Azul é a Cor Mais Quente (La Vie d’Adèle), de Abdellatif Kechiche (França/Bélgica/Espanha, 2013)

dezembro 19, 2013 em Andrea Ormond, Em Cartaz

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Essa gostosa brincadeira a duas
por Andrea Ormond

Em Diário Roubado (Le Cahier Volé, de Christine Lipinska), uma garota de quinze anos acariciava outra e, adivinhem, anotava no diário. Era a descoberta do sexo, a descoberta do amor, a descoberta da vida. “A descoberta” nunca foi monopólio da adolescência: basta pensar na crueldade infantil. Mas deixemos isto para um próximo filme. O que precisa despertar a atenção dos leitores é que Diário Roubado, produção minúscula, virou a tábua de salvação, sucesso dos adolescentes em 1993. Eles, as bestas-feras, os impeachmados da volúpia dos 1970 e da frigidez dos 1980.

Azul É A Cor Mais Quente chega aos cinemas com o lastro de um imenso Fort Knox, incensado pela crítica e pelo público (agora) heterogêneo. Senhoras de oitenta anos, homens peludos, funcionários de cartório. É aquele “filme-sensação” de Abdellatif Kechiche, aquele das três horas de enrosco tribadista, perdido no papo sobre o diâmetro do clitóris alheio. Curioso pensar que Adèle, a protagonista de Azul, aos quinze anos e mantendo um diário, mordeu a fruta em 2013. Não chegou a experimentar um mundo sem a vastidão do politicamente correto, não procurou outra encruzilhada, como as do jornal “O Lampião da Esquina” e de todo o debate homossexual pré-água morna.

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Portanto, o que Kechiche coloca em Azul É A Cor Mais Quente não é apenas a famosa paixão entre Adèle (Adèle Exarchopoulos) e Emma (Léa Seydoux). Coloca um estado de coisas previsível, que as torna heroínas, porta-vozes de certezas. Seres multiculturais – os amigos não são meros caucasianos –, peitando preconceitos e declarando um estamento. Superior, para o alto e avante! Se Kechiche parasse nesse remanchão, se parasse nessa linha cívica e bem intencionada, Azul É A Cor Mais Quente poderia ser jogado numa lata, no meio do oceano. Porém, sinto informar aos sectários – sejam eles de esquerda ou de direita, de movimentos pró ou anti-GLS: Azul foi adiante.

Afinal, Adèle quer até mesmo o direito de ser medíocre. Sabem lá o que isso significa? O direito de ser comum e não uma super-mulher, idealizada pelo fato de transar mulheres ou homens. E, com amor nos olhos, como un niño frente a Dios, tira da manga o argumento inesperado: a escola lhe apresentou livros, a escola deu caminhos, a escola deu alternativas que não teria conhecido através dos pais. A escola, logo ela, que já foi sinônimo de enclosure – vide Michel Foucault, Daniel Cohn-Bendit e a geração dos idiotizados pais da garota.

Soa bem mais natural e defensável a postura de Adèle do que a parvoíce cretina de Emma, a artista plástica que exerce uma tentativa de controle sobre a outra. Controle delicioso, que rende horrores na cama, quando se tira a capa da intelectualidade. (Chegamos ao parágrafo sobre as cenas de sexo) Neste ponto, qualquer ser humano com sangue nas veias obviamente se excita com as duas sílfides, no esplendor da saúde, e na sanha de se fusionarem uma na outra. Tudo o que havia de contenção em termos de linguagem cinematográfica – as mechas de cabelo, a luz repicando no rosto, a demonstração milimétrica do cotidiano, o azul nos objetos de apreço – explode em nosso colo. O sexo é um missal para as neuroses. Nossas e delas.

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Com poucas dicas, já sabemos que Adèle é oral. Dá o bote no primeiro beijo com Emma, lambe pratos, come chocolates, fala pelos cotovelos, abocanha os dedos e engole as partes de Emma. Para incrementar o sururu, Adèle inventa de ser bissexual, possibilidade que parece ter desaparecido de qualquer conversa atual sobre sexo. Não é crime. Apenas acontece que ela deposita a fatia maior de atenção a uma mulher. Que ama. E de quem precisa, como nas tormentas em abajures liláses de Dolores Duran. Existe uma sinceridade em Adèle, a entrega louca, que pode ser de sexo ou de amor. Misturam-se.

Falo disto por uma razão simples: em 2005 publiquei um livro sobre o amor de duas adolescentes brasileiras que se idealizam e acaba servindo de combustível para o resto de seus dias. Chama-se Longa Carta Para Mila. Uma história baseada (mais ou menos) em fatos reais, que eu mesma vivi, e sobre os quais não suportava às vezes pensar. E sob todas as diferenças e semelhanças entre las chicas francesas e nós, brasileiras, achei um ponto fundamental: o homoerotismo pode ser uma aventura pessoal libertadora. Imagine que você foi treinada para casar e ter filhos. E um dia descobriu que nem precisou excluir os rapazes da equação, mas se deu ao luxo de um amar diferente. De uma nova sensação. Um olé no destino de mãe, esposa e bacharel. Aquele processo pode até não vingar para sempre, não transformar o indivíduo na Cássia Eller (ou no Rock Hudson) mas é algo que o torna forte, dá um encanto. O imperativo não é o sectarismo. O imperativo é o gozo.

Gozar é uma coisa bacana, senhoras e senhores. Pensem no seguinte – antes que Betty Friedan me queime em praça pública: para qualquer mulher normal, existem várias camadas de gozo. Para Adèle existe até o prazer masoquista de servir à outra. Banca a pupila, a empregadinha, a querida que lava pratos. Ninguém nunca viu a cena em que Lillian Lemmertz se transforma em Marcelo, ao possuir a personagem de Selma Egrei, em O Desejo (1975)? O que atrapalha é a tentativa de enquadrá-la em ismos vários: machista, sexista, feminista, o diabo nu. Talvez seja o mesmo princípio que levava juízes furibundos a assistirem Les Amants dezenas de vezes, para confirmarem o fato, pré-determinado, de que o filme deveria ser proibido.

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Voltando ao início, as garotas do Diário Roubado desfilavam representações meigas do amor, antes do hype de se falar sobre sexo entre iguais. Duas décadas nos separam. Diário acabava funcionando como uma lâmpada, um guia, para uma única tribo: a dos “entendidos”. O linguista da PUC sabe disso e pode falar sem medo: a gíria “entendido” é cheia de “verdades semânticas”. De fato. Entendido é aquele que passou por um processo pessoal, internalizou a experiência e sabe, “entende”, do que se trata o riscado. Entendido é metonímia. Azul É a Cor Mais Quente trata de tema espinhoso como adulto. Compreende o tanto de delícia e de cansaço que pode existir em uma relação que ilumina, que voa alto e se esboroa no ar, para nunca mais.

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