O Filho de Saul (Saul Fia), de László Nemes (Hungria, 2015)

setembro 1, 2016 em Em Cartaz, Rafael C. Parrode

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Experiência de quem?
por Rafael Castanheira Parrode

A sequência que abre O Filho de Saul é um borrão: num plano longo, uma fila de homens caminha em direção à câmera. O plano se mantém desfocado até, num movimento panorâmico, enquadrar a cabeça de Saul em primeiro plano, observando o que parece ser um grupo de prisioneiros em um campo de concentração. O desinteresse da câmera pelo entorno do quadro, pelas bordas, pelo que ultrapassa o corpo do protagonista, pelo extracampo, reivindica para o filme a experiência do terror de maneira individualizada, pela qual a realidade se atrela ao uno. É uma filiação quase literal ao conceito da ontologia greco-medieval de Platão, Aristóteles e Spinoza, no qual a subjetividade e os processos mentais e psíquicos se sobrepõem aos contextos históricos e políticos. Despreza-se, com isso, a perspectiva crítica hegeliana e marxista, nas quais a historicidade se faz preponderante para a compreensão do indivíduo enquanto ser social conectado com o tempo e o espaço à sua volta.

A aposta na experiência personificada de Saul – prisioneiro eleito pelo filme para nos guiar pelo tour de force a um campo de concentração, e sua experiência como carregador de cadáveres nas câmaras de gás usadas para o extermínio de judeus húngaros – se constrói a partir da perspectiva dos games em primeira pessoa, instalando o espectador no corpo do protagonista para um compartilhamento (dis)simulado de sua realidade programada. Para tanto, László Nemes carrega em certos índices de realismo, utilizando longos planos-sequência com câmera na mão, recortados pelo formato 1.37:1, delimitando ainda mais o espaço em relação ao corpo de Saul, que ocupa quase todo o quadro.

A questão para as escolhas de Nemes pairam, sobretudo, pela ética de filmar o holocausto. Diante de questão de representação tão complexa, o diretor opta por sugerir em vez de mostrar, dando corpo a um personagem comum, ordinário, dos tantos mortos invisíveis para a história que se tornaram números em estatísticas sobre o nazismo. Nemes disse em entrevistas que teve a ideia para O Filho de Saul quando trabalhava como assistente de fotografia de Béla Tarr em O Homem de Londres (2007). Na época, recebeu um relatório de um pesquisador que informava que dos 430.000 húngaros mortos em câmaras de gás, 100.000 eram jovens com menos de 18 anos que nunca foram sequer identificados e enterrados, habitando a vala comum da história. Tratava-se de um relato pouco conhecido e que, nas palavras de Nemes, ameçava se tornar apenas mais um mito do holocausto. Cabia a ele relembrar o mundo das atrocidades cometidas contra seu povo, e contra milhares de judeus.

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A sinopse de O Filho de Saul poderia ser um parágrafo de conclusão tirada desse relatório: um homem sobrevive em um campo de concentração como carregador de corpos dos judeus enviados para a câmara de gás. Ao entrar em uma das câmaras, após a morte de dezenas de pessoas, Saul percebe que há ali um sobrevivente, cujo tempo de exposição ao gás não foi suficiente para lhe causar a morte, ainda que ela viesse logo em seguida. Saul assume-o como seu filho e decide que deve dar ao jovem um enterro digno, passando a buscar um rabino para lhe dar a extrema unção, afim de que seja devidamente enterrado, evitando sua incineração.

Daí em diante a câmera focará, sobretudo, no corpo de Saul em sua via crucis, desfocando todo restante do quadro. O filme deixa clara a sua intenção de empreender a qualquer custo a aproximação inequívoca entre espectador e protagonista, num jogo de expiação onde a experiência se dá pelo viés da culpa histórica borrada em nome da virtuosidade. O espectador experimenta rastros da violência e do horror do holocausto acorrentado a um personagem que vaga desorientado pelos corredores subterrâneos de Auschwitz. Saul é este homem inexpressivo e vacilante, personagem sem estofo, teleguiado, cujo fim é a sua martirização em busca da honra e da memória de um povo. Se Nemes buscava um registro de um homem comum submetido ao horror, ele, ao contrário, transforma seu personagem em um avatar genérico, um homem que é antes um símbolo, antes mesmo de ser um prisioneiro dentre tantos assassinados durante o holocausto. Sua apatia evidencia o caráter de simulação da realidade pretendido por Nemes: cabe ao espectador projetar-se no personagem para que a experiência diante do inferno seja extensiva e compartilhada. Para Nemes, só a experiência do choque pode dar a dimensão da dor vivida pelos judeus.

Essa crença está diametralmente oposta aos princípios éticos norteadores de um filme como Shoah (1985), de Claude Lanzmann, por exemplo (filme de referência para Nemes), no qual o compartilhamento da dor e do horror se dá pela memória, pela oralidade, e nunca pela violentação e subjugação do espectador. Esse ímpeto está mais próximo de outra referência que Nemes parecia querer evitar: o melodrama e a espetacularização do horror de A Lista de Schindler (1993) de Steven Spielberg – ambos citados pelo realizador como esteios na criação de seu roteiro. Nemes relativiza seus procedimentos éticos e estéticos, se revestindo de literalidade para reconstituir uma experiência humana por si só irreconstituível. As boas intenções se dissolvem nos deleites estéticos, em sua tentativa de lançar um novo olhar sobre o Holocausto que termina por repetir e reintroduzir estereótipos, dispersando-se do inicial intuito de recobrar, desmistificar e presentificar a história.

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A história, mesmo a do cinema, é mais ampla. Em seus filmes, o casal de cineastas Yervant Gianikian e Angela Ricci Lucchi lidam com a memória da guerra e do holocausto a partir de arquivos de found footage, reapropriando e resignificando imagens oficiais, trazendo-as para o presente como novas potências fílmicas, para, especialmente pelo uso das cores, da música e da montagem, desconstruir as narrativas e reativar a memória desaparecida no tempo. A trilogia da guerra composta por Oh! Uomo (2004), Prigionieri della Guerra (1995) e Su Tutte Le Vette è Pace (1999), apesar de não lidar diretamente com imagens do nazismo e do holocausto, tratam da violência da guerra e do fascismo com a crueza e brutalidade inerentes às imagens, sem amenizá-las ou enevoá-las, mas trazendo-as para uma poética que inexiste no cerne de O Filho de Saul. Gianikian e Ricci Lucchi têm propósitos semelhantes aos de Nemes: não deixar a história desvanecer no tempo. Entretanto, há uma diferença crucial na orquestração ética e imagética: o casal lida com a história sob a perspecctiva da transmutabilidade de Benjamin, de um objeto através do tempo que se torna sem sentido no presente, perdendo seu valor, mortificando-se e que precisa ser recobrado, resignificado no presente a partir da poética. Benjamin encontra esse surpiro possível nos surrealistas, que tinham a capacidade de transformar objetos mortos do passado, recontextualizando-os no presente através de alegorias da história a partir de imagens de arquivo. Gianiakian e Ricci Lucchi não são os únicos exemplos cujos trabalhos se engajaram nesse encontro entre o horror das imagens e a beleza de suas narrativas. Ken Jacobs, Ernie Gehr, Peleshian, Abigail Child e Godard por exemplo, se dedicaram a recobrar a poesia e a potência do historicismo negando uma visão reconstitutiva, realista e literal do passado.

Nemes passa ao largo desses propósitos éticos e poéticos. Seu filme, ao contrário, banaliza a experiência do horror, transformando-a em mero decalque, atração, réplica. O Filho de Saul não acredita no devir e na potência poética de suas imagens como forma de escavar a história, redescobrindo-a e reconfigurando-a a partir do presente. Ao contrário, o diretor se rende ao poder totalitário das imagens, amarradas pelo amargor da história e impostas ao espectador como um simulacro sem alma, sem espírito, efígie esvaziada, receptáculo a mercê de um jogo onde a história é mero subterfúgio para os malabarismos estéticos, pathos travestido de ethos.

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