Os Oito Odiados (The Hateful Eight), de Quentin Tarantino (EUA, 2015)

setembro 1, 2016 em Em Cartaz, Juliano Gomes

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A conversa infinita
por Juliano Gomes

“O cronista que narra os acontecimentos, sem distinguir entre os grandes e os pequenos, leva em conta a verdade de que nada do que um dia aconteceu pode ser considerado perdido para a história. Sem dúvida, somente a humanidade redimida poderá apropriar-se totalmente do seu passado. Isso quer dizer: somente para a humanidade redimida o passado é citável, em cada um dos seus momentos. Cada momento vivido transforma-se numa citation à l’ordre du jour — e esse dia é justamente o do juízo final.”

Walter Benjamin em Teses sobre a História

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A opção da tradução brasileira para “odiados” deixa algumas faces importantes do sentido de fora. O adjetivo, em inglês, descreve algo que se pode odiar, que merece ódio e/ou cheio de ódio. Odiado, odioso, “odiante”. O ódio é a matéria, mas é igualmente importante a ambiguidade da variedade de posições possíveis. É essencial se perguntar onde está o ódio, ou melhor, que ele circula entre as partes; que ele seja objeto de comunhão.

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A coincidência do número oito, dos oito personagens principais, e do oitavo filme do diretor (as duas partes de Kill Bill (2003, 2004) contam como uma – o que conta é a versão do autor), já abre um importante processo de espelhos e duplicidade. Há um longo filme que é composto destas oito cenas (para desfrutar o trabalho de Tarantino é preciso de tempo, de uma coisa após a outra. Daí a importância das grandes durações dos filmes, das cenas, e da presença da idéia de obra como produtora de sentidos para os filmes). Nesta narrativa, em curso desde os anos 1990, temos aqui seu capítulo mais camerístico. Os Oito Odiados é seu filme em chave mais baixa, em tom menor (apesar da longa duração). A ação, a velocidade, a violência gráfica dão lugar aos jogos de fala, a uma proliferação de jogos de sentido mais do que de ações físicas. Assim, em relação a uma ideia menos atenciosa do trabalho de Quentin Tarantino, temos um filme plenamente odiável, que durante três horas parece oferecer nada para quem procura excitação por intensidades em tom maior. Durante as tais três horas, seis capítulos, passamos mais de dois terços acompanhando um grupo de personagens fechados numa parada de estrada. Espaço único, pouquíssimas elipses; pessoas sentadas falam. Depois de uma de suas obras mais expansivas e heterogêneas, Django Livre (2012), temos aqui uma exploração da contenção.

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Evocar um caminho composto pelos filmes anteriores soa importante na medida em que claramente se trata de um artista que trabalha ativamente neste nível de composição, que pensa uma obra, a maneira como uma parte conversa com a outra, e, portanto, uma dramaturgia deste caminhar. Tarantino sempre foi um historiador. À sua notável historiografia das formas, adicionou-se um interesse pelos materiais mais clássicos da história contemporânea, como a Segunda Guerra Mundial e a Guerra de Secessão. Na seqüência atual, das teses sobre a história sociopolítica do Ocidente, The Hateful Eight é um momento de contração, de concentração de energia, em que o espectador precisa se sintonizar com o pequeno, com os detalhes, com o insignificante, com as baixas intensidades.

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Como todo grande artista, há sempre múltiplos aspectos em funcionamento em seus trabalhos. Onde às vezes um aspecto sobressai, as outras linhas continuam atuando. Se o seu trabalho com a violência gráfica e coreográfica e um certo pathos narrativo na composição geral do filme se estamparam como marcas pós Kill Bill, não é possível dizer que seja uma surpresa esse movimento em direção aos tons menores, às cores mais frias. Desde a primeira cena de Cães de Aluguel (1992), seu principal material de trabalho está colocado: o diálogo, a conversa, a palavra encarnada como matéria no contracenar. Personagens que falam pelo prazer de falar, a fala como jogo, como dispêndio, e como ação abstrata porém sensorialmente concreta. Essa é a base da alta freqüência de composições extraordinárias de seus atores-colaboradores. Os grandes momentos do cinema de Tarantino são em maioria estes em que a fala adquire tal autonomia que forma uma espécie de mundo em si, de algo que se explica pela graça e beleza de ser, e de se combinar com as outras partes, em jogos de construção e destruição de sentidos e sensações. Só Pulp Fiction (1994) já traz um caminhão destes momentos à memória. O centro do jogo é este exercício de preenchimento do tempo – que é talvez o exercício direto do próprio tempo como dimensão – cuja finalidade se esvai e o exercício se torna meta de si, enquanto matéria de experiência, tocando o fora do filme de maneira indireta, fabular e metafórica.

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Os Oito Odiados se concentra numa parada de estrada, num meio de caminho. Sem saída, sem chegada. O espaço e o tempo são o do meio, o da travessia, o temporalmente inútil. A tempestade obriga aqueles homens a esperar o tempo passar já que o “inferno branco” de neve os impede de sair. O que fazer com esse tempo que não serve pra nada? Esperar. E contar. No filme “oito”, temos uma espécie de fábula, de meta-fábula sobre o exercício da narração. Homens sem valor, caçadores de recompensa, versando sobre o que também, segundo as regras morais, aparentemente não vale nada. Jogando conversa fora, pelo prazer de fazê-lo.

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O exercício deste contar não é pacífico. A força que se contrapõe a ele é a morte, o desaparecimento do tempo e da possibilidade de ouvir, falar e sentir. É ela que os ameaça. E tais jogos, de falar e morrer, se estabelecem em torno da idéia de crença. O desafio dos personagens para sobreviver ao tempo, a este ambiente inóspito, este “white hell”, é saber e fazer confiar. À tarefa da ficção está atrelada a questão da crença, não como uma chave absoluta, do haver ou não haver, mas da sua construção, deste “fiar”, desta costura conjunta. Daí advém a importância dos narradores-matadores. Em um mundo sem lei, sem anterioridade compartilhada, a comunhão tem que ser construída a cada momento. Esta é a moldura do conto civilizatório. De maneira bastante literal, o assunto da fábula é a formação, a forma, de uma comunidade (mais especificamente, de um país). Uma análise dos valores sobre os quais ela se funda, e sobre quais ela se autodestrói. Daí este estranho formato de exercício filosófico clássico (“os diálogos”) no seio da indústria do espetáculo, que nos mostra uma anacrônica busca por virtudes, vista pelo negativo, por meio dos párias. A desconfiança é disparador de um fluxo abundante de exposições de hipóteses e de teorias, que são performances, números, em si mesmas.

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Desde a situação inicial, Major Marquis Warren (Samuel L. Jackson) é colocado à prova para conseguir a carona na diligência. Warren, o estrangeiro do jogo de cartas marcadas que descobriremos, é a peça que desmonta o jogo, é o intruso, assim como Chris Mannix (Walton Goggins). O acaso causa o encontro e a narração o consolida. Para poder seguir, os homens têm que provar que são confiáveis. O objeto central desta relação é a carta de Abraham Lincoln que costura os dois momentos cruciais do drama: aceite da entrada do Major e comunidade moribunda final entre Marquis e Mannix. O objeto central da metafábula de Tarantino, como era de se esperar, mostra-se uma peça de ficção. A carta falsa é a arma de confiança que permite um negro circular e ser digno de crença, numa alusão clara à inserção subjetiva do negro via produção de fabulação, de invenção de si como passe de sobrevivência e circulação no “inferno branco” que domina os espaços.

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A abundância subjetiva do personagem de Jackson se realiza plenamente no que talvez seja o mais justo núcleo do filme, quando seu personagem narra, numa mistura de flashback e fantasia, o encontro, durante a Guerra de Secessão, com o filho do soldado dos Confederados Smithers. A ritualização mais direta da guerra, o militar negro e o militar branco, o norte e o sul, o velho e o vivo, se consuma no monólogo de Marquis. À certa altura, o filme nos dá a ver esta narrativa, mostrando uma ilustração do que diz o Major negro. A detalhada humilhação descrita por Samuel Jackson adquire forma sob nossos olhos, numa ilustração ambígua. Isto aconteceu? Nunca se saberá se é verdade que o filho de Smithers vagou pelo frio e se o sexo oral forçado em Warren foi mesmo sua única forma de aquecer-se; o que sabemos e que sentimos, pela forma, pela intensidade das pausas e trejeitos de Jackson, pela decupagem de plano, contraplano e conto, é que se trata de algo definitivamente verdadeiro. Esta metamorfose da narração é pontuada por uma fala de Warren: “You are starting to see pictures”, diz. Tal frase refrata e ricocheteia multidirecionalmente no jogo de espelhos tarantiniano. Com quem ele fala? Conosco e com todos. Neste autêntico teatro filmado, neste cinema falso (Tarantino, um alquimista da falsidade), opera-se este estranho milagre da consubstanciação, este tornar-se, uma transformação pela demora, persistência, detalhamento e tagarelice. É preciso construir a fortaleza do falso, no inefável, com a maior solidez possível, e a matéria da solidez é essa visualidade da oralidade, essa intrusão dos sentidos, que torna as coisas reais, que torna os fragmentos, coisa, e as imagens, experiência.

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O teatro se torna matéria e assunto aqui. O anacronismo na filmagem utilizando um formato em desuso, o 70mm, remete a um cinema morto, uma arte dos grandes teatros, das imensas arenas, hoje ruínas, da performatividade da projeção (como na precariedade do suporte simulada na obra-prima À Prova de Morte, de 2007). O filme teve inclusive um lançamento em versão alternativa para esses espaços, com a cópia em película de grande formato, abertura, intervalo, com alguns minutos a mais, chamada de “roadshow version”. Palco e platéia dentro e fora do filme, personagens que atuam, personagens que assistem, e a relação se espalha para fora, para a arquitetura, para as distâncias entre palco e platéia e para os paradoxos desta separação. Tal conflito central reside no manejo da crença: num formato tão largo, maior que o homem, bigger than life, suntuoso, imponente, podemos ao mesmo tempo acreditar e desconfiar, confiar sabendo falso, celebrando a impureza fundamental da experiência estética, para dentro e para fora da obra, num trajeto de analogia infinito, onde a o teatro será sempre a melhor metáfora.

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Politicamente, os poderes estão sempre nos querendo fazer esquecer da morte das coisas, dos restos, do lixo, das degradações (do tempo enfim), via intoxicação do novo: “compre, compre, compre”, dizem. Tarantino ataca aqui esta política temporal, numa dobra de dentro do sistema, como mensageiro permanente da morte. Aí sua parábola é literal: todos morrem, o tempo é limitado, a vida é suja, porca e imperfeita, mas há algo a fazer nessa antecâmara do fim. E esse algo só pode começar pelo reconhecimento desta dimensão degenerante, marginal, deste olhar pros restos, para os que fogem do projeto cultural (cultura pulp, baixa cultura) e subjetivo, com seus párias matadores, homens sem rumo, sem futuro, sem projeto, mas onde podemos ver nascer a virtude. E que virtude seria essa? A ética. A destruição da moral via seus anti-heróis reafirma a ética como construção entre os homens, como experiência do presente, afetiva. E isso se espalha, desde o analógico, esse sistema artesanal fora do tempo, onde superfícies se encontram e se tocam, até a celebração da arquitetura coletiva dos grandes teatros, em oposição à solidão contemporânea da fruição de filmes. Mesmo a busca pela construção de uma obra está a serviço de um desejo de durar além, de constituir um corpus, de manejar o tempo em nome de uma duração própria, a rigor inútil, cujo único sentido e função são a experiência do tempo como transformação de si, como diferença, assim como uma palavra, tornada som, se torna visualidade compartilhável.

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Se cada imagem de Tarantino é sempre um palimpsesto, é porque seu cinema é essencialmente uma defesa radical da mediação como mecanismo redentor. O centro do poder da carta falsa não é algo grandioso nas palavras do falso Lincoln (um político-escritor, que de fato escrevia cartas para militares e suas famílias, entendendo também a força do contato pela imagem e da mediação) mas o detalhe que encerra: “Old Mary Todd is calling so it must be time to go to bed” (“a velha Mary Todd está chamando, deve ser hora de ir pra cama”). O detalhe que “pega” os personagens, que dispara a ficção, é o detalhe inútil, o toque sem função, que cria um efeito de real justamente pela sua disfunção, algo que remete à própria construção da carta, que ressalta a circunstância do escrever, da fabricação, do ato.

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Na aparente frieza e monotonia odiosa do “oitavo”, Tarantino esconde um de seus exercícios estéticos e políticos mais radicais. Da permanência do racismo como mito fundador da idéia de civilização à defesa da mediação como elemento ético que pode atualizar este mito em uma comunidade real, o filme se coloca em um lugar raro, atravessando contradições no seio de uma máquina de marketing, de esquecimento da morte, à qual a experiência do filme radicalmente se contrapõe, expondo um conflito político decisivo e permanente: como destruir as instituições. A ambigüidade moral de Tarantino é essa de quem precisa do poder pra lhe atirar de volta seu precioso lixo processado, tornado então antídoto. Ao adiar uma catarse que nunca chega como esperamos, colocando a violência gráfica e a herança do splatter como parte marginal de um filme radicalmente atomizado (só há partes), Quentin Tarantino erige mais um degrau no seu legado singular de cronista do tempo, alimentando-se das falhas, dos buracos e vazamentos e fazendo deles o centro de sua construção, da qual temos a alegria de ser contemporâneos.

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