O Peso do Silêncio (The Look of Silence, Joshua Oppenheimer e Anônimo, Dinamarca, Finlândia, Indonésia, Noruega, Reino Unido, 2014)

outubro 13, 2015 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Fabian Cantieri

lookofsilence
História e dispositivo: a política da insanidade

por Fabian Cantieri

É proibido matar. Portanto, todos os assassinos são punidos a não ser que matem em grandes números e ao som de trompetes.
Voltaire
(citação inicial em O Ato de Matar, de 2012)

Um número incalculável de documentários políticos nascem de uma vontade comum de jogar luz sobre uma injustiça histórica, muitas vezes ainda não resolvida: houve um problema grave em alguma parte do mundo e, se isso é ainda pouco disseminado, é preciso então torná-lo uma questão de senso comum. Por mais justa e admirável que a pressuposição seja, a substância da arte é temperada por algo que vai além da tentativa de informação e conscientização – e o que se faz com tais consequências já extrapola seus domínios. Apesar de O Peso do Silêncio ser um filme inteiramente autônomo e independente de seu predecessor, O Ato de Matar (The Act of Killing), é difícil não reatar os laços de um processo artístico-político que Joshua Oppenheimer vem fazendo na Indonésia: dar a ver que nem todo trauma de extermínio genocida acarreta um pacto comum de reparação. Se achávamos que estávamos livres dos fantasmas do Holocausto, é porque procurávamos em um só lugar.

O impacto do acontecimento nazista foi tão profundo que nada na história desde então saiu incólume: nem a política ou a filosofia, nem a arte, a cultura, o século XX ou o pensamento poderiam seguir caminhando sem um novo imaginário sobre o homem. Num certo sentido, essas reflexões ajudariam indiretamente em uma espécie de consciência que ajudaria a prevenir o ressurgimento de outra monstruosidade como aquela. Oppenheimer cria um procedimento em The Act of Killing para revelar que esta consciência obtida a duras penas com o Holocausto é cabalmente ignorada em pelo menos um canto do globo: em 1965, na Indonésia, mais de meio milhão de comunistas foram mortos pelo exército, até que o Partido Comunista fosse extinto e proibido e, dois anos depois, houvesse o golpe militar. Joshua descobre não só que os assassinos estão vivos até hoje, como ainda instauram medo às famílias das vítimas e não sentem qualquer remorso sobre o passado – pelo contrário, até se gabam. Assim, ele propõe a estes homens que recriem, como quiserem, os assassinatos.

A primeira parte do díptico sobre o massacre são estas encenações detalhadas, mas diferente de um S21 – A Máquina de Morte do Khmer Vermelho, de Rithy Panh, no qual os torturadores reconstituíam o que faziam a partir do vazio dos corredores e largas salas da prisão catalisando uma memória perdida, em The Act of Killing as recriações são como cenas de um musical ou um filme de gângster de Marlon Brando ou Al Pacino, que o protagonista Anwar Congo diz-se muito influenciado. Se o parti-pris do realizador nos suscita certa perversidade (e é este o sentimento que os detratores se agarram ao condenar o filme), ao pôr-em-cena mortes históricas – não apenas se “baseando em fatos reais”, mas estilizando-as em gêneros do cinema com os próprios assassinos sendo os atores, torturadores e torturados, de uma memória reavivada –, isso de maneira nenhuma surge à toa, nem por puro formalismo ou fetichismo abjeto. Ao perceber que nenhum dos assassinos tinha qualquer problema em relatar suas ações, a grande ousadia é jogar o jogo do absurdo para ver até que ponto a mise-en-scène que eles criam para si mesmos os afetaria. E se acaso não houver remorso, então como enxergam suas próprias máscaras, como eles encenam a si próprios para poderem conviver consigo mesmos?

Oppenheimer não acusa a priori, não pretende estabelecer juízos do que é condenável, isto já é bem claro de antemão. Também não quer ser um juiz de tribunal auferindo sentenças: o que ele percebe ao conversar com eles pela primeira vez, pois é o que percebemos também em ambos os filmes, é que não há evidências ali em suas feições de qualquer presságio do Mal. Os assassinos matam não por uma monstruosidade inata ou por um prazer mórbido, apesar de muito se falar sobre sadismo, mas porque suas vítimas são comunistas e, portanto, segundo o Estado, devem morrer. São burocratas do Estado: matam por irreflexão.

Um dos principais personagens de O Peso do Silêncio – o que estampa o cartaz do filme e único que recebe a atenção de um close sobre suas feições inquietas –, ao ser questionado sobre motivações mais pessoais, responde enfezado: “Você faz muitas perguntas profundas, não gosto de perguntas profundas”, então vira para o diretor e complementa: “Ele fala de política, eu não entendo nada de política”. De certa maneira, ele acertara: política é a arte da coabitação, implica em pensar formas de organização de uma comunidade, pensar sobre o outro, reflexão ausente em todos os assassinos que vemos ao longo da projeção. Política para ele é o que faziam os generais. Ele fazia apenas mais um serviço: “Fizemos aquilo porque os EUA nos ensinou a odiar comunistas”. Um ódio enraizado no automatismo de um pensamento: é comunista, logo, deve morrer para a liberdade da nação. Em The Act of Killing, uma etimologia é repetida à exaustão: “Gângster vem de homem livre”. Estes homens que buscam a liberdade de movimento e mal sabem que matam a verdadeira liberdade: a de ter voz e se inserir no círculo social de sua comunidade, a de se tornar um ser político.

Em O Peso do Silêncio, o dispositivo é mais simples, menos controverso, mas nem por isso menos duro: um homem, Adi, que perdeu seu irmão, Ramli, no massacre faz uma série de visitas oftalmológicas aos mercenários. Pergunta sobre o passado enquanto faz o exame e, em dado momento, revela como seu irmão morreu. O que se dá nesse confronto de olhares é a própria matéria fílmica. De novo, nem sinal de pena ou arrependimento – alguns, inclusive, o acusam de possível atividade clandestina comunista. Quando Adi acusa o presidente do  órgão legislativo, “vocês mataram um milhão de pessoas!”, ouve de imediato: “Isso é política”. Política na Indonésia de Oppenheimer parece ser esta coisa que já vem de fora e de cima, está dado, e não nos permite pensar.

Enquanto no primeiro filme parecia haver um tom de insanidade alucinatória nos figurinos do companheiro de Anwar Congo, nas coreografias na cachoeira, na monumentalidade do peixe gigante, agora há uma apaziguamento formal, um intimismo entre o abismo do entrevistador e entrevistado, quase como num jogo de Eduardo Coutinho: a insanidade está na palavra expressa, na serenidade de Adi, no olhar de silêncio dos algozes (não esqueçamos o título original em inglês); a “política”, ideologia irrefletida, está no rosto, nas reações, na cadência de pensamento dos assassinos que parece ir do nada a lugar algum. Não à toa, um dos planos mais reveladores é o do silêncio incólume do homem que estampa o cartaz do filme: sua cara cheia de tiques, irrequieta, parece não conseguir se conformar consigo mesma e, ao mesmo tempo, olhamos um vazio tremendo em close.

A grandeza do filme está na pequenez dos gestos, nos hiatos sonoros, no beijo de perdão de Adi em um matador e sua filha, em seu olhar atento e absolutamente sob controle ao ver pela televisão os dois homens relatarem em detalhes como mataram seu irmão ou descobrindo confuso como seu tio pode não perceber sua responsabilidade ao se tornar guarda das prisões dos comunistas. Aliás, se ora possa parecer que Adi é um santo ingênuo com o dom do perdão extremo, é preciso entender a estratégia em jogo: enquanto Oppenheimer tem consciência do seu gesto artístico, para Adi todo este movimento de enfrentamento não deixa de ser uma grande peça política. Para um que lhe acusa de atividade comunista, ele pergunta: “O que você faria se eu estivesse fazendo essa entrevista durante a ditadura?”, e logo “Você nem imagina”. Não imaginávamos a realidade contada, não somos capazes de imaginar o medo latente que perdura há décadas, não há imagem para este mundo de agonizantes, onde os homens aprendem que são supérfluos e o castigo nada tem a ver com o crime. Um lugar onde isso acontece, já diria uma sábia judia nos tempos de Holocausto, é ”um lugar onde a insensatez é diariamente renovada”. Se o dispositivo de The Act of Killing renova essa insensatez, vemos em O Peso do Silêncio a ferida na carne, não mais na nossa, mas naquela de quem nunca teve a chance de cicatrização. Enquanto os mais velhos insistiam em não tentar “abrir a ferida”, pois “o passado é passado”, um matador escreve um livro para todos se lembrarem de seus feitos, mesmo motivo para que grande parte dos mercenários aceite fazer o filme. Se estes veem a obra artística como documento histórico, Adi e Oppenheimer veem que a arte pode ser também catalisadora de um movimento que a extrapola. Estamos diante de uma situação absolutamente rara, em que uma efetiva vontade de mudança de pensamento e ação de um país se dá por meio do cinema. Não há pretensão maior.

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