Vocês Ainda Não Viram Nada (Vous n’avez encore rien vu), de Alain Resnais (França, 2012)

maio 16, 2013 em Em Cartaz, Filipe Furtado

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Casa de ficções, palavras de fantasmas
Por Filipe Furtado

“Tão logo atravessaram a ponte, os fantasmas não demoraram a se apresentar”.

Intertítulo de Vocês Ainda Não Viram Nada, roubado da versão francesa de Nosferatu.

Mais do que quaisquer outros filmes, o cinema de Alain Resnais se constrói num retorno às palavras, mais precisamente um retorno até as palavras dos outros. O movimento inicial de Alain Resnais será sempre o de localizar um texto que lhe mova, e dali levantar a questão “qual ficção é possível se animar a partir daqui?”. Há uma ficção em repouso, comatosa, à qual cabe o cinema o papel de reanimar. Não surpreende que o mestre francês tão frequentemente se revele atraído por textos distantes dos modismos, perdidos no tempo ou pertencentes a tradições pouco nobres. É um movimento de profunda generosidade: as palavras são iguais na casa da ficção, cabe ao artista somente a função de encená-las, dar-lhes um corpo, permitir que alcancem a sua potência. Os filmes de Resnais, de Hiroshima, Mon Amour (1959) até este Vocês Ainda Não Viram Nada, existem no intervalo entre o texto buscado e sua presença de encenador (logo, nada mais normal que, na parte final de sua obra, ele se volte com tanta frequência para o teatro). É uma arte do diálogo que busca o tempo todo esta ponte, que tem a certeza sempre de que pode reanimar por uma vez mais esta trajetória.

Vocês Ainda Não Viram Nada é extraído de dois textos diferentes de Jean Anouilh, a mais conhecida Eurídice e Cher Antoine ou L’Amour Raté, o primeiro se desdobrando como o texto dentro do texto do segundo. É a primeira das várias passagens que o filme procede, se movendo de um ao outro – de Cher Antoine, que lhe oferece a estrutura dramática, a Eurídice, cujo drama, ele apresenta. Vocês Ainda Não Viram Nada é um filme construído a partir de um coro de ecos, já previsto na sequência inicial em que o elenco de figuras conhecidas do cinema francês é apresentado um a um, recebendo a noticia do falecimento de Antoine (efeito repetido por Resnais logo depois, com os atores entrando um a um na casa do dramaturgo que servirá de palco a ação). O mesmo sentimento se repete, um sobre o outro, com efeitos próprios, assim como mais tarde o texto de Anouilh será redimensionado através de múltiplos atores, que sua Eurídice poderá se separar em Sabine Azema, Anne Consigny e Vimala Pons. Tudo em Vocês Ainda Não Viram Nada existe nesta mesma passagem de um estado ao outro, neste mesmo eco constante.

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Pode-se a principio pensar que Vocês Ainda Não Viram Nada é mais uma das explorações cênicas do Resnais pós-Mélo (1986), mas há uma ruptura aqui que de certa forma o aproxima mais de uma leitura particular das ficções autoconscientes de Jacques Rivette. Já não basta dar vida a um corpo, animar uma ficção esquecida como em Na Boca, Não (2003); é preciso ir além, marcar posição na casa de ficção e regenerá-la. O primeiro elemento de ruptura, o mais simples e que ajuda a redimensionar o projeto de Resnais, é a decisão de entregar a direção da peça dentro da peça para Bruno Podalydès. Já não se trata somente de reanimar Anouilh. A este primeiro diálogo, Vocês Ainda Não Viram Nada acrescenta outros dois: a reinterpretação particular que Podalydès (muito distante inclusive da estética dos seus próprios filmes como diretor) faz de Anouilh, e a relação entre as imagens de Resnais e as de Podalydès (um dos planos mais expressivos do filme é justamente aquele em que Resnais sobrepõe as Eurídices de Consigny e Pons enquanto elas recusam o ex-amante).

Se a obra de Resnais sempre foi a mais controlada entre todos os cineastas franceses da sua geração e seus filmes a partir dos anos 1980 elevaram a composição da cena a um ideal sem muitos paralelos entre seus pares, Vocês Ainda Não Viram Nada devolve-lhe uma dose de imprevisibilidade. Assim como Medos Privados em Lugares Públicos (2006) podia ser visto como apoteose do seu projeto pós-Mélo, e Ervas Daninhas (2009) lhe conferia uma bem vinda dose doentia de perigo, Vocês Ainda Não Viram Nada radicaliza esta última lançando-o a num caos. Aos planos de Resnais, já não basta somente reagir às palavras de Anouilh e à presença dos seus atores; haverá esta outra imagem sobre o qual o filme também precisara dar conta (deve-se dizer que Resnais já experimentara nesta direção ao convidar o próprio Podalydès para dirigir o programa de TV de Medos Privados, mas seu espaço era pequeno demais para causar o mesmo desarranjo). Os textos de Anouilh se estilhaçam ao longo do filme, suas múltiplas sobreposições comentam uma sobre as outras, e o papel de Resnais mais do que nunca é o de um mestre de cerimônias que facilita a ponte entre cada um deles. O que era antes uma ponte entre dois espaços, o texto de Anouilh e o plano de Resnais, vira um diálogo triangular enquanto vemos o Orfeu de Pierre Arditti e o Orfeu de Lambert Wilson dialogar com a tela de TV a exibir a montagem de Podalydès (e é impossível não pensar em como a palavra de Jean Anouilh passeia do teatro ao cinema, ao vídeo).

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Alain Resnais lançou Vocês Ainda Não Viram Nada aos 89 anos – não nos cansam de lembrar – e, com o eco inevitável de Cocteau, seus Orfeus e Eurídices em pontos diversos da vida – e Azema e Arditti a esta altura estão a interpretar versões do casal resnaisiano por mais tempo que a duração da maioria dos casamentos – e a presença constante da própria morte como personagem (vemos que a coisa é séria porque Mathieu Amalric está à mão para interpretar a morte despido de todos os seus tiques nervosos), sabemos que nossa mortalidade é incontornável. Seria, porém, um erro encarar Vocês Ainda Não Viram Nada como um filme sobre a morte (ao menos na acepção habitual do que seria um filme sobre a morte), já que todo o credo do cinema de Alain Resnais lida justamente com a vida. Eurídice pertence ainda à fase inicial da obra de Anouilh (de fato, sua versão de Antígona, seu texto mais famoso, foi realizado logo após ela) enquanto Cher Antoine é um dos seus últimos trabalhos. Ao editá-los juntos, Resnais busca mais uma ponte, uma passagem entre a exuberância da criação inicial e a reflexão da fase tardia, o jovem dramaturgo respondendo ao apelo do velho. Vocês Ainda Não Viram Nada enfrenta a morte frente a frente. É o oposto de uma obra decadentista: da morte do mundo, ele retoma a juventude. Quando Arditti e Azema se colocam na pele de Orfeu e Eurídice, não pensamos nestes personagens no fim da vida, mas em Arditti e Azema retornando até estes personagens. Os textos de Jean Anouilh, os rostos de seus atores (existem cinco décadas de cinema francês em cena aqui), os planos de Resnais: a arte perdura num mesmo constante (se por vezes terrível) presente. As épocas se ecoam e permanecem, a ponte cinematográfica recorta todas elas em um mesmo espaço. A imagem mais recorrente do filme é a de Azema e Arditti preenchendo o quadro olhando um para o outro, como que numa constante descoberta. É a idéia de primeiro amor eternizada, do casal de jovens atores ao casal favorito do cineasta, como se o cinema pudesse sempre reforçar este primeiro olhar, prolongar esta descoberta.

Vocês Ainda Não Viram Nada nos coloca na casa da ficção – uma mansão saída de algum melodrama americano dos anos 1950 que vai aos poucos sendo substituída por um espaço teatral enquanto o filme se perde na ficção, uma ilusão se sobrepondo a outra – e o filme todo existe no entre, na articulação de todos estes elementos que chamamos arte. O filme traz à mente Celine et Julie vont en Bateau, de Jacques Rivette, e Caminho para o Nada, de Monte Hellman, filmes assombrados por múltiplas ficções, dotados de um desejo profundo por elas. São três filmes de imagens fantasmagóricas em que o que se capta a cada plano é um processo, os traços da formação da ficção expostos a cada imagem. Vocês Ainda Não Viram Nada foi rodado em 35mm (exceto pelas sequencias de Podalydès, captadas em HD) e o sentido das suas imagens é inseparável desta opção, assim como os de Caminho para o Nada eram inseparáveis da sua captação digital, pois ali estes traços todos caminhavam para uma dissolução da ficção, enquanto aqui tratamos da sua reconstituição. Quando Eurídice adentra o terceiro ato com seu casal de costas um ao outro, proibidos de fazer aquilo que o cinema capta melhor do que qualquer outra arte – a troca de um olhar – Vocês Ainda Não Viram Nada devolve-lhe um caráter táctil, imprime este desejo de ficção na película. As palavras podem ser retornadas aos fantasmas, o jogo de Cher Antoine finalmente ganha seu contraponto na ficção de Eurídice. A passagem entre as diferentes artes, os diferentes textos, os diferentes corpos dos amantes se intensifica: a ficção sobrevive à morte.

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