fences-capa

Existo, logo enceno

Em tela preta, a voz de Troy Maxson (Denzel Washington) ressoa. Nos segundos iniciais, Um Limite entre Nós (Fences) se apresenta como um filme dedicado à palavra. Ao aparecer a primeira imagem, com dois personagens se movendo pendurados num caminhão de recolhimento de lixo, torna-se também um filme dedicado ao corpo. A soma do verbo com a carne é a base de sustentação do tour de force de Troy como um furacão de emoções que, no cotidiano simples e íntimo de um bairro de Pittsburgh em meados dos anos 1950, derruba a tudo, todos e todas com as chagas do ressentimento histórico. Ainda que se assemelhe ao aporte agressivo de um Dixon Steele (Humphrey Bogart) em No Silêncio da Noite (Nicholas Ray, 1950), Troy é um homem machucado pela história da América. Ele é consequência direta da segregação racial e de um ciclo de dores que remonta ao período escravagista. Como bicho ferido, ele igualmente fere para se defender. Pelos caminhos do instinto, retroalimenta o pêndulo da violência. Diante dele, ninguém se sustenta de pé por muito tempo.

Tal personagem selvagem irrompe em Fences como centro do melodrama familiar escrito pelo dramaturgo August Wilson em 1983. Ainda na cena de abertura, Troy conta a história de um colega de trabalho (negro) que escondeu uma melancia debaixo da blusa e conseguiu sair carregando a fruta diante dos olhos do chefe (branco). No embalo, amaldiçoa o mesmo chefe por só deixar homens brancos dirigirem o caminhão de lixo. No diálogo seguinte, o amigo Bono (Stephen Henderson) provoca Troy sobre uma paquera. Ainda na mesma conversa, Troy fala do amor pela esposa, Rose (Viola Davis). Em poucos minutos de projeção, o filme passou por alguns de seus centros nervosos e pontos de tensão: o trabalho masculino como provisão do lar; a segregação racial; a subjugação da mulher; a traição conjugal; os laços familiares; a camaradagem entre amigos; o ressentimento.

Na sua encarnação de Troy, Denzel Washington fala, gesticula, grita, sussurra, dança, canta, imita ou reproduz vozes, inventa interlocutores, reconfigura a exposição das narrativas. Esse personagem inquieto contém um universo inteiro em cada um de seus movimentos. A conjunção e a centralidade das várias linhas de força de Fences se dão no quintal de casa. Enquanto as cercas tão ambicionadas por Rose não são construídas, as linhas seguem se atravessando, se tangenciando e tangenciando também tudo aquilo que está no exterior. O fora de campo – tanto individual, a afetar a história de cada personagem, quanto coletivo, a influenciar todos eles num sentido amplo – é sugado a esse quintal e atravessa os corpos ali em circulação e convivência. Fences é um filme centrípeto, na medida em que absorve para dentro dos afetos o que está fora da visualidade. A construção de uma cerca para o jardim, mote do enredo, é metáfora perfeita para a ideia de que o mundo está se concentrando e invadindo tanto aquele ambiente, que talvez seja preciso neutralizá-lo.

A fantasmagoria do fora de campo afeta cada comportamento e situação e assombra por caminhos variados: a condição histórica dos negros nos EUA (dolorosamente exposta recentemente em três documentários indispensáveis: A 13ª Emenda, de Ava DuVernay; OJ: Made in America, de Ezra Edelman; e Eu Não Sou Seu Negro, de Raoul Peck); a submissão da mulher numa sociedade patriarcal e machista; a subserviência do trabalhador ao lugar onde o branco privilegiado acha que ele deve estar; o rancor de passado violento a impedir o futuro promissor. É como se o quintal fosse uma pintura não-estática, cujos elementos presentes nas pinceladas estivessem ampliados ao infinito, reverberando para além da moldura, como se expandem as ondas na água provocadas por uma pedra lançada a esmo. O quintal é a “máscara que só pode desmascarar parte da realidade” (conforme escreveu André Bazin ao relacionar a tela de cinema à moldura da pintura), e o desmascaramento em Fences se dá na relação direta entre o fora de campo e os dramas intimistas de Troy e dos demais personagens naquele quintal.

A contenção dos conflitos nas delimitações da casa dá ao filme seu forte caráter de teatralidade. Quantidade razoável de críticas escritas sobre Fences trouxe este aspecto ao primeiro plano de maneiras equivocadas – fosse no sentido negativo, como questão a ser atacada (no quadro de estrelinhas do Guia da Folha de março de 2017, liam-se as seguintes sínteses sobre o filme: “muito texto e pouco cinema”, “bom texto, bons atores, mas cadê cinema?”, “Denzel atua tão bem que se esqueceu de dirigir”, “me senti numa excelente peça de teatro”); ora no sentido positivo, como algo a ser mediado (texto em O Globo dizia: “Denzel assume a base teatral ao valorizar o texto e as atuações e ambientar a trama em espaços reduzidos”).

fences-1

Nestas visões, o fundamento está na soma dos clichês mais rasteiros do que se convencionou chamar de “teatral” no cinema: grande quantidade de diálogos, poucos personagens, cenários reduzidos, câmera mais estática, atuações exacerbadas, expansivas ou artificiais. Seria como se estivessem no mesmo saco Festim Diabólico (Alfred Hitchcock, 1948) e Repulsa ao Sexo (Roman Polanski, 1965), quase toda a obra de Jacques Rivette, John Cassavetes e Yasujiro Ozu, vários trabalhos de Manoel de Oliveira, Rainer Fassbinder, Marguerite Duras, Straub/Huillet e Chantal Akerman, um tanto de Ingmar Bergman – para citar apenas alguns de memória imediata, tenham ou não lidado com peças de teatro. A lista seria interminável. O que está em questão, no olhar simplificador, é a redução de um determinado número de elementos ao carimbo de “teatral” (quase sempre pejorativamente), desconsiderando ou pouco se atentando à singularidade de cada estética e de cada escolha do artista em como lidar com o material, seja ele originário ou não dos palcos.

Por outro lado, o teatro é uma linguagem.

Bazin escreveu para a Esprit, em 1951, uma análise sobre as relações entre o teatro e o cinema, estimulado justamente por ataques considerados injustos e um tanto irresponsáveis ao que ele chamava de “teatro filmado”. O raciocínio de Bazin era de que a adaptação de uma peça para o cinema era mais expressiva quanto mais se dedicasse a “acentuar sistematicamente seu caráter teatral” e fizesse do drama “plenamente um espetáculo”. As bases da encenação original seriam seu próprio impacto e fingir que elas não existiam, em vez de potencializadas na tela, não era exatamente o melhor caminho no processo de adaptação. “Quanto mais o cinema se propuser a ser fiel ao texto, e a suas exigências teatrais, mais necessariamente ele deverá aprofundar sua própria linguagem. A melhor tradução é a que atesta a maior intimidade com o gênio das duas línguas e o maior controle delas”.

Bazin analisava da perspectiva textocêntrica (“De qualquer ângulo que a abordemos, a peça de teatro, clássica ou contemporânea, é irrevogavelmente defendida por seu texto”, afirma, no mesmo artigo). Por contexto histórico ou desconhecimento, o crítico francês ignorava as infinitas outras maneiras de a teatralidade se expressar e que se fizeram cada vez mais presentes nos anos seguintes ao seu artigo. Mesmo assim, defendia que a expressividade de um filme adaptado do teatro não vinha da tentativa de ser “mais cinema” e “menos teatro”, e sim do desafio de encontrar uma mise-en-scène autorreferencial, de forma a “excitar a consciência do espectador e de provocar sua reflexão”.

Alguns anos depois, a crença no texto como principal elemento do teatro passou a ser mais contundentemente questionada, como aponta a crítica Luciana Romagnolli: “Contra uma hierarquia teatral dominada pelo texto, o século XX responde com uma virada performática, proclamando a autonomia do teatro como forma artística, livre da dependência de expressar sentidos textuais predeterminados, e redirecionando o foco da atuação para a reflexão sobre a natureza material do corpo humano, seu aspecto físico e a criação de novos sentidos por si mesmo”.

Em 1966, Susan Sontag já lidava com novas formas de teatralidade e, atualizando Bazin, também criava paralelos nas relações com o cinema. Sontag detectava o mesmo tipo de lugares-comuns usados para se apontar o “teatral” num filme, agora com o acréscimo de uma luta entre visões hierárquicas de classe. Ela acreditava que, por trás de ataques contra elementos pejorativamente chamados de “teatrais” em filmes de épocas distintas – de O Gabinete do Dr. Caligari (Robert Wiene, 1920) a Gertrud (Carl Dreyer, 1964) –, estaria “o julgamento de que tais filmes eram falsos, de que exibiam uma sensibilidade pretensiosa e reacionária, que estava fora de passo com a sensibilidade democrática e mais mundana da vida moderna”. Na visão de Sontag, existia uma “posição político-moral definida” de que o cinema é o lugar de um suposto realismo que lhe confere prestígio por se afirmar como resultado da visão de uma “arte democrática, a mais importante da sociedade de massa”. E concluía: “Uma vez que se leve tal descrição a sério, tende-se a desejar que os filmes continuem a refletir suas origens em um nível vulgar das artes, permanecendo leais a seu vasto público não sofisticado. (…) O cinema, ao mesmo tempo arte elevada e arte popular, é considerado a arte do autêntico. O teatro, por contraste, significa a ostentação, o simulacro, as mentiras”.

Tanto André Bazin quanto Susan Sontag concordam num ponto central: a presença, num filme, de elementos tidos por “cinematográficos” não o fazem mais cinematográfico do que um que contenha elementos tidos por “teatrais”. Sontag resume: “Os filmes com diálogo formal ou complexo, nos quais a câmera é estática ou a ação se situa em interiores, não são necessariamente teatrais – sejam ou não originários de peças. Per contra, tanto a ideia de que a câmera deva passear por uma extensa área física como a de que o elemento sonoro em um filme precise sempre se subordinar ao visual fazem parte da ‘essência’ suposta do cinema”.

fences-2
Se Denzel Washington leva à tela algo da matéria-prima do texto de August Wilson, é a noção de teatralidade para deixar ascender sua força de impacto. Ele desvincula a representação como coisa-em-si, afasta-se do texto como mera base de ilustração e chega ao paroxismo da própria encenação. “O texto não é mais senão um produtor de signos entre outros; a encenação é o ‘teatro’, é sobre ela que repousa a teatralidade”, lê-se no Léxico do Drama Moderno e Contemporâneo organizado por Jean-Pierre Sarrazac. O conteúdo textual, afinal, sobressai em Fences justamente pela lapidação investida por Denzel no uso exacerbado da palavra e da musicalidade do falar, sem estratégias para esconder ou omitir esse movimento.

Cada elemento em Fences está dado como estrutura da intriga e sua intensidade se deve a Denzel Washington, na função diretor, assumir a palavra, o corpo e o espaço como condutores do drama. O filme se faz grande cinema pelo essencial de filmar pessoas a conversarem como se filmasse a própria História em movimento num bairro de subúrbio. Não é que o cineasta-ator precise encontrar maneiras “cinematográficas” de filmar o texto de Wilson. É a peça que contém força suficiente para que, dela, Denzel opte pela contenção física e geográfica para chegar à explosão emocional, e vice-versa – aqui, uma não aconteceria sem a outra.

A mise-en-scène é ela mesma centrípeta em Fences. Absorve para si os corpos, trejeitos e movimentos dos atores, a câmera a circular no ambiente como deflagradora do enredo, a sonoridade das palavras como expressão estética, os cortes de montagem que intercalam os longos planos de monólogos a planos curtos das reações de outros personagens ao que está sendo dito, a subjetividade invertida dos pontos de vista (numa narrativa que se dá pelo olhar do espectador, o cinema como um acontecimento visto pelo buraco da fechadura, nas palavras de Jean Cocteau). Em vez do naturalismo que tentasse criar algum caráter de identificação pela forma, as atuações assumem o artificialismo do falar e o filme se permite o devaneio de Troy a desafiar a morte durante uma tempestade ou o céu se abrir no sopro seco da corneta de Gabe.

Denzel Washington cria blocos temporais de ação que subvertem o conceito de apreensão total da cena, sem explorar o plano-sequência como fetiche. A profundidade de campo, elemento tão valorizado por Bazin na defesa do cinema como vocação da reprodução de realidade, quase não aparece em Fences. O filme quer a superfície do campo como expressão. Durante os embates verbais dos personagens, o tempo enquanto experiência de duração é respeitado, mas a encenação da teatralidade proposta por Denzel não torna a linguagem refém dessa duração. Um diálogo que se desenvolve na frugalidade da tarde de sexta-feira repentinamente vira uma discussão existencial ou afetiva pelo simples clique de uma palavra dita, alguma virada de pescoço, um corte da montagem, um silêncio entre a falação, o som de vozes da rua: seja qual for o recurso da direção para que o filme transite por suas várias camadas numa mesma sequência, ele será sempre puxado pela cena, não pela técnica. Antes de ser teatral ou cinematográfico, Fences – como dezenas e dezenas de filmes, melhores ou piores, mas de características similares – é encenado. Esta é a grande base de sua apreensão.

Se visto com olhos livres, Fences explicita sua potência e sentidos estéticos e narrativos. Troy é uma fissura entre tempos. Foi morar nas ruas no final da 1ª Guerra, após brigas físicas com o pai, “mau como só ele”. Ficou preso por 15 anos depois de matar na faca um homem que lhe dera um tiro. Foi preterido do baseball por técnicos brancos e, ao conhecer Rose, reconstruiu a vida durante e depois da 2ª Guerra. Ele é, portanto, um homem perdido no meio de mudanças estruturais de uma sociedade que tentou expeli-lo. Os rancores que o mobilizam vêm da percepção de que nada pode dar certo para ele, já que toda uma história dos negros na América se funda na exclusão deliberada. O irmão, Gabe (Mykelti Williamson), corporifica a distância entre tempos.. Ferido na guerra contra os japoneses, tem uma placa de aço na cabeça que o deixou deficiente mental. Gabe é a representação torta e desequilibrada do presente de Troy, alguém que ao mesmo tempo remete a seu passado (o único irmão, de um total de 11, com quem Troy manteve contato depois da briga com o pai) e também relembra-o constantemente da estagnação e da impossibilidade de superar, por méritos próprios, os limites sociais e raciais (uma pensão do governo dada a Gabe por conta do ferimento pagou a casa onde Troy mora).

fences-3

Ele é um racionalista a sempre expor lógicas próprias com incrível habilidade retórica. Num duelo verbal cuja dialética parece a de outro notório conflito entre pai e filho no teatro e no cinema (Eles não Usam Black-tie, de Gianfrancesco Guarnieri), Cory (Jovan Adepo) pergunta se o pai gosta dele. Troy responde: “Um homem deve cuidar da casa. Você mora na minha casa, come da minha comida, dorme na minha cama porque é meu filho. Não é porque eu gosto de você, é porque é meu dever, é minha responsabilidade. Não preciso gostar de você. Isso não estava no acordo”. A convicção de que o treinador branco não vai deixar o filho negro avançar como jogador de futebol americano remete ao próprio passado de Troy como atleta sabotado e nubla suas ideias mesmo quando algum interlocutor lhe apresenta dados que o desmentem. “Cansei dessa conversa”, responde, quando o filho argumenta que os negros têm tido mais chances de jogar agora do que na época em que o pai foi preterido. “O mundo está mudando e você nem percebe”, vaticina Rose ao marido.

Ao revelar a gravidez da amante e tentar se explicar à esposa, Troy se enrosca em raciocínios que, na sua lógica particular, fazem-lhe total sentido. Entre metáforas de baseball e o distanciamento dos sentimentos da esposa, idealiza Alberta (a amante) como alguém que lhe deu “outra percepção” da vida. Essa mulher a habitar o fora de campo surge como outra fantasia de Troy, parte das verborragias que ele apresenta como genuínas tanto quanto seus embates com a morte ou com o diabo. Na negativa de assumir sua vida com o olhar para adiante, ele constrói uma narrativa alternativa para si, na qual Alberta é o oásis que o permite rir e se divertir, como se esse oásis também não fosse brutalmente atravessado pelo sentido amplo das condições históricas e estruturais de uma dada realidade (o que efetivamente acontece de maneira trágica, na morte de Alberta durante o parto).

Todo o filme se configura, então, como a narrativa da existência de Troy no mundo (fora e dentro do campo fílmico). Mesmo em sua ausência no ato final de Fences, a fantasmagoria continua, só que a presença da História parece ter diminuído (a cerca enfim construída no quintal não deve ser coincidência) e as feridas afetivas se intensificam. O espectro do personagem se concentra na memória sobre ele. A linha-dura de Troy ainda devasta, especialmente no mal-estar de Cory, mas uma estranha idealização se manifesta. Na sensibilidade provocada pela morte e pelo tempo, Rose se utiliza de dialética similar à do marido para convencer o filho a ir ao velório. Um ciclo se perpetua, mas, como sabemos por Heráclito (“o real é sempre fruto da mudança, ou seja, do combate entre os contrários”), a repetição dos atos nunca sai nem chega a partir dos mesmos pontos de origem. A História, afinal, seguirá caminhando.


Leia também: