Uma Família em Tóquio (Tokyo Kazoku), de Yôji Yamada (Japão, 2013)

novembro 9, 2013 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Em Cartaz, Paulo Santos Lima

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O último homem
por Paulo Santos Lima

Lembra do cinema Toyoza, em Hiroshima? Nós fomos ver um filme lá, antes de casarmos. O Terceiro Homem. Eu ainda me lembro da cena na roda gigante naquele parque de diversões em Viena. Orson Welles dizia algumas falas incríveis ali”. O comentário, direcionado à esposa, Tomiko, é do velho Shukichi Hirayama. Ambos vivem num pequeno povoado numa ilha, e estão em viagem de visita aos três filhos em Tóquio. “Tomados” pelo trabalho e pela acelerada vida numa metrópole onde tudo é master, os filhos decidiram dar um “presentão” aos pais, pagando-lhes algumas diárias num hotel modernoso de luxo (um modo eficaz de “entreter” a visita sem a necessidade de alterar a agenda). É da janela no quarto deste hotel, que mais parece um shopping center, que Shukichi avista uma roda-gigante que remete ao filme de Carol Reed. A vista é aberrante, com uma montanha-russa integrada à roda absurdamente enorme e fazendo par com a ostentação “conceitual” daquela paisagem fabricada de arquitetura “chique” high end, com sol reduzido a um reflexo rebatido nos edifícios, ausência de árvores etc.

Não é apenas uma reação contra uma Tóquio adversa para experiências humanas mais dedicadas, como as da terra natal do simpático casal, onde natureza e seres interagem cosmicamente. Há uma questão mais forte aqui, a de um estranhamento, de um desencaixe a essa Tóquio que representa os novos tempos (sim, em grifo, porque dizem respeito ao que se vive hoje, 2013, em todos os níveis, e essa Tóquio representada pelo filme é a própria atualidade). O nome de Orson Welles, portanto, não veio à toa: é Yôji Yamada quem está a falar através de seu personagem. Ao se preocupar com o lugar do casal Shukichi nesses novos tempos de dissolução celular, Uma Família em Tóquio diz mais sobre quem é o cineasta Yôji Yamada no cinema atual.

Uma Família em Tóquio é, em princípio, uma releitura de Yamada de Era uma Vez em Tóquio, que Yasujiro Ozu rodou 60 anos atrás. A começar pela tradução em inglês dos títulos, que confirma as distinções: o de Ozu é Tokyo Story; a de Yamada, Tokyo Family. Ozu implica a Tóquio uma representação de mundo, com sua motilidade, as decorrências históricas, a cultura, a existência, o drama do homem em relação a esse mundo e, em suma, as questões fundamentais do homem que compreendem uma universalidade. O drama em Era Uma Vez em Tóquio não estava condicionado a uma moral, pois Ozu parecia ali registrar objetivamente uma situação. Já o Uma Família em Tóquio de Yamada distingue dois mundos: o da cidade grande e sua aculturada lógica funcional, e o do campo, com as tradições devidamente preservadas. O longa de Yamada faz uma escolha moral entre essas duas condições. Não é um problema em si, e sim a confirmação de que Uma Família em Tóquio interessa mais por carregar um drama bem mais interessante que o dos personagens: o do diretor.

É mais interessante, ainda, sacar a possibilidade certeira de Yamada não ter realizado este trabalho para falar de si. É do filme que se extrai algo sobre o cineasta. A dramaticidade meio simplória com a qual os personagens sedimentam-se na trama é uma característica do estilo de Yamada, cuja proximidade com a dramaturgia televisiva é fruto de um critério ocidental e nada a ver com a tradição do melodrama japonês, que tem mesmo a ver com um certo tipo de cinema e não com a TV – uma boa “aula” sobre o que é a televisão do Japão está em alguns Takeshi Kitano recentes, como Glória ao Cineasta (2007), que traz o besteirol quase surrealista presente nos programas de auditório típicos da TV de lá. Mas, ainda assim, o cinema de Yamada parece fazer parte do passado, bastante deslocado da pós-modernidade que modelou parte da identidade cinematográfica do japonesa dos anos 1980 pra cá, além de, nessa semelhança com os melodramas da TV da face oeste do globo, ficar num lugar muito rotulado e desprezado. Kitano fez um balé formalista e afetado (mas de impacto certeiro) em Zatoichi (2003), ou o refinamento de Nagisa Oshima conferiu uma certa “densidade cult” em seu último e nem tão inspirado filme, Tabu (1999). Já o drama dos samurais de Yamada, como O Samurai do Entardecer (2002), que se sacrifica pela honra, como o fariam os guerreiros de Akira Kurosawa lá atrás, chegam firmes, mas abatidos pelos tais novos tempos que o apontam como piegas.

E voltamos, aqui, à grande questão de Uma Família em Tóquio: o deslocamento. E viremo-nos, outra vez, para a televisão: ao criar parentescos entre um filme “de cinema” e um filme televisivo, Uma Família em Tóquio é marginalizado, colocado na sarjeta. Esse não-reconhecimento é o que impossibilita a manutenção da célula familiar, ou seja, é o que faz com que o casal Hirayama fique a escanteio, com seus filhos em correria no trabalho, e na perversa rotina acelerada da vida na metrópole. A razão é simples: a família é fruto de uma tradição, de uma ordem de valores e regras que a mantém íntegra, como uma célula; mas a contemporaneidade vaporizou algumas definições, relativizou o papel da experiência, ou seja, o relacionamento – alterou a relação entre os seres e entre esses seres e as coisas.

Shukichi e Tomiko são, como Yôji Yamada, dois dinossauros que enxergam o mundo sob códigos de outros tempos. Simplificadamente, Uma Família em Tóquio é a contradição entre os bons e saudosos tempos e a porcaria da atualidade. Mas o filme banca isso, assim com Yamada se garante como autor de um cinema démodé, mangado por vários como piegas, que constrói seus dramas sobre mandamentos “ultrapassados” como honra, coragem, honestidade, distinção, integridade, generosidade.

A trajetória dos dois idosos, entre chegar a Tóquio, encantar-se (e se assustar) com o colosso urbano, passar de casa de um filho a hotel, de hotel a casa de outro filho, e depois voltar à ideal(izada) terra natal, há uma moral que recupera os valores fundamentais – de fundação mesmo – defendidos por cineasta, protagonistas e filme. É uma espécie de fábula, contada com precisão e clareza bastante didática, mas que, sob a superfície do enunciado, extrai um forte retrato do mundo do trabalho, que não é apenas o da capital japonesa, e que tomou o lugar de certos princípios fundamentais para remodelar os indivíduos à chapa da produtividade, do consumismo e do viver o instante.

O trabalho deixou de ser uma contingência natural, biológica, para se tornar uma crueldade ao corpo e ao espírito dos seres, trazendo uma realidade muito semelhante à exposta no Crash (1996) de David Cronenberg, mas com resultados realmente deletérios. Quando ocorre uma inesperada morte, e filhos e netos voltam à terra original lá na ilha natal dos pais, o arco dramático se firma tradicionalmente, sem grandes surpresas, com os conflitos de outrora cedendo à reconciliação, a defesa dos grandes valores imperando magnífica ao final dos créditos.

Talvez a forma mais simples, com encadeamento indutivo, ajuizando claramente os posicionamentos e defendendo sem meios termos uma moral, seja o meio de se recuperar certas balizas perdidas pelo tempo. A pseudo sofisticação de um Christopher Nolan, cujos filmes são um tatibitate na encenação e nas implicações intelectuais, só confirma o estado de coisas do cinema atual, que por conseguinte é parte de um olhar sobre as coisas que não compreende (não reconhece, como não são reconhecidos os velhos Hirayama pelos filhos) quem é Yôji Yamada, à parte seu cinema ser ou não bom ou relevante. É não perceber o lugar onde sua obra está, preferindo exigir genialidade a cineastas e, pior, coroar o pior do cinema contemporâneo como tal. Na lógica engrenada da produção-consumo, há a jurisprudência da publicidade, esta que sempre cola selos em tudo.

Yamada não cola etiquetas, pois ele acredita e vive o que defende. Exigir dele um revival à mesma altura do clássico de Ozu, ou colocá-lo como dramalhão novela das 8, é confirmar a atual cegueira causada pela hemorragia perceptiva. E não enxergar a força de, pelo menos, uma linda sequência deste Uma Família em Tóquio, a citada conversa no hotel, quando Shukichi tenta historicizar, encontrar uma relação que explique aquela aberração contemporânea que ele vê na janela. Yamada expõe-se ali com a maior integridade, chamando por Orson Welles, resistindo e tentando compreender o lugar das coisas e do seu cinema tão autoconsciente e franco, e por isso tão “fora de moda”.

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