Pompéia (Pompeii), de Paul W.S. Anderson (EUA, 2014)

março 25, 2014 em Em Cartaz, Filipe Furtado

O valor de um gesto
por Filipe Furtado

A história da erupção do monte Vesúvio tem um apelo inegável, ao qual o cinema retorna de tempo em tempo, justamente porque proporciona combinar dois dos menos reputáveis gêneros cinematográficos – a aventura romana e o filme de desastre – com um material rico em possíveis subtextos. Em Pompéia, Paul W.S. Anderson se lança com prazer na empreitada de retomar a verve pulp contida ali (um espectador cínico poderia descrevê-lo sem grandes dificuldades como um encontro entre o Titanic, de James Cameron, com o Gladiador, de Ridley Scott), mas dispensa qualquer interesse pelos subtextos que vá além de sugerir vagamente o império romano como uma primeira versão das muitas corporações sinistras que frequentemente surgem como antagonistas em seus filmes. É um filme pensado para existir sempre no seu momento atual, que se ocupa apenas em mapear reações especificas à situação fora de controle que propõe. Paradoxalmente, é justamente esta falta de pretensão de emprestar algum significado maior às situações que descreve que serve de ferramenta para que Pompéia, aos poucos, se estabeleça como um forte filme sobre a permanência da história.

Pompéia se inicia tateante. O primeiro ato do filme, quase todo expositivo, é de uma seriedade excessiva muito estranha a Anderson – cineasta cujos filmes costumam sofrer de um oposto tom juvenil exagerado. O arco dramático se propõe como um romance, mas não há número suficiente de closes de Emily Browning e Kit Harrington capazes de garantir a Paul W.S. Anderson uma súbita facilidade para com relações românticas. Parte deste material é salvo pelo tom sincero que o filme empresta mesmo aos seus momentos mais canhestros, mas ele nunca foge do tateante: Anderson é um cineasta de ação, cujos filmes se resolvem sobre o movimento e soluções práticas e diretas para as peripécias propostas pela trama, e não com com a tendência ao estático que se vê aqui. Nesta primeira parte, é como se Pompéia estivesse batendo ponto até o momento que os gladiadores entram na arena e o trabalho de Anderson pode finalmente encontrar o seu vigor de uma longa corrida até a morte.

Em retrospecto, porém, estes momentos iniciais se tornam mais interessantes, pela maneira com que o filme aos poucos estabelece e mapeia a cidade de forma a melhor fluir a ação destrutiva posterior. Anderson adora seus mapas – a câmera pausa sempre que pode nas maquetes do projeto de reurbanização que sustenta a intriga política –, desconfio que menos pela sua funcionalidade do que pela camada extra de artificio que emprestam à ação. A cada novo contraplano aéreo da sua Pompéia, reforça-se mais e mais seu caráter de palco.

Há, no filme, as figuras dos gladiadores e a consciência deles como atores, prontos a encenar um espetáculo. Esse espetáculo, porém, não é um que sugira a indústria de entretenimento, como no filme de Scott, mas sim um que manifeste sua essência de grande drama. Se os gladiadores são atores, o que o filme retira deles são gestos, movimentos e ações. A grande sequência de ação na arena serve justamente para propor o combate não como esporte, mas como teatro, como uma nova encenação do massacre da sequência inicial do filme, que permite a Anderson construir um longo bloco autônomo que se justifica por si só, com sua combinação de coreografia e corte precisos.

Há algo de essencial na disposição do filme de apresentar frontalmente seu material que é muito bem servido por este aspecto de palco. Ao mesmo tempo, a ação de Pompéia sugere todos como peões a se mover sobre um tabuleiro – mas peões que o filme trata como uma seriedade que a maior parte dos seus pares há muito abandonou. Isto se revela com mais força nas sequências com o gladiador interpretado por Adewale Akinnuoye-Agbaje, nas quais Anderson consegue animar sua dramaturgia para além dos seus arquétipos pulp e encontra uma porta de entrada mais interessante para lidar com a questão da aceitação da morte que anima boa parte do filme – não é surpresa que este personagem receba o abaixar de cortinas mais icônico do filme.

É a mesma lógica que guia o 3D do filme, que, simultaneamente, joga com a profundidade e com o desejo de reforçar como artifícios os corpos e objetos. A combinação de sets artificiais com a filmagem 3D reforça a impressão constante de clausura, como se as personagens adentrassem uma versão digital do espaço título de A Caverna (1965), de Edgar G. Ulmer. O espaço cênico em Pompéia é operado de forma a sugerir sempre ruas e corredores estreitos, espaços fechados, mesmo que a céu aberto, como uma armadilha em estúdio digital. O filme aos poucos se estabelece como um jogo entre a desconexão de atores e os cenários e com o julgamento violento que a natureza lança sobre eles. As vielas estreitas da cidade cheias de extras em pânico, assim como o pequeno coliseu que serve de palco central das sequências de ações individuais, são animadas pela câmera do filme, de forma que a sua aparência um tanto irreal aumente o caráter finito das ações que ocorrem nelas.

Pompéia é, afinal, um filme apocalíptico muito prático. Uma das decisões mais acertadas de Anderson e seus roteiristas é de, ao contrário do que esperamos de um filme de desastre, centrar a ação não no ciclo de destruição e reconstrução que estão no centro do gênero, mas na idéia de morrer. Quando os tremores derrubam a barreira que separa a cidade do mar, e permitem à água adentrá-la, a sequência que se segue busca menos impressionar pela sensação de ‘você está lá’ – como em Além da Vida (2010), de Clint Eastwood – e mais pelo efeito inverso, ao lançar mão do artifício para reforçar um plano geral da destruição e a reação de cada um diante dela. Seu centro são os contracampos reativos perante o desastre e a aceitação da sua inevitabilidade. Até mesmo a trama romântica que serve de guia do filme parte do encontro do jovem casal diante de um cavalo agonizante, que ele abate por misericórdia. Tudo se move rumo ao momento em que personagens se encontram sós, diante do próprio fim, e a única saída possível é a história. O homem desaparece e é eternizado ali, no calor do momento.

A finitude do filme é materializada pelo corpo petrificado, eternizado diante da história. É para este momento que todos correm, já que, contrariando as regras do gênero, não haverá aqui lugar para sobreviventes. Toda ênfase em gestos e rostos que o filme aos poucos opera transpassa seu ato final, numa série de encontros com a morte. Tudo deságua nos dois planos finais, em que o casal central desiste de fugir e dividir seus últimos momentos juntos, seguidos de um corte para imagem do casal petrificado, abraçado. É um movimento previsível, mas, na maneira que o filme faz a passagem do gesto humano ao artificio cinematográfico, a permanência histórica alcança uma força inesperada: Pompéia se revela, por fim, um ato restaurador da potência do aparato cinematográfico.

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