A Imagem que Falta (L’image Manquante), de Rithy Panh (Camboja/França, 2013)

outubro 10, 2013 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Em Cartaz, Fábio Andrade

aimagemquefalta

A imagem da morte
por Fábio Andrade

Os melhores filmes de Rithy Panh são aqueles que confrontam de maneira mais direta uma questão fundamental ao cinema: por que encenar? Essa pergunta parece recolocada com pertinência a cada novo filme, não por uma possível apreensão de uma repetição monotemática – conceito que parece terrivelmente burguês para um cinema que, em seus momentos mais fortes e mais ostensivamente fora de moda, demonstra em nada se preocupar com o status que o circuito de festivais lhe empresta -, mas justamente por o interesse neste tema único recair sobre uma situação limite em termos de encenação – no caso, o confinamento e dizimação do povo cambojano pelo Khmer Vermelho, o regime miserabilista de Pol Pot. Por que recriar o holocausto?

Filmes como S21: The Khmer Rouge Killing Machine (2003) e este A Imagem que Falta são marcos especiais por Rithy Panh inverter esta chave de raciocínio: encenar é necessário. Em dado momento de A Imagem que Falta, Panh conta, na voz over que narra todo o filme, a história de uma menininha que morreu de fome em um dos campos de concentração cambojanos, acompanhada de uma foto da menina. “Quero esquecer, por isso mostro”, diz Panh, sobre imagem do rosto da criança, nos fitando como se fôssemos o fotógrafo que registrou aquele momento de vida (ainda). Encenar é parte de um processo eterno de purgação e de cura que nasce na esfera privada (Panh é, ele próprio, um sobrevivente do Khmer Vermelho e viu toda sua família ser morta, direta ou indiretamente, pelo regime), mas que ganha urgência justamente ao transformar esse próprio gesto de encenar em seu tema principal. O segundo parágrafo serve, no caso, para corrigir o primeiro: o cinema de Rithy Panh não é exatamente sobre o Khmer Vermelho, mas sobre como encená-lo.

Não posso repetir um só instante da minha vida, porém qualquer um desses instantes pode o cinema repetir indefinidamente, posso vê-lo” (Bazin, “Morte todas as tardes”). Um par de mãos esculpe um boneco de argila, com rosto de homem e camisa branca. “É meu pai”, diz Panh, em voz over, embargada pelo desejo de se abraçar um boneco de dez centímetros. Mas, ao mesmo tempo, não é seu pai, pois seu pai está morto e não pode ser trazido de volta à vida, nem mesmo se moldado da argila da vida e da morte do próprio mundo. Bonecos feitos “da terra, dos mortos, do arroz”. “Imagino a suprema perversão cinematográfica como sendo a projeção ao inverso de uma execução, assim como vemos nessas atualidades burlescas o mergulhador saltar da água para o trampolim” (Bazin, novamente). Reencenar como reencenação – reconstruir a realidade cambojana com bonecos de argila em um campo de concentração de maquete – é restituir a imagem dos mortos sem fazer com que o mergulhador salte da água para o trampolim.

A Imagem que Falta é um filme especial por dar nome a essa necessidade de suprir uma lacuna deixada pela história, mas sem retirar, dela, seu caráter lacunar: restituir uma imagem que falta, que não existe, mas que não pode ser deixada de fora da equação. Imagem que é necessária ser criada, justamente para apontar para a permanência dessa ausência. A razão de existência, aqui, é a mesma da reencenação com os antigos carrascos (sobreviventes, ao contrário das vítimas) em S21: é preciso dar novo corpo aos que foram sacrificados, redimir esses cadáveres trazendo-os de volta à vida, mas fazer isso como representação é recriar sem perdoar, honrar sem esquecer. É reviver os mortos como mortos.

Em A Imagem que Falta, isso se dá por uma série de operações que o diretor realiza para criar indiferença na diferença. Os bonecos de argila assistem a imagens da decolagem da Apollo 11, e o filme corta, da cena dos bonecos reunidos ao redor do televisor, para a imagem que eles viam na TV, que agora toma toda a tela, suprimindo a distância de registros ao mesmo tempo que os diferencia. Da mesma maneira, os bonecos de argila são colocados para interagir com imagens reais do cinema cambojano e com trechos de cinejornais que mostram as ruas de Phnom Penh, reabitando um tempo histórico do qual eles foram alijados, mas reabitando em diferença, pois nunca deixarão de ser bonecos de argila coloridos interagindo com uma cidade em preto e branco.

Essa indiferença na indiferença, em A Imagem que Falta, é a forma encontrada por Panh para buscar aquilo que todo cineasta almeja encontrar: a distância justa. Mais do que um teatro do dispositivo, o que vemos em A Imagem que Falta é a busca por essa distância, como se a única maneira de encenar a barbárie fosse, ao mesmo tempo, se aproximando e impondo alguma mediação (penso aqui no rosto do cadáver de Osama Bin Laden, que só aparece em A Hora Mais Escura, de Kathryn Bigelow, pelo visor LCD de uma câmera fotográfica, embora a fotografia seja tirada naquela hora, e ambas as câmeras – a da personagem e a do filme – estejam de frente para o mesmo corpo), algo que permita reviver sem recriar (para reviver o Holocausto é necessário recriar o Holocausto? Por que alguém, em sã consciência, gostaria de recriar o Holocausto?).

O que está em jogo aqui – como sempre, no cinema, mas a proximidade de uma situação limite ajuda a deixar tudo mais evidente – é encontrar a justeza de representação de um sentimento – no caso, um luto. Em dado momento, Panh narra sua lembrança da juventude, de um dia em que precisou beber de uma poça de água tão lamacenta que os búfalos ficaram lhe observando, estupefatos. É essa mesma lama, bebida pouco a pouco, ao longo de anos amargos, que hoje ganha corpo e é remoldada nesses bonecos de argila. O gesto do artista raramente foi colocado de maneira tão límpida no cinema contemporâneo, e esta limpidez – que por vezes se confunde e se mistura com uma didática da demonstração, mas não neste filme – é justamente o maior dos valores do cinema de Rithy Panh. Se a dor é inevitável, resta ao artista filmar bonecos feitos dessa dor, mas que encontram, na linda imagem que flutua contra um céu de nuvens pintadas, a possibilidade de se livrar, por um momento que seja, do peso da História. E isso é menos uma sublimação paliativa para a alma – não se pode, afinal, abraçar um boneco de dez centímetros, ao menos não sem a certeza de quebrá-lo – e mais uma maneira de dar a ver as entrelinhas do indizível. 

Share Button