Um Dia na Vida, de Eduardo Coutinho (Brasil, 2010); e Aquilo que Fazemos com as nossas Desgraças, de Arthur Tuoto (Brasil, 2014)

fevereiro 11, 2014 em Cinema brasileiro, Em Vista, Filipe Furtado

Um Dia na Vida (2010), Eduardo Coutinho

Um Dia na Vida (2010), Eduardo Coutinho

Do uso das nossas imagens
por Filipe Furtado

“Os Monstros vão para casa o mais rápido que podem. Como átomos atravessando a paisagem que devastaram. O trabalho dos turistas. Devastar uma paisagem. Devastar. Um grande empreendimento. Solitário”.

Jean-Luc Godard apropriado por Arthur Tuoto em Aquilo que Fazemos com as nossas Desgraças

No último dia 3, um dia após a morte de Eduardo Coutinho, finalmente vazou pela internet – primeiro numa conta do You Tube e depois pelos muitos sites de compartilhamento – Um Dia na Vida (2010), longa menos visto do cineasta que, desde sua primeira exibição na Mostra de Cinema de São Paulo de 2010, teve apenas algumas poucas exibições esporádicas e quase secretas, frequentemente com a presença do próprio Coutinho. Esse status de filme invisível surgia justamente por ser composto todo ele por imagens retiradas de TV, sem autorização, o que levou o cineasta e seus produtores a manterem uma postura bem cautelosa quanto às suas exibições. O projeto de apropriação do filme acabava por se tornar algo que ele próprio tinha alguma dificuldade de lidar com. Não deixa de ser curioso que, quatro dias antes de Um Dia Na Vida finalmente alcançar um público amplo, a Mostra de Cinema de Tiradentes tenha exibido pela primeira vez Aquilo que Fazemos com as nossas Desgraças, primeiro longa do Arthur Tuoto, todo ele composto por imagens de arquivo que o realizador retirou de terceiros.

Aquilo que Fazemos com as nossas Desgraças (2014), Arthur Tuoto

Aquilo que Fazemos com as nossas Desgraças (2014), Arthur Tuoto

As semelhanças entre os filmes são bastante evidentes, algo já observado pelo Juliano Gomes na nossa cobertura de Tiradentes. Mas, se são ambos filmes de apropriação, que lançam mão de imagens cujo valor existe por estarem inseridas dentro do contexto dos seus respectivos filmes, é bom destacar também que tudo o que os distancia é igualmente interessante. Exagerando um pouco, poderíamos dizer que Um Dia na Vida é um filme de YouTube que só pode existir na sala de cinema e que Aquilo que Fazemos com as nossas Desgraças é um filme de cinema pensado para uma realidade na qual a exibição pública numa sala é só um detalhe ao longo de uma muito mais ampla carreira em plataformas alternativas. Às suas maneiras, Um Dia na Vida e Aquilo que Fazemos com as Nossas Desgraças são filmes que dizem muito sobre como usamos e consumimos imagens e como a apropriação pode ser usada como ferramenta política.

Um Dia na Vida (2010), Eduardo Coutinho

Um Dia na Vida (2010), Eduardo Coutinho

Se algo aproxima ambos os filmes é como o uso de material alheio serve para que se delimitem claramente seus desinteresses em funcionarem como parte do mercado. No caso de Um Dia na Vida, Eduardo Coutinho sequer permitia que ingressos fossem cobrados para suas sessões. As cartelas iniciais – que servem de único contexto para as imagens que se seguem – identificam somente a data do material (1/10/09) e informam que o que se segue é uma pesquisa para um filme futuro, o que reforça a impressão que estamos diante de um rascunho sem nenhuma grande preocupação se o espectador sequer o enxergará como um filme. Quando da sua primeira exibição pública, Coutinho, na sua apresentação, definiu Um Dia na Vida como “um troço” e revelou que finalmente lhe deu um título exclusivamente porque a Mostra de Cinema de São Paulo precisava apresentá-lo com algum nome. Esta relação aberta e relaxada com o filme final é típica do cineasta – pensemos em como O Fim e o Principio (2005) começava com uma narração que informava que o filme era resultado de um convite da Petrobras e de que cineasta partiu para realizá-lo sem nenhuma ideia de que filme queria fazer, que acaba existindo na contramão do profissionalismo da maior parte do nosso cinema. Um Dia na Vida existe como cinema porque Eduardo Coutinho decidiu que para realizar um filme sobre espectadores de TV precisava primeiro travar um contato direto com ela e que o resultado disso merecia ser compartilhado com seu público.

Aquilo que Fazemos com as nossas Desgraças (2014), Arthur Tuoto

Aquilo que Fazemos com as nossas Desgraças (2014), Arthur Tuoto

Não deixa de ser bem interessante notar como as primeiras reações a circular na web sobre o filme de Tuoto apontavam justamente para as impossibilidades comerciais do filme, em especial por conta do seu uso generoso da narração de France/tour/detour/deux/enfants (1979) de Jean-Luc Godard e Anne-Marie Miélville que serve como princípio organizador do filme. É um lembrete de que mesmo espaços alternativos como a Mostra de Tiradentes tendem a ser guiados por uma lógica de versão menor do mercado. Esse é um discurso curioso justamente porque o filme em si é muito resolvido na sua lógica de filme de exceção e flerta com naturalidade com as possibilidades de uma contaminação de mídias. Sua lógica de filme de um homem só também existe num contraponto muito consciente com o gosto da colaboração que marca boa parte dos filmes dos nossos jovens cineastas. Aquilo que Fazemos com as nossas Desgraças é um filme de um homem só para espectadores igualmente solitários. Tanto Um Dia na Vida como Aquilo que Fazemos com nossas Desgraças dispensam créditos, mas não deixa de ser interessante observar as diferentes relações que eles estabelecem com a ideia: no filme de Coutinho, o único crédito é o título do filme; no de Tuoto, o nome da obra desaparece, mas o filme se encerra com um “Arthur Tuoto. 2014”.

Um Dia na Vida (2010), Eduardo Coutinho

Um Dia na Vida (2010), Eduardo Coutinho

Podemos dizer que os dois filmes partem de questões semelhantes sobre o uso de imagem e como podemos pensá-las/articulá-las em um filme hoje, e que também mantêm uma relação de proximidade com estas mesmas imagens (melhor resolvida no filme de Tuoto) que garante que tal discurso jamais se beneficia da segurança de falar de um outro muito removido dos seus autores. Um Dia na Vida também poderia facilmente se chamar Aquilo que Fazemos com as nossas Desgraças. De fato, se há algo muito frustrante a respeito de Um Dia na Vida é o discurso extra filme fácil que o reduz a pouco mais que um tratado sobre as mazelas da televisão brasileira. Sem dúvida há um elemento do filme que lide com isso, mas o interesse maior de Coutinho é quem consome tais imagens e o seu desejo de tratar igualmente um programa como o Jornal Nacional e a mais vagabunda das novelas mexicanas deixa claro quão amplo e diverso é este espectador que interessa ao filme, para muito além do outro, confortável, do discurso fácil.

Aquilo que Fazemos com as nossas Desgraças (2014), Arthur Tuoto

Aquilo que Fazemos com as nossas Desgraças (2014), Arthur Tuoto

Eu estive na primeira exibição pública de Um Dia na Vida e é com certeza uma das sessões mais marcantes da minha cinéfila, menos por se tratar de um grande filme e mais pelo evento em torno dele. Quando daquela exibição, o pouco que se sabia é que a Mostra de Cinema de São Paulo exibiria um filme inédito de Eduardo Coutinho chamado Um Dia na Vida, e o catálogo sequer continha uma sinopse para preparar o espectador. A desconfiança de que se tratava de algo incomum começou na véspera da sessão, quando a Mostra começou a distribuir vale ingressos para os espectadores donos de pacote que haviam retirado com antecedência suas entradas. Menciono todo este contexto porque de certa forma esta primeira sessão foi a sessão ideal de Um Dia na Vida: a falta completa de informações completava a radicalidade do seu gesto. É certo que todas as exibições públicas posteriores do filme contavam com alguns espectadores no escuro, mas a maior parte dos fãs do cineasta tinha alguma base firme de o que encontrar, e isto muda a relação que é possível se estabelecer com aquelas imagens. Numa nota bastante pessoal, o dia que Coutinho escolheu para capturar seu filme foi um dia antes do falecimento do meu avô, que permaneceu a maior parte dos seus últimos seis meses internado num hospital. Eu costumava visitá-lo dia sim, dia não, e a televisão estava sempre ligada, incluindo muito material similar ao que o filme apresenta. Relato isso para lembrar como imagens públicas de um filme como este podem trazer as associações mais diversas: para mim, Um Dia na Vida traz à mente antes de tudo o meu avô num quarto de hospital.

Uma das grandes ironias de o filme finalmente chegar ao espectador via internet é justamente o quão pouco útil a experiência de ver o filme em casa se revela. Revendo-o para este artigo, o filme fora do seu contexto de evento perde parte considerável da sua graça e se aproxima muito de um simples compêndio de horrores da televisão brasileira. Alguns elementos, ênfases e repetições seguem saltando aos olhos, principalmente a escolha nada acidental da véspera do anúncio da sede das Olímpiadas de 2016, que permite que o assunto seja retomado múltiplas vezes pelos telejornais, servindo como principio organizador narrativo ao filme, numa escolha que inclusive não deixou de ganhar relevância neste último ano. A ironia é justamente que este filme pirata, sem um único plano dotado de qualquer valor estético, se revele um dos filmes que mais pedem pela força da projeção de cinema. O grande gesto de Um Dia na Vida é justamente pegar todas estas imagens sem valor e transferi-las para uma sala de cinema e, no processo, emprestar a elas uma força que não apresentam por si mesmas. Algo como Ana Maria Braga jogando Guitar Hero pode parecer grotesco na TV ou no computador, mas sua função muda quando apresentada no contexto de uma projeção. A grande vitória de Um Dia na Vida é a de, partindo de imagens de televisão, recuperar o valor da função social de exibição em cinema. Os sentidos do filme são inseparáveis dela.

Um Dia na Vida (2010), Eduardo Coutinho

Um Dia na Vida (2010), Eduardo Coutinho

A relação com imagens em Aquilo que Fazemos com nossas Desgraças é outra. Planos individuais podem frequentemente ser dotados de pouco interesse para além do contexto que estão inseridos, mas o filme nunca perde a oportunidade de explorá-los dentro das suas possibilidades. Aqui, planos avulsos interessam sempre, nem que seja somente por seu significado, e a articulação de Tuoto encontra nestas imagens um dinamismo próprio. Se no filme do Coutinho tudo está preso ao dispositivo inicial que coloca as imagens em ordem cronológica, no filme de Tuoto as imagens apropriadas e o uso da voz over do filme de Godard/Miéville dialogam de forma que o filme construa uma dramaturgia própria. Se ambos sugerem um playlist de YouTube, no filme de Tuoto às partes individuais são permitidas uma autonomia e valor próprios e não apenas a chance de existirem como sintomas de uma construção maior. Se ambos são filmes sem mise en scène no sentido clássico, a intervenção autoral e o desejo de encontrar uma potência estética são muito mais notáveis no filme de Tuoto. Quando se lança mão de imagens de vídeos caseiros de uma família em férias ou de uma rave, por exemplo, há aqui uma consciência muito grande do espaço e do desgaste que imagens do tipo têm no cinema contemporâneo. Há, sobretudo, uma consciência de que boa parte dos seus planos lidam com um imaginário do qual o filme é comentário, mas também sintoma. Deseja interromper o fluxo delas, mas ao mesmo tempo reconhece-se um limite para a operação. Se Um Dia na Vida pega imagens sem valor e as agrega no cinema, Aquilo que Fazemos com nossas Desgraças opera no sentido oposto: parte do cinema até chegar num desgaste das imagens, apresenta um desejo de desmontar e por vezes parodiar um discurso corrente de contemporaneidade.

Aquilo que Fazemos com as nossas Desgraças (2014), Arthur Tuoto

Aquilo que Fazemos com as nossas Desgraças (2014), Arthur Tuoto

A apropriação nos dois filmes é parte de uma pesquisa estética de forte cunho político. O filme de Coutinho, afinal, lida com o resultado final das imagens que os monstros que Tuoto vai buscar no discurso de Godard/Miéville e procura dar forma. Cada um à sua maneira, os filmes buscam lançar mão de usos de imagens que permitam um embate direto com esta produção de imagens. Seus métodos apontam para olhares bem diferentes: a abordagem de Coutinho, longe do show de horrores que alguns querem, aposta no meio justamente para provocar um choque que as revitalizem; já o filme de Tuoto existe pós-contaminação, pertence a um olhar no qual o cinema já não tem como servir de salvação, pois ele próprio é parte integrante do mesmo processo. Cabe ao realizador lidar com as desgraças do título – “nossas desgraças”, como o filme nos lembra, porque o cineasta sabe que não pode tirar o seu da reta como produtor/consumidor de imagens contemporâneas. O uso constante do preto, o comentário de Godard e Miéville de 1979 resgatando e ressignificado para tratar de 2014… o embate é uma questão de mediação constante, de buscar formas para lidar com este material sem ao mesmo tempo se distanciar por completo dele.

Se Aquilo que Fazemos com as nossas Desgraças marca a passagem de Tuoto do curta-metragem para o longa, Um Dia na Vida é só mais uma etapa na longa carreira de Eduardo Coutinho e é útil justamente quebrar a ideia de que se trata de uma obra de exceção na sua trajetória. Como Coutinho tem um método muito definido, é fácil apontar para um filme como este como uma quebra no processo, mas buscar curtos-circuitos no próprio método é justamente o que toda a obra pós Edifício Master (2002) de Eduardo Coutinho deseja – e, como o próprio Tuoto bem observou no Twitter, todos os filmes do diretor se constróem a partir de uma lógica de apropriações bastante semelhante às de Um Dia na Vida. O filme se aproxima de uma vertente muito rica da obra do cineasta, dos filmes que constróem uma investigação a partir de uma imagem pré-existente – ideia que era o mote central de Cabra Marcado Para Morrer (1984), no qual o material que Coutinho rodou em 1964 é repensado por um olho de 1984, ou na forma como Peões (2004) lança mão do material de arquivo de documentários sobre as greves operárias do começo da década de 1980 para localizar os operários que dela fizeram parte. O caráter filme-rascunho de Um Dia na Vida impede que ele trouxesse um curto-circuito passado/presente tão radical quanto o dos filmes anteriores, mas o filme é movido pela mesma curiosidade de olhar e a mesma pesquisa/indagação que os movia. Pensar o uso da imagem é uma ideia que está sempre no pano de fundo dos trabalhos de Coutinho e que insurge ao primeiro plano justamente nos trabalhos mais radicais do diretor.

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