no Brasil, Mulheres Diabólicas, funciona como uma espécie de pista falsa sobre o sistema de relações que Chabrol constrói aqui, baseando-se no romance L’Analphabète, de Ruth Rendell. Pista falsa, pois o que pode haver de “diabólico” aqui sem dúvida não é algo da ordem individual, mas sim da teia de relações entre as pessoas e as coisas. A simples história de uma família burguesa que contrata uma nova empregada doméstica (Sophie, numa brilhante composição de Sandrine Bonnaire) para sua casa no campo, onde as coisas não saem como previsto, serve para Chabrol erguer um sistema complexo cuja conclusão trágica não pode ser explicada isoladamente por nenhum dos elementos apresentados: o problema é justamente o conjunto.

A prolífica carreira de Chabrol, e sua posição de marginal em relação a uma superfície supostamente iconoclasta da Nouvelle Vague, foram um campo fértil para a constituição de um estilo que conjuga uma face cristalina e fluída, herdada dos diretores clássicos, e um gosto pela irrupção violenta que o une a parte de seus contemporâneos. Chabrol parece ter interesse pelas fendas, por estudar onde os sistemas sucumbem. Portanto, não é uma exceção que este Mulheres Diabólicas seja um paciente tratado sobre a extensão e características da fissura social que constitui a sociedade capitalista, como o título português, traduzido literalmente do original, A Cerimônia deixa mais sensível. A sensibilidade chabroliana para o conjunto quer nos fornecer elementos visíveis e invisíveis do lugar onde um agrupamento de ricos e pobres se desintegra.

A força desta fábula aparentemente amoral reside na compreensão de um elo entre política e visibilidade. O filme compreende que o poder exercido pela família rica sobre a “classe serviçal”, é um poder que se vale da construção de uma superfície e de uma ideia de “normalidade”. O modo de vida “rico” se estrutura sobre certos costumes e pontos cegos. Um dos principais, profundamente explorado na inventiva construção da Jeanne de Isabelle Huppert, é o esvaziamento subjetivo dos pobres realizado sob o verniz de “generosidade”. Jeanne é quem tem consciência deste acordo tácito e abre uma fissura no coração dele não aceitando sua ferramenta propagadora que reside numa atitude geral de inviolabilidade que podemos chamar de “boas maneiras” e ou ”civilidade”. Jeanne é a que entra sem pedir, pela janela, pega os objetos, que desfaz um mandamento moral que jaz sobre a ideia de “propriedade”. Ela é permanentemente e deliberadamente, imprópria: nas palavras, no corpo, nas ações. A uma certa estética anódina que a etiqueta burguesa requer, Jeanne só oferece contrastes e imposturas. Subvertendo a função da televisão, a tarefa de Jeanne aqui é de trabalhar sobre uma transmissão.

O conflito reside no embate entre uma força de revelação e outra de ocultamento. A forma mais eficiente da manutenção da desigualdade, de uma maneira geral, é um artifício moral que traveste uma situação distorcida de um verniz de equilíbrio. Levando adiante esta fórmula talvez seja possível dizer que um certo conjunto de procedimentos cinematográficos que constituem a convenção do clássico narrativo realiza tarefa semelhante com seu material de trabalho. O cinema que descende direto do teatro burguês, de longas metragens, onde se leva a família e se desfruta de um “ambiente respeitável”, se estruturou sobre uma expertise em inviabilizar suas fraturas, descontinuidades e anomalias. Arte essencialmente de colagem, um filme sincrônico, de enredo, é sempre, a priori, um mecanismo de invisibilização de seu mecanismo interno de composição (composições e junções arbitrárias, que resultam numa impressão de fluência e linearidade). O poder de Chabrol no uso desta gramática deságua justamente num “contra-uso”, na medida em que almeja, pacientemente, sua dissolução. Não exatamente para revelar sua falsidade, mas para explicitar seu funcionamento. A opção por uma superfície não iconoclasta revela a política de Claude Chabrol: uma paciência tenaz em desarmar os sistemas por dentro. E daí resulta num amplo inventário de gestos, objetos, posturas e imposturas que constitui a fenda infinita que separa os dois grupos de pessoas.

No jogo narrativo aqui, o diabo está realmente nos detalhes. Nas armas no fundo de quadro, nas diferenças das comidas, no paisagismo contrastante, na boa consciência da filha rica, é onde a sujeição aqui em jogo, sugere seu modo de aparição. O sistema chabroliano é biopolítico: envolve o corpo, a fala, a sexualidade, as imagens consumidas, é, portanto, muito além da diferença de origem socioeconômica. E o cinema não pode estar neutro dentro disso.

Mulheres Diabólicas destaca dois sistemas de comunicação como eixos de constituição dramática da protagonista: a escrita e a televisão (formando um “triângulo”, já que é cinema o que nós estamos vendo). O disparador da insurreição de Sophie é a ameaça da revelação de seu analfabetismo. O problema não é ser exatamente analfabeta, mas ser vista como tal – a inferioridade é uma ideia. Seu refúgio é a televisão em seu quarto – que o filme descreve como esse aparelho de fluxo constante onde um outro filme do próprio Chabrol parece indiferente em relação a um programa de auditório ou um desenho animado. O mesmo aparelho tem uma função distinta para a família abastada na cena final, assistindo à ópera Don Giovanni – marcando claramente uma diferença de uso não só pela oposição de uma cultura “erudita” mas também pelo fato de que na ópera é a família quem programa o que assiste, numa atitude de controle e de arbítrio em relação ao que se vê.

O cinema de Chabrol está ocupado em nos descrever estas diferenças “de forma”. Para vê-las é preciso haver elos (a relação de trabalho, as rimas do aparelho doméstico, a proximidade espacial) e abismos, pois a premissa de haver relações de poder é haver um conjunto comum, um solo compartilhado onde as desigualdades se exerçam. O drama chabroliano é animação destes desníveis no esplendor trágico de sua diversidade, de sua diversão (o filme caminha permanentemente no liame do cômico). A relação entre comicidade e a decupagem que tende aos planos mais abertos (não me vem à mente nenhum plano aproximado em todo filme), atesta este destino tragicômico que se tornará uma marca mais constante do trabalho do diretor justamente na última fase de sua carreira.

Podemos chamar estas diferenças de forma de “descontinuidades”, sendo o analfabetismo a principal delas aqui. O que está em jogo é que os códigos burgueses travestidos de universais não o são, e é justamente na interrupção ou reversão da imposição silenciosa destes códigos que uma insurreição é possível. Mulheres Diabólicas é uma fábula de implosão, de uma destituição por dentro, de uma infiltração que não estanca, só aumenta. E a fórmula final deste processo parece se resumir numa simples ideia formal: a justiça só se fará por dessincronia.


No dia 9 de Março às 19h, a Sessão Cinética exibe Mulheres Diabólicas (La Cérémonie), de Claude Chabrol (França, 1995) no Instituto Moreira Salles – Rio de Janeiro. A sessão será seguida de debate com os críticos da revista.

Uma vez ao mês, a Cinética faz uma sessão no Instituto Moreira Salles, no Rio de Janeiro, abrindo mais um espaço de reflexão e apreciação de filmes fora do circuito exibidor tradicional. A curadoria tem a intenção de programar obras importantes, de circulação restrita nas salas brasileiras, respeitando ao máximo as características originais de projeção de cada filme. Além disso, críticos da revista produzem textos especiais para as sessões e mediam um debate após a exibição.

Mulheres Diabólicas será exibido em 35mm.

Ingressos: R$ 8 (inteira) e R$ 4 (meia). Vendas na recepção do IMS-RJ e no site ingresso.com.


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