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A franquia Resident Evil chega ao fim mais fiel do que nunca, tanto ao mote conceitual de sua proposta funcional – cada filme como uma fase, um sistema fechado de mandamentos formais e referenciais bastante específicos –, como à sua sempre oportuna vocação política. Afinal, nada mais revelador nos dias de hoje do que abrir um filme com a capital norte-americana completamente devastada e recheada de monstros e zumbis à espreita. O apocalipse, como descobrimos neste capítulo final, não é apenas o ensejo perfeito para uma batalha contra monstrengos e milícias privadas ultra equipadas, mas a oportunidade de desmascarar o golpe econômico de um grupo de privilegiados. O propósito da protagonista acaba se revelando, mais do que nunca, não apenas esse, do conflito direto pela sobrevivência, mas, também o da intervenção ideológica. O grande vilão aqui é um mecanismo corporativo fora de controle que concebe aberrações assassinas e devasta camadas sociais inteiras. A culpa, no fim das contas, é do 1%.

É com esse progressismo industrial à James Cameron – o humanismo pedagógico de motivação universal – que Paul W.S. Anderson e Milla Jovovich construíram um universo onde o que interessa é menos uma fidelidade ao plot do jogo original ou a premissas recreativas em voga de um certo cinema de ação (leia-se: a adaptação gibizeira espertona), e mais a uma dinâmica de linguagem do simulacro, da caricatura temática como um elemento inventivo. Não estamos em um filme do Universo Cinematográfico Marvel: os personagens de Resident Evil não soltam sacadas constantes e nem vivem nesse mundo da autoconsciência irônica. São personagens que, incrivelmente nos dias de hoje, têm apenas o objetivo de ir de um ponto a outro, têm, nessa espécie de filme-missão, uma meta simples e elementar: lutar e sobreviver. Invariavelmente, – resistir – pura e unicamente. O corpo e a política, no filme, partem de uma mesma ordem de subsistência, de preservação de mundo como finalidade idealista e, oportunamente, de entretenimento. O que mais importa aqui são as agruras do trajeto (o continuar resistindo) que se reflete nos louros comerciais de uma franquia altamente lucrativa (o continuar entretendo) do que exatamente alcançar um final categórico e limitador.

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Em meu texto sobre Águas Rasas (2016) eu analisava a hiperconstrução formal e cromática do trabalho de Jaume Collet-Serra como um modo de renovação de dinâmicas de gênero e de centralização de personagem. Paul W.S. Anderson, durante a franquia Resident Evil, parte dessa mesma artificialização do seu meio, mas não para reiterar um elemento fundamental de gênero (são filmes de zumbi nos quais o que menos importa são os zumbis), mas para aliciar uma espécie de tradução de mídias que tem na objetividade do gameplay, do ato em si de jogar, de controlar um personagem-avatar, o ponto base da construção de uma mise-en-scène. Se nunca existiu na franquia uma relação de fidelidade com o plot do jogo, ela vai além, já que os filmes são fiéis ao videogame enquanto um modo de encenação.

O diretor não está interessado em simplesmente dramatizar o jogo, mas em traduzir suas lógicas espaciais, em intuir a assertividade de seus gestos, a particularidade sensorial de sua mitologia. E, com isso, empreender uma relação cinematográfica que, passeando por uma gama referencial bastante ampla que vai de George Romero a John Carpenter em seu senso de jornada, de Tsui Hark a Fritz Lang em sua elaboração espacial, possui a cada vez mais rara habilidade de conservar um maquinário formal e narrativo de identidade bastante própria. Mesmo os filmes de Anderson fora da franquia Resident Evil funcionam dentro dessa lógica de um sistema fechado, de uma jornada de sobrevivência na qual o que mais interessa são os obstáculos, as etapas, o nível de dificuldade, do que exatamente o objetivo final dos personagens. É verdade que em Resident Evil 6: O Capítulo Final (2016) isso parece um pouco mais diluído, tanto pelo sua franca função de resolução de franquia, como por algumas subversões formais que são particulares deste filme, mas desde o início da série fica bastante claro que, renovado os preceitos para uma nova etapa, novas regras são fundadas e, com elas, outras referências e dinâmicas de cena são inevitavelmente inseridas.

Dentre as subversões ao próprio método que Anderson apresenta aqui, com certeza a mais explícita é a sua recusa de um formalismo que marcava boa parte dos filmes anteriores. O que era um mundo cristalino em Resident Evil 5: Retribuição (2012) se transforma em um ruído visual constante. O que era uma decupagem objetiva e que, como é de praxe do trabalho do realizador, saboreava-se com as sólidas estruturas dos espaços arquitetônicos para construir uma geometria languiana bastante reveladora, transfigura-se em uma abordagem quase imaterial da imagem. É como se a própria natureza dessa nova etapa (as ruínas finais, os entulhos já fossilizados na paisagem do mundo) influenciasse diretamente a abordagem visual do filme. A construção dos planos e dos enquadramentos agora se reflete em uma montagem que não parece nada interessada em manter o rigor de antes. Pelo contrário, o que vemos, e o que o 3D – pelo bem e pelo mal – ajuda muito a reforçar, é uma relação quase abstrata com a cena.

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O questionamento naturalmente virá: um filme de ação onde, muitas vezes, não se vê a ação? O caso é que, apesar dessa edição hipernervosa e sua constituição estruturalista dos planos, Anderson sustenta uma objetividade vital na encenação. Nesse sentido, o longa nos remete diretamente a filmes de ação onde a rarefação da imagem está ali em benefício de uma maleabilidade inventiva da cena. Evoca-se diretamente The Blade (1995) – não seria este Capítulo 6, aliás, uma atualização tecnicista da obra de Tsui Hark? – à imaterialidade dos trabalhos de Mark Neveldine e Brian Taylor (não é por menos que, aqui, Anderson se utiliza do mesmo montador de alguns dos filmes da dupla). O 3D pode atravancar um dinamismo mais direto – e com certeza o filme deve revelar novas facetas sem esse aparato – mas existe uma clara vontade em incorporar o elemento dimensional dentro do mote conceitual do filme. Mesmo a relação com o terror, nessa instabilidade constante do plano e de suas camadas de ampla profundidade, renova uma iminência da aparição que remete aos primeiros filmes da série e ao próprio mote de jump scares dos jogos. A representação pode partir dessa ordem do imaterial, do constante questionamento sobre a constitucionalidade do plano, mas mesmo ali ela segue uma unidade de normas, um domínio de representação que – como bem já apontou Dave Kehr ao comparar a franquia de Anderson com a franquia Vingadores – não deixa o filme cair em uma aleatoriedade de socos e pontapés, mas perpetua o seu mote objetivo, a sua proposta de finalidades concretas, de missão a ser cumprida.

Mas nem tudo é impalpável. Ironicamente, e muito oportunamente em se tratando do cinema de Paul W.S. Anderson, o CGI entra no filme como um elemento contemplativo. Seja nos planos aéreos (convenientemente, dos poucos fixos e estáveis) pelos quais se aprecia a imensidão devastada, seja nos elementos mais grandiloquentes do filme (como a bela cascata de fogo), a computação gráfica entra como um elemento concreto da cena, visivelmente falso aos olhos de qualquer espectador, mas absolutamente essencial dentro da lógica de encenação da obra. Em um cinema que reverencia caricaturas temáticas e variações de um simulacro tendendo ao arquetípico, o efeito especial é tão legítimo como a força da natureza, um processo de validação da fantasia não como um simples atalho para uma dinâmica imponente, mas como produto de uma construção imaginativa dramaticamente muito bem edificada.

O próprio passeio que a franquia faz por uma temática tecnológica fantasiosa tanto confirma uma certa excentricidade inventiva na concepção desses elementos naturais ao seu mundo, como constrói uma reflexão sobre o conceito de identidade em torno de biotecnologias ultracontemporâneas. Os filmes constantemente trabalham dentro dessa dicotomia entre humanizar a personagem principal (o núcleo de amigos sobreviventes, sua vocação materna, seu constante senso de empatia) e assumi-la como uma mera peça de tabuleiro (clonando-a, jogando com o senso de realidade dela, dando e tirando seu poder sobre-humano quando convém). A individualidade de Alice acaba sempre reduzida ao ato de efetivar tarefas, a função de uma máquina. Laços afetivos vêm e vão, mas a natureza mecânica do seu meio acaba forçando a protagonista a seguir em frente em uma condição automática, lutando e sobrevivendo.

Ao final deste sexto e último filme, quando revela-se que Alice é nada mais do que um clone de Alicia, o filme está sendo mais fiel do que nunca a essa lógica involuntária da protagonista: uma personagem que já nasce com a simples vocação para avatar, de cumprir um objetivo, de realizar-se enquanto mero produto das nossas aventuras. Paul W.S. Anderson não abre concessões dentro do seu mote inicial e, mesmo em um gesto dramático arriscado, assume a sua tão cativante personagem como artefato dentro de uma jornada de intuitos básicos: nascer, lutar, vencer. A constituição da protagonista não é exatamente mais especial do que nenhum outro personagem daquele mundo; como tudo no cinema do diretor, ela é uma consequência da natureza desse mundo e, por isso mesmo, submissa às suas regras e desígnio iniciais.

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Mas mesmo quando a personagem toma completa consciência de si e da sua posição de peça programada, a missão ainda não terminou. E é curioso como, nessa parte final, que toma emprestado justamente o cenário do primeiro filme da série, o diretor volta às origens tanto na relação espacial com aquele meio como em uma dinâmica da ação mais coreográfica. De volta ao corredor principal da colmeia, ambiente que deu origem a algumas das cenas mais emblemáticas da franquia, Alice precisa derrotar aquele que não é só o chefe da grande corporação, mas agora também um megalomaníaco religioso que transformou o apocalipse em uma arca de Noé capitalista. O jogo simétrico do ambiente que resguarda, sã e salvos em cápsulas criogênicas, os mais ricos do mundo, funciona como a ilustração de uma pirâmide social às avessas que a personagem, agora mais do que nunca, precisa destruir.

E assim será: fiel à função e lógica humanista de sua jornada, Alice luta e vence, não buscando uma espécie de reconciliação dramática ou catarse absoluta, mas por ser essa a simples e objetiva finalidade do jogo. A protagonista, agora com os obstáculos já vencidos, fica sem rumo. O que fazer com uma personagem sem utilidade? Cria-se um fiapo narrativo num epílogo que parece até improvisado para, de algum modo, dar um sentido àquela existência. Em um filme que recusa o drama como simples artifício de aproximação e se baseia quase que inteiramente em lógicas concretas de ação e movimento, de manutenção pela sobrevivência, chegar ao fim torna-se um fundamento existencialista. Não é por menos que o final da saga remete a desde elementos metalinguísticos dos jogos de Hideo Kojima – a autoconsciência não como o atalho para um cinismo presunçoso, mas como reflexão que questiona as próprias intenções daquele formato enquanto mundo-simulacro – a princípios básicos do travelogue cinematográfico. Perdurar o movimento de uma vida, mesmo em um jogo, significa seguir em frente mesmo quando não existem inimigos. Os obstáculos, no fim das contas, são apenas desculpas essenciais para prosseguir. A vida não é feita de finalidades, mas de constante movimento. Continuar por continuar, afinal, acaba sendo a base fundamental não só da conservação de um mundo, mas do inevitável absurdo que é, simples e puramente, estar vivo.


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