Two Cabins (2011), de James Benning

novembro 29, 2013 em Colaborações especiais, Em Pauta

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Thoreau

Impressões sobre madeira – notas a partir de Two Cabins, de James Benning
por Dalila Martins (colaboração especial)

“O uso da razão torna as coisas transparentes ao espírito. Mas não se vê o transparente. Vê-se o opaco através do transparente, o opaco que estava escondido quando o transparente não era transparente. Vê-se o pó sobre a vidraça, ou a paisagem através da vidraça, mas nunca a própria vidraça. Limpar o pó só serve para ver a paisagem. A razão deve exercer sua função apenas para chegar aos verdadeiros mistérios, aos verdadeiros indemonstráveis que são o real. O incompreendido oculta o incompreensível, e por esse motivo deve ser eliminado”.

Simone Weil

1. Cabana de Henry David Thoreau (poeta e filósofo transcendentalista, crítico do progresso, abolicionista, naturalista e ativista anti-tributação, autor de Desobediência Civil e Walden, entre outros textos):

O que é visto?

Uma janela simples, sem veneziana ou cortina, dividida horizontalmente em duas folhas de vidro, emolduradas por filetes finos de madeira. O mecanismo de abertura e fechamento consiste no deslizar da folha inferior para cima e de volta à base. Vê-se: está quase totalmente aberta. Não se constata, entretanto, a exata relação com o tamanho da cabana, pois suas dimensões ultrapassam as bordas verticais do enquadramento. Ainda assim, pode-se dizer que oferece uma vista ampla. Do lado de fora da cabana, a mato é espesso, abarrotado por um emaranhado de galhos secos e capim revolto. Nos estratos superiores, através da folhagem amarelada, uma pequena porção de céu azul quase resplandece.

Como é visto?

O design da janela tende ao horizonte, estimulando o olhar em direção à linha imaginária que divide o céu e a terra. Contudo, não há na paisagem relance algum do horizonte. O fato de seu encerramento se estender para além dos limites do quadro composto gera uma expectativa de ver adiante do que é mostrado, repercutindo aquilo que André Bazin descreveu como força centrípeta do cinema. Algum movimento de câmera é esperado, seja um zoom in para fora, na mata, seja uma pan lateral revelando o interior da cabana, ou então um corte que desencadeie reconhecimento dos arredores. Paradoxalmente, a vegetação intrincada não é convidativa, parecendo mesmo um tanto sufocante. E não há nada de particularmente interessante nas paredes lisas e beges da choupana.

O que é ouvido?

Um ríspido barulho de rodovia e vento entrecortado por ruídos de animais – insetos, pássaros, um cão que ladra. Por volta da metade da duração do plano, destaca-se do bafo árido da autoestrada a passagem de um caminhão. Sem cessar, o som parece ganhar a estridência de um trem de metrô em alta velocidade que freia abruptamente – atrito entre metais. Logo, o timbre grave retorna, mas desta vez com fonte emissora indefinida, talvez o caminhão, talvez uma aeronave. O espaço aéreo surge, então, ocupado por um helicóptero de hélices violentamente ritmadas (remete-me ao desenho de som de Walter Murch para Apocalypse Now, principalmente sua introdução). Por fim, a atmosfera inicial ressurge, a rodovia ao fundo e a fauna pontual.

Como soa?

Até os meios de transporte se tornarem corpulentos, a trilha sonora parece coincidir com a imagem capturada. Todavia, uma vez experimentado tal estranhamento, põe-se em dúvida a congruência de todo som ambiente: animais são ouvidos mas nunca avistados; a agitação das folhas é esporádica, apesar do silvo insistente do vento. Ademais, o chiado da gravação não é escamoteado, o que enfatiza o procedimento de fatura da obra, a sua condição de artifício. Por outro lado, os elementos maquínicos não são incompatíveis com o cenário bucólico, mas sua inserção como massa sonora única causa leve vertigem – vertigem análoga ao desconforto sugerido pelo bosque meândrico dado à observação pela posição da janela.

O que vem à mente?

O estranhamento experimentado durante a extensão da sequência condiz com a trajetória de Thoreau concernente ao wilderness, um conceito de difícil definição por aludir a um estado de espírito que varia de acordo com cada indivíduo e geralmente é associado a um lugar fronteiriço, ainda que, em suas palavras, a fronteira essencial não possua localização geográfica, mas se encontre “onde quer que um homem enfrente um fato”. Como pensador do movimento transcendentalista de matriz platônica e kantiana, o jovem acadêmico projetava no contato com o âmago da natureza indomada a emergência de verdades espirituais. Distanciar-se das amarras da civilização faria do Homem um ser capaz de realizar pragmaticamente sua liberdade moral, estabelecendo seus próprios direito e justiça. Porém, a contradição – a qual, no meu entendimento, corresponde à idiossincrasia da questão – logo se impôs sobre o idealista, assim como o torvelinho estático de galhos secos e capim revolto barrou a visão da janela vasta, perfeita para divagações. Em 1846, Thoreau partiu pela primeira vez para as florestas de Maine em busca de um local propício para reflexões transcendentes, mas suas altas expectativas acabaram frustradas pela intensa solidão sentida em meio a uma paisagem inóspita, tediosa e deprimente.

Refluxo

Tal desalento seria uma segunda natureza do sentimento dos pais peregrinos, fundadores da nação americana, que encontravam na natureza selvagem do novo continente um inimigo ameaçador a ser conquistado e subjugado sem misericórdia. No lugar da ânsia proativa do self-made man, a contemplação melancólica com picos de desespero e paranoia: dois estágios de resposta ao to be bewildered (‘estar confuso’, ‘desorientado’). Esse deslocamento consiste também no campo de atividade de James Benning, cineasta que revisa a cultura americana, ou seja, efetua uma segunda vista, distanciada, tanto de filmes ipsis litteris, tais como Faces (1968), de John Cassavetes, em Faces (2010), e Easy Rider (1969), de Dennis Hopper, em Easy Rider (2012), ou do quadro Broadway Boogie Woogie (1943), de Piet Mondrian, em One Way Boogie Woogie (1977) – retomado, ele próprio, 27 anos depois, em 2005 – quanto dos estados da federação, como a leitura de artigos do New York Times sobre um século de Utah em Deseret (1995), por exemplo. Sendo que as obras por Benning apropriadas já por si só funcionam em zonas limítrofes: a direção de atores de Cassavetes especulando sobre a explosão e a exaustão de emoções; Hopper e amigos cruzando o Sul e o Sudoeste dos EUA em um road movie à procura de liberdade; Piet Mondrian transgredindo suas próprias regras da abstração neoplástica. E algo semelhante ocorrendo em Deseret: uma interpretação do Leste sobre o Oeste.

Como reflui?

Ora, não se distinguem o nascimento da nação americana e sua mitologia do surgimento e da constituição do próprio cinema. Hollywood – literalmente ‘floresta de azevinhos’, mas não menos Holywood ou ‘mata sagrada’ – foi também um empreendimento de estrangeiros nas terras do Oeste recém desbravadas e anexadas. Os investidores de capital cinematográfico fugiam do monopólio que Thomas Edison tentava impingir na Costa Leste, todavia o que os atraiu à Califórnia foi justamente o clima e as paragens diversas de seu relevo, que suportariam uma larga gama de gêneros e filmagens ao longo de todas as estações – fertilidade econômica. Os filmes, antes de serem considerados jogos de linguagem ou peças de entretenimento, demandavam esforço braçal, operação maquínica pesada e, inclusive, táticas de guerra. As exímias habilidade técnica e capacidade de administração de um terreno, no sentido da práxis e da resolução de problemas concretos, eram preceito para se fazer carreira na cinematografia.

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Kaczynski

2. Cabana de Theodore John Kaczynski (matemático, escritor, ativista político e terrorista doméstico apelidado pelo FBI de Unabomber, responsável por uma série de atentados à bomba, entre 1978 e 1995, nos EUA)

O que é visto?

Uma abertura em uma parede de pinho, como uma escotilha, mas de formato quadrado, com um trinco de ferro. De novo não se sabe sua escala em relação à cabana, porém todos os seus lados estão contidos no plano. Está aberta. E de tal modo a parecer duplicada: um quadrado maior, emoldurando um exterior em profundidade; um quadrado menor, que dá a ver apenas uma superfície plana. Do lado de fora, copas verdes de árvores sob uma luz azulada, cujos galhos de um marrom bem escuro pendem na diagonal. E as nuvens, numa mudança sutil, ora bloqueiam, ora permitem a incidência dos raios solares, o que aumenta ou diminui a escuridão de dentro.

Como é visto?

Diferentemente da primeira paisagem vista, esse ambiente possui ares idílicos. Se antes a amplidão proporcionada pela janela ia de encontro ao paredão morto-vivo, agora o céu de fato impõe sua luz difusa, etérea, porém encerrado pelos limites menores da escotilha que o transforma em ilustração, gravura, fotografia nas páginas de um livro. Idílico, então, não apenas pela natureza registrada, mas por seu caráter lábil, de devaneio.

O que é ouvido?

A autopista soa mais distante e menos áspera, como um ronco retumbante quase subaquático, ora acentuado pela rota de aviões. Em vez de aves e mamíferos fortuitos, grilos e cigarras em uníssono – ao final, mesmo quando se escuta o canto de um pássaro é de forma cíclica, repetitiva. A dinâmica do plano é mais fluida, sensação sustentada pelo estalido das chamas de um fogareiro. A atenção recai, então, para o interior da cabana: além do fogo, um som de motor de gerador de energia e ruídos discretos de sala, de alguns objetos não-identificados.

Como soa?

Devido ao fogareiro, ao gerador e aos ruídos de sala, nota-se mais a presença humana, reforçando o ponto de vista subjetivo da câmera e a função individual do casebre. A edificação ganha propósito – abrigar uma pessoa e protegê-la das intempéries – revelando-se parte de um projeto de autossuficiência. Contudo, a banda sonora subjetivante aliada à figura da escotilha, que consente o olhar, mas impede a travessia de um corpo, institui uma experiência inerente à prisão, tal qual à sentenciada a Ted Kaczynski.

O que vem à mente?

O encontro contraditório entre ideal transcendentalista e natureza bruta, aludido na sequência da cabana de Thoreau, espicha-se então até seu ponto de fratura, quando instaura-se uma separação física entre o corpo do sujeito pensante e o mundo orgânico. Processo devido, primeiramente, à escassez de áreas verdes por causa do desenvolvimento capitalista, logo substituídas por um conjunto de reproduções, cópias ou simulacros – tal a impressão de fotografia da vista de iluminação azulada –, e então à privação do indivíduo de seu direito de ir e vir, o cárcere a que a escotilha remete. O sentimento engendrado por essa cisão institucionalizada impulsionou Kaczynski a se mudar para a cabana referida nos arrabaldes de Lincoln, Montana, em 1971: a fenda deveria irromper não entre Homem e natureza, mas entre Homem e civilização. E, estimulado pela interferência incessante das políticas desenvolvimentistas do governo americano em sua vizinhança, planejou o envio de bombas a inúmeras repartições, a maioria universidades. É como se suas bombas de fabricação caseira em invólucros de madeira espelhassem a postura de um governo que, segundo Thoreau em Desobediência Civil (1849), “embora recente, [não é] senão uma tradição, empenhada em transmitir-se a si mesma à posteridade, mas perdendo a cada instante um pouco de sua integridade, (…) uma espécie de arma de madeira para o próprio povo.”

Refluxo

O filme Um Corpo Que Cai (1958), de Alfred Hitchcock, é inteiramente pautado por essa deflexão abismal do imaginário. Assombrado inicialmente pelo bizarro comportamento de Madeleine (Kim Novak) e depois pelo espectro do objeto de sua paixão, o detetive Scottie (James Stewart) intenta desvendar enigmas pelo restabelecimento de conexões diretas, coincidentes, entre fantasmagorias e localidades atuais. A cena emblemática que sintetiza tal método é a que se passa no Muir Woods National Monument, um parque nacional criado para preservar a potência do wilderness: observando as datações da história da humanidade num tronco serrado de sequoia, Madeleine, tomada pelo espírito de Carlotta Valdes, aponta o local de seu nascimento e de sua morte. É como se a paisagem carregasse o peso dos fatos e atentar-se a ela se fizesse necessário para escapar à vertigem do progresso. Eis o procedimento do trabalho de James Benning. Entretanto, em nem toda paisagem crescem árvores milenares capazes de guardar todos os segredos do planeta, e sua análise repousa justamente nas rachaduras dessa falha de onde surgem segundas, terceiras, quartas naturezas – os incompreendidos que ocultam o incompreensível.

Como reflui?

Os planos apresentados em Two Cabins foram captados do interior de réplicas de duas edificações cruciais para a história dos EUA, cabanas erigidas pelas próprias mãos de Henry David Thoreau e Theodore John Kaczynski, em diferentes contextos de reclusão e imersão na fugacidade da natureza, com o comum intuito de atingir um estado de consciência em que as tensões não são edulcoradas e sim avultadas pelo contato com o wilderness, até o ponto de liberação das atas sociais naturalizadas. A convite do coletivo curatorial NAIL (Not Always In Location) radicado em São Francisco, com inspiração no texto The Loneliness Of The Project, de Boris Groys, James Benning reviveu tal experiência de clausura auto-imposta a serviço de um projeto artístico, que resultou em livro e filme, entre julho de 2007 e janeiro de 2008. Apesar das réplicas terem sido construídas em Sierra Nevada, entre os estados de Nevada e Califórnia, o som foi totalmente gravado em Walden Pond, Massachusetts, e em Lincoln, Montana, os locais exatos das cabanas originais. A sobreposição do som efetivo às imagens de reconstituição acarreta um curto-circuito entre atualidade, atualização, memória e rememoração, antigo problema da particularidade do cinema trazido à tona obliquamente.

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