Até que a Loucura nos Separe (Feng Ai), de Wang Bing (Hong Kong/França/Japão, 2013)

outubro 3, 2013 em Fabian Cantieri

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O tempo para a liberdade
por Fabian Cantieri

Até que a Loucura nos Separe é quase um filme sobre o nada. E esse quase é o que separa uma experiência torturante de uma verdadeira experiência ontológica do tempo. Mas para chegarmos lá, voltemos às estratégias clássicas do documentário. Flaherty faz Nanook (1922) no afã da descoberta do outro, no caso, um esquimó. Grierson constrói a linguagem documentária clássica criando o off para conduzir a narrativa. O Cinema Verité vai se ausentar de qualquer manipulação cinematográfica para apontar o aqui-imediato. O cinema contemporâneo vai borrar, senão implodir, a própria definição de documentário ao questionar a quimera sobre o estatuto do real. Todas estas são mitificações de uma historiografia do cinema documental. Wang Bing utiliza muitas dessas estratégias dentro de um aparente minimalismo cinematográfico. De Flaherty, a curiosidade sobre o comportamento dos “loucos” internados; de Grierson, ok, quase nada – forçando uma barra, temos a cartela final semi-explicativa do contexto espacial; do cinema direto, sua postura empunhando a câmera, sem grandes artifícios de linguagem – especialmente no som ou montagem –; e do cinema contemporâneo, esta impressionante naturalidade com a qual os “loucos” atuam diante da câmera.

Paremos por aí e contornemos por outra direção, pois este seria o caminho de uma resenha que não extrapola a superfície da obra. Senão da História para obra, da obra para a História. A primeira estratégia perceptível de Wang Bing é a própria forma de creditar as pessoas. Eles são auferidos com seu nome e o tempo presos ali: “Y – institucionalizado por X anos”. Ao longo da projeção, a repetição nos faz intuir que o próximo creditado será o personagem que ele seguirá por um tempo. De muitos desses, seguimos os passos. Vemos suas costas e a margem – direita ou esquerda – de grade que se torna tão familiar aos nossos olhos. É inevitável a lembrança do recorrente “plano de nuca” tão filmado durante a última década. Uma espécie de movimento que nasce de uma tecnologia (o steadicam, lá em O Iluminado), que vem a ser ostensivamente apropriado na virada do século. Quando mais junto ao corpo (lembre de O Lutador entrando no ringue), vemos modulações do espaço se reconfigurando; quando picotado entre planos (Malick, em seus últimos dois filmes), uma cadência etérea que nos levita; quando embrenhado pela narrativa (Elefante e suas diferentes perspectivas), uma reconfiguração do nosso espaço dentro da diegese do filme. Aqui, nenhum dos casos que a memória desperte. A longa sequência com o “louco” tirando o casaco e correndo por entre o apertado corredor só antecipa o que veremos nas próximas três horas subsequentes: este plano é tão recorrente internamente ao filme pois é quase o único possível.

E assim, começamos a esquentar sobre a primeira frase statement lá em cima. Wang Bing, quando não filma corredores, filma as interações dos internados com suas camas ou companheiros ao lado, pois o que sobra são os quartos. Quartos ainda mais claustrofóbicos que as grades, que a essa altura, viram quase um alívio pois, por entre elas, é possível avistar os prédios vizinhos antes do céu ou um segundo andar logo abaixo com, quem sabe, algum corpo feminino. Nos quartos, vemos muitos urinando, pois além de dormir é quase o que resta a se fazer ali, se não for para ficar obcecado com um mosquito na parede ou pular nas camas ou chutá-las ou coisa parecida.

E é quando reparamos nessa totalidade de ações filmadas e refletimos sobre ela que é possível concluir que, de fato, não há um panorama de loucura emanada ali. Descartemos mais um item da nossa historiografia documental: não é um filme sociológico sobre a patologia da esquizofrenia. Não é também um filme político que pretende escancarar para a sociedade aqueles mortos-vivos afastados da civilização. Prendamo-nos às ações e adentraremos o plano do tédio. Afastemos, pois, antes, o mote psicológico de lado. Não existe sequer resquício de um existencialismo que vá se romper por ali. Nenhum deles está preso pela própria loucura, apenas por grades. Pois então, sobre o que é o filme? Sobre o tédio? Não, este é posto e absorvido por nós, mas nunca desdobrado ao ponto de se tornar um tema.

Este quase é um filme sobre o nada. E para todos que desistem da sessão, pois a veem como essa possibilidade de tortura (foram muitos na minha, devem ser muitos pelo mundo), este filme não consegue mesmo ultrapassar o nada. Pois só lá pela terceira hora de filme que percebemos que aquelas grades, sem nenhum psicologismo, começam a ser deveras perturbadoras. Que, se existe um portão no qual pode-se comunicar com outras pessoas, então ele não é só um portão ordinário, mas uma saída do inferno. Só a temporalidade do estar-aí nos ilumina para a liberdade. O “nada” dramático é o propulsor do incômodo na cadeira, mas não de uma forma warholiana. Ainda estamos num hospício. Ainda nos padecemos com a fúria de um louco ao receber sua mulher e filho. Não há presente ou musiquinha bonita que perfume o lugar (e reparem que o momento tangerina é mais uma ilustração de uma humildade comunista do que um real agradecimento pela comida), só existe uma vontade e essa vontade é de andar com as próprias pernas sem a obstrução das esquinas de um quadrilátero que só pode nos remeter ao mesmo lugar. O respiro, o alívio, o ar, enfim chega com a libertação de um dos detentos (se aqueles quartos com altas janelas gradeadas que nunca ilustram o outro lado não são celas de prisão, não sei o que são). O tédio do lado de fora tem um ar de lado de fora. A constante reclamação da mulher ao seu lado não dói como pode ter doído muito antes, antes da prisão. Andar e andar e andar até que o ar suma na escuridão.

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