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A alteridade está morta; longa vida à alteridade

1.

A Garota Desconhecida se passa em grande parte dentro de uma clínica médica. Diferente de um hospital, o espaço funciona mais como uma unidade de atendimento familiar, onde pessoas daquele bairro ou região recebem consultas médicas básicas, mediando a triagem para núcleos mais especializados. É o tipo de estrutura que se beneficia de uma maior intimidade entre o clínico geral e seus pacientes, e permite um acompanhamento que conjuga alopatia com certa atenção social – serviço que serve também, mas não só, como escada para carreiras mais qualificadas e melhor remuneradas.

É este o caso de Jenny (Adèle Haenel), a protagonista do novo filme de Jean-Pierre e Luc Dardenne. Quando o filme começa, ela está já com um pé do lado de fora, prestes a migrar para outra clínica que carrega índices claros de uma mudança de status quo: as paredes de cores vibrantes dão lugar a divisórias de vidro; as idas e vindas pelos corredores convergem para a plaquinha com seu nome, à porta de seu novo consultório – identificação que comenta o título do filme. Enquanto isso, a médica segue atendendo os pacientes que chegam no centro comunitário, despede-se daqueles com quem desenvolveu uma relação mais próxima – há uma bonita cena musical nesse sentido, cuja transparência emocional redime até mesmo o cliffhanger duvidoso que a antecede – e tenta passar um pouco do que aprendeu naquele lugar para Julien (Olivier Bonnaud), o estagiário em seu encalço.

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É um começo animador, tanto pela dignidade de presença que Adèle Haenel dá à personagem nos primeiros minutos de filme, quanto pelo trabalho dos próprios irmãos Dardenne na articulação desse primeiro ato. Embora os cineastas tenham mergulhado cada vez mais fundo em um determinismo narrativo com roupagem humanista e mão de chumbo que parecia ter chegado ao fundo do poço com O Garoto da Bicicleta (2011), os primeiros minutos de A Garota Desconhecida revitalizam a habilidade de craft que por certo tempo angariou uma boa vontade desmedida, mas compreensível, mesmo de parte da melhor crítica: um olhar apurado no uso de cores; um domínio instrumental de certo realismo “mosca na parede”; uma atenção a como cenas aparentemente insignificantes e cotidianas podem se impor como exemplares, inclusive no que elas têm de violentas; um talento para a escolha de rostos capazes de externalizar um conflito que é em grande medida interno e silencioso.

Nos primeiros quinze ou vinte minutos, A Garota Desconhecida respira, e ao menos esse sopro ainda não carrega o peso de um mau presságio. Todos esses elementos reaparecem com certo vigor na abertura do filme, à revelia de o repertório estilístico dos diretores já não parecer capaz de revelar quaisquer novidades. Mas isso sempre foi lhes pedir muito.

Até que um dos pacientes rompe a tranquilidade ativa da diegese com uma convulsão, e Julien, o estagiário dedicado, se vê totalmente paralisado diante da responsabilidade. Sua grande fraqueza, ele diz mais tarde, foi ter olhado para o menino a se debater no chão e visto um reflexo de si mesmo. Jenny consegue atender o garoto por conta própria, mas o corte epistemológico se dá ali, tanto para relação entre mestre e aprendiz, quanto pro andar do próprio filme: como olhar para um corpo que sofre, refém dos efeitos de uma força externa, sem fazer algo a respeito? A identificação com o outro é um luxo que tempos de crise não podem bancar. E depois de um discurso cheio de razão sobre a necessidade de se manter certa neutralidade emocional nesta profissão – discurso que já começa a arregaçar as mangas com mãos pesadas – uma campainha toca, ela insiste para que Julien não atenda, e pronto: lá vem a desgraça.

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Não demorará para que o inciting incident disfarçado seja devassado na ironia do discurso: encontraram um corpo num canteiro de obras a poucos metros ali. E se a roda de responsabilidade gira sem ranger, é claro que o corpo será da mulher que bateu à porta, e que Jenny – em descabida ambição por autoridade – impediu que fosse ajudada, contrariando todo o princípio de sua própria vocação. É mais claro ainda que a mulher será uma imigrante africana, e que A Garota Desconhecida aos poucos será moldado como uma alegoria da atual situação geopolítica europeia. E não é necessário muito esforço para prever que essa jornada só pode terminar bem para um dos lados.

Em 1986, Fredric Jameson escreveu um artigo célebre e problemático intitulado A Literatura do Terceiro Mundo na Era do Capitalismo Multinacional. Nele, Jameson aponta que a grande resistência do leitor do primeiro mundo aos textos do terceiro mundo, em especial àqueles que se aproximam de um formato canônico (o romance, por exemplo) que lhe é mais próximo, vem da percepção de que todo texto terceiro mundista é, em última instância, uma alegoria. “A história do destino individual particular é sempre uma alegoria do campo de batalhas público da cultura e da sociedade terceiro mundista”, escreveu. Essa dimensão alegórica teria desaparecido não só dos textos mas também da formação do leitor de primeiro mundo, como resultado cabal de um processo capitalista de “separação radical entre o privado e o público, entre o poético e o político, entre o que passamos a entender como o espaço da sexualidade e do inconsciente e o mundo público das classes, da economia, e do poder político secular: em outras palavras, Freud versus Marx”. Dada a vocação alegórica do cinema brasileiro, por exemplo, esmiuçada por Ismail Xavier em Alegorias do Subdesenvolvimento e Alegoria Histórica, artigo que responde ao texto de Jameson e está presente no livro A Companion to Film Theory, de Toby Miller e Robert Stam, a transposição das observações literárias para o campo cinematográfico pode ser feita com alguma tranquilidade.

De lá pra cá, porém, um novo componente parece ter transtornado esta relação: o terror. A experiência de ameaça doméstica desterritorializada tem se tornado mola propulsora frequente para o cinema daquilo que Jameson chama ainda de “primeiro mundo”, voltando essa produção cinematográfica para um certo redescobrimento da alegoria – ou ao menos uma mudança de status, uma vez que ela nunca deixou de estar presente na produção de gênero, por exemplo. Após o 11 de Setembro, uma série de filmes norte-americanos – A Vila (2004), de M. Night Shyamalan, Terra dos Mortos (2005), de George Romero, Vôo Noturno (2005), de Wes Craven, Maria (2005) de Abel Ferrara, O Nevoeiro (2007), de Frank Darabont – reagiram aos eventos recentes com reflexões sobre as forças de identidade abaladas diante do terror e ganharam o proscênio da discussão crítica. O que tornava os filmes tão impressionantes era uma capacidade de cada um deles encontrar, na alegoria latente no microcosmo, muito mais do que uma representação mimética daquele momento histórico específico (a síndrome de George Orwell): revelavam um traço identitário mais perene que esmiuçava a parte, o evento, para entender o todo. O caminho contrário, também suficientemente trilhado, parecia fadado a dar com os burros nas águas do revanchismo (Dogville, de Lars Von Trier) ou do decadentismo (A Fita Branca, de Michael Haneke).

Neste primeiro filme após a escalada terrorista na Europa que figura a Bélgica com complexa proeminência, os Dardenne buscam respostas por um outro caminho, talvez ainda mais complicado: em vez de perceber o potencial do indivíduo em narrar o processo histórico, reduzem o processo histórico à altura do indivíduo. A missão, portanto, passa a ser subsumir a História na trajetória individual, absolvendo a heroína de suas contradições na esperança de que isso resolva o país. A Garota Desconhecida é uma espécie de alegoria reversiva.

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Diante da imagem fugidia e insuficiente captada pela sua própria câmera de vigilância, Jenny assume de maneira impertinente as rédeas de uma investigação, enquanto o filme assume a impertinência de se querer Cidadão Kane (1941). O que segue é uma busca à Eliot Ness, à revelia de todo um pacto social, que não esconde ter como motivação a simples purgação da culpa pessoal. Para isso, os diretores traçam toda uma rotina de cinema de gênero que não se vê obrigado a se renovar – ou seja, do cinema de gênero que não se quer cinema de gênero, mas que o assume convenientemente em nome de uma facilidade alegórica.

Por culpa, Jenny mantém o trabalho anterior e vira as costas ao futuro de ascensão que a aguardava. Por culpa, ela ultrapassa os predicados da ética, senão pelo desejo miliciano de impor uma lei paralela, ao menos para saciar uma curiosidade pessoal. Por culpa, ela se enrosca em uma rede meio furada de exploração sexual, privilégios e um ou outro momento de intimidação pessoal que, como de praxe nos filmes da dupla, jamais parecem capazes de ameaçar a integridade física e a consciência tranquila de quem os enfrenta. Mesmo a jovem morta, aqui, carrega a leveza de um McGuffin. O realismo dos irmãos Dardenne é uma contradição em termos: transforma ruas em estúdio, faits divers em folhetim.

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Aquela respiração do primeiro ato é então lentamente estrangulada pela obsessão causal entre eventos picarescos, e Jenny, a despeito dos esforços de Haenel, vai aos poucos perdendo o ar, envenenando-se com a palidez de sua determinação. Ao espectador, cabe aguardar o fechamento do cerco: se a jornada busca a expiação da culpa do opressor por negligência, o final há de recompensar aquele desejo de ação, aquele comprometimento, com o sono dos justos. Cabe, portanto, distrair-se com o relógio, esperando que aquela agonia inofensiva chegue logo ao fim.

Abaixo do fundo do poço, porém, há ainda o inferno.

Uma vez identificada a moça, Jenny pode voltar ao trabalho com a consciência limpa de quem fez, mesmo tarde, o pouco que podia – e agora tem, ainda, a lei ao seu lado. É aqui que os Dardenne largam mão de uma canalhice sem paralelo para, com um laçarote, enfeitar o papelão: a campainha proverbial volta a tocar, mas desta vez trata-se da irmã da vítima – que Jenny havia conhecido no seu processo investigativo, e que dizia nunca ter visto a moça da foto. Arrependida por ter negligenciado a própria irmã, ela volta para agradecer à médica por sua bondade, por ter-lhe ensinado um pouco sobre ela mesma, por ter lhe iluminado a respeito das relações de sangue mais fundamentais que a barbárie cotidiana havia feito ela se esquecer, e que o medo de suas próprias origens havia feito calar.

Ali, na metáfora suspeita de um agradecimento, a vítima pede perdão a seu algoz, pois o algoz pecou apenas por sua distração, e a distração já foi devidamente purgada naquela jornada religiosa. Ali, naquele espelho que se finge janela, surge uma possibilidade de identificação, mas, diferente do estagiário, Jenny jamais precisará aprender de fato a se identificar com o outro… é ela o modelo a servir de inspiração.

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A expiação não se faz sem engulhos: é esta a conclusão iluminada da grande alegoria para a Europa contemporânea? – a Europa que passa por atentados terroristas de autoria de seus próprios cidadãos, que tem às mãos uma grande crise de refugiados, que nunca olhou de frente sua herança colonialista… a Europa do Brexit, do ECB, do neonazismo e também a Europa, berço da arte e da civilização Ocidentais. É a isto que serve o suprassumo da modernidade cristã encarnada pela má consciência cultivada do cinema dos bons irmãos?

A Jean-Pierre e Luc Dardenne, fica o peso histórico do escambo ofertado: dou-lhes a tradição humanista de esquerda, o Iluminismo e o Renascimento, as Revoluções, os paradigmas Modernistas, a herança do Clássico, o cristianismo e a mínima compaixão que me resta, se me deres, em troca, o direito de recompensar a mim mesmo com um torrão de açúcar, e um tapinha nas costas, no caso de me engasgar. O cinema, com todo seu histórico de abjeção, de olhar seu próprio cú de frente, talvez já tenha ido tão baixo antes… mas não por tão pouco.

Ao fim dessa triste comédia de erros, dessa forca em cama-de-gato, Jenny voltará a ser Jenny, com o alívio redentor de todo romance de formação. Já a garota do lado de lá da tela seguirá desconhecida, pois jamais importou. É preciso desejar-lhe mais do que a leveza da terra; é preciso desejar-lhe mais do que um garrancho em lápide em branco: aos desconhecidos, resta sempre o inalienável direito de só dormir de olhos abertos.

2. 

No fundamental Diante da Dor dos Outros (2003), a escritora Susan Sontag faz um profundo questionamento da eficiência e da perversão do gesto de retratar e propaga(ndea)r a dor alheia no contexto do fotojornalismo. “Ser feito espectador de calamidades que se passam em outros países é uma experiência fundamentalmente moderna, dada a oferta cumulativa de mais de um século e meio de trabalho dos turistas profissionais e especializados conhecidos como jornalistas”, ela diz.

De lá para cá, a onipresença de imagens de sofrimento estrangeiro só fez aumentar, e o protocolo na lida com essa modalidade de registro já parece bastante assentado em sua eficiência em inspirar, simultaneamente, compaixão e inação: uma impressão de proximidade é mediada pela imagem, por algo que não é vivo, presente; ao mesmo tempo, esse deslocamento garante uma frieza e uma aparente legitimidade em querer mostrar e ver a morte e a dor “como elas são”, com a mais-valia do menor pudor produzido por uma proximidade que é apenas virtual. Com este duplo golpe, literaliza-se e despersonaliza-se a dor, que se torna registro exemplar e ideal de toda Dor, em nova camada de violência ao seu contexto específico.

O registro e exposição explícitos da dor do outro seriam, portanto, uma forma de satisfazer um desejo de choque (fruto igualmente da natureza e da cultura), e ao mesmo tempo, afirmar-se diferente, distante, daquele que sofre. “As representações mais francas da guerra, e de corpos marcados pelo desastre, são aquelas que parecem as mais estrangeiras, logo as mais improváveis que conheçamos. Quando o assunto está mais próximo de casa, espera-se que o fotógrafo seja mais discreto”, ela afirma. Mas qual é a postura possível quando a dor do outro chega, literalmente, à sua porta, sem deixar, com isso, de parecer a dor do outro, de um “fora” distante e pouco acessível em sua especificidade?

Fogo no Mar, de Gianfranco Rosi, é um documentário sobre Lampedusa, uma pequena ilha na Itália que se tornou porto para refugiados que chegam de barco ao continente. Espécie de É na Terra Não É na Lua (2011) às avessas, sem perder a ambição de uma metáfora totalizante sobre a Europa, o filme investe na observação rigorosa (inclusive em sentido pictórico) da experiência cotidiana da ilha, sem negar as implicações desse mesmo gesto: um filme italiano, de um diretor que muito claramente fala de um ponto de vista específico e se vê diante de um dilema monumental que não neutraliza – diria que, pelo contrário, acentua – essa condição inexorável de ser quem é.

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O caminho escolhido, desde o título, parece ser o de abraçar essa contradição intrínseca e repassá-la ao espectador. Em um campo, há o conforto da língua comum, o feelgood que emana da observação das crianças e dos costumes em uma “Itália profunda”, gerando inclusive a confiança de que toda essa proximidade permitirá encontrar um protagonista carismático – o garoto Samuele, daqueles personagens que quase todo filme gostaria de ter – capaz de individualizar uma via de relação com o espectador. No contra-campo, há os corpos, vivos ou mortos, que chegam pelo mar dos mais variados países, confinados a línguas inacessíveis, sem destino certo ou identificação. Essa rotina é contemplada por uma abordagem distanciada, impassível, que transfere o julgamento ético (mas não a posição) para o outro lado da tela: um cinema meta-observacional.

Com a mediação de uma montagem que naturalmente escolhe e norteia o envolvimento do espectador, essa extensão de responsabilidade não deixa de ser um tanto desigual. Mas se Fogo no Mar é um filme sobre desigualdade, julgar esse procedimento com a superioridade de uma distância é se fechar para uma experiência radical de alteridade quando ela se faz presente. Da parte do filme, há, desde o princípio – do corte das cartelas que contextualizam a escolha de locação via refugiados para Samuele a subir em uma árvore – a negação de uma demagogia jornalística que ambiciona dar “os dois lados” da questão, pois aqui não se trata sequer de uma questão que tem dois lados. O que preocupa é como uma única situação implica e condiciona diferentes posições, e como elas se manifestam, ou não se manifestam, na vida dos envolvidos.

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O filme sabe que é refém de uma dessas posições – no caso, uma de múltiplos privilégios – e cria uma tensão interna entre uma distância “objetiva” e uma seleção marcadamente subjetiva do que mostra. Embora trabalhe praticamente sozinho, Gianfranco Rosi não chega a habitar diretamente o filme, como Eduardo Coutinho ou Ross McElwee, mas tampouco esconde a presença dessa mediação no que filma, como filma, quando filma e como apresenta isso ao espectador pela montagem. Das conversas com o médico italiano, que fala para alguém fora de quadro, à determinação muito clara das composições plásticas dos planos, sente-se, o tempo todo, a sombra do antecampo sobre a cena. Isso transforma Fogo no Mar em uma experiência extremamente complicada – para o diretor, para os personagens, para o espectador – com o agravante de que, diante da complexidade da situação, talvez a complicação seja de fato a única saída possível.

Com as cartas à mesa, viradas (quase todas) para cima, a questão passa a ser outra: como honrar a complexidade dessa dor por uma via já anestesiada pelo contato presente com imagens que veiculam dores semelhantes? “Fotografias das vítimas de guerra são elas mesmas uma espécie de retórica. Elas reiteram. Elas simplificam. Elas agitam. Elas criam a ilusão de consenso”, escreveu Sontag. Embora a situação aqui não seja literalmente uma guerra, a posição de transformá-la em imagem não é assim tão distinta: a exemplaridade midiática (reproduzida, inclusive, nas redes sociais) que individualiza e viraliza (o mais triste dos verbos) o garoto refugiado Sírio que morre na praia, em uma fotografia, é a mesma que generaliza a imigração terceiro-mundista e cala as contradições intrínsecas a um processo colonialista que em realidade nunca cessou – muito menos foi reparado. A violência desse processo é aludida desde o já mencionado princípio do filme: Samuele sobe em uma árvore e busca um galho do qual possa fazer um estilingue, usando uma faca para podar os espinhos. Durante boa parte do filme, o garoto treinará sua mira e dará vazão à sua testosterona, para enfim poder caçar – sem fim aparente – os pássaros que lhe cruzam o caminho.

Um pássaro, porém, não é somente um pássaro, e filmar um outro é sempre filmar o Outro – relação pendular que é profundamente desigual e que, quando simplificada em militância, dá no final vexaminoso de A Garota Desconhecida: um outro que só interessa enquanto se reporta a mim. Se, por um lado, o espaço para a voz e mesmo a existência dos imigrantes em Fogo no Mar é limitado, recortado e desindividualizado pelo filme, por outro ele tampouco protege os italianos de seu próprio privilégio e de uma violência que lhe intrínseca – aqui, condensada inclusive no desejo de destruição implícito na rotina tediosa do garoto ilhado.

Em uma cena a cerca de 30 minutos do começo do filme, uma mulher com a cabeça coberta por véus é fotografada ao lado de uma placa numerada, em um cadastro de imigração. A mulher resiste em puxar levemente o véu para trás, e mostrar um pouco de seu cabelo aos estranhos que a solicitam isso – gesto de violência que, para ambos os lados, parece causado por um ruído de tradução protocolar, mas que ainda sim se efetiva apenas para um dos envolvidos. A desigualdade, portanto, faz-se mais cruel na medida em que é compreensível, previsível dentro de um certo sistema de funcionamento social que jamais é isento, mas que aparenta uma neutralidade científica, racional. Para dar conta disso, Fogo no Mar precisa desviar (e o faz nem sempre com sucesso) tanto da linguagem do militante quanto do desejo pornográfico da exploitation social, e discretamente se concentrar em algo aparentemente neutro, objetivo, mas que é disparador dessas mesmas contradições: os dispositivos sociais.

Embora isso nunca seja propriamente anunciado, ou montado em proximidade que acentue a comparação – decisão sábia de montagem que evita a comparação direta, a baixeza ilustrativa – o filme é todo composto de ecos, rimas e paralelos à distância que, quando colocados em relação pelo espectador, acentuam a diferença entre o próximo e o distante que chega. Os radares da estação de monitoração dos mares evocam os exames de ultrassonografia que acompanham uma gestação; a leitura sobre Cristóvão Colombo em uma aula de inglês conecta o cotidiano de Samuele à colonização que traz aqueles outros homens desconhecidos a esta outra costa (além de apontar diferentes desejos por um “fora”); o rádio serve tanto como possibilidade de congregar os moradores da ilha em lazer quanto como medida desesperada para um barco que se perdeu no oceano; o barco que garante a sobrevivência dos pescadores locais é também a chance de sobrevivência dos que fogem de seus próprios locais; um exame de vistas do garoto contrasta com a invasiva inspeção de chegada dos imigrantes à ilha – “Eles cheiram a diesel”, dizem os oficiais, comentário que fala tanto sobre as condições da embarcação quanto sobre eles próprios, que ali comentam.

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Ao se concentrar na aparente neutralidade dos processos, a diferença de sua aplicação biopolítica é acentuada. Aqueles mesmos dispositivos – sociais ou tecnológicos – carregam, na sua práxis, uma variação profunda que depende de a quem eles são aplicados: não estamos todos em um mesmo barco, e dizer que sim seria injusto com aqueles que foram proibidos de embarcar.

Essa atenção que demonstra – mais do que articula – um abismo em forma de cinema sublinha a separação entre o “eu” e o “outro”, mantendo a perversidade e a boa vontade deste gap intactas: estes são os termos possíveis da relação. Por esse viés, o cinema é feito ferramenta de expressão de uma certa apreensão da realidade, na mesma medida em que assume a incapacidade de transcendê-la – ou, como faz o médico que dá entrevista ao filme, que aceita os limites do seu gesto. A compaixão, aqui, só pode se manifestar como ausência, e o filme se afirma aquém de repará-la.

O tratamento de ficção científica conferido à estação de monitoramento e aos sucessivos encontros com os barcos não-identificados que são resgatados é contrastado ao raccord sonoro ficcional tranquilo e à aderência de ponto de vista que o filme faz a Samuele – há, por exemplo, uma sequência em que sua famíla come macarrão que encontraria bom lugar em qualquer comédia dos últimos anos, com a diferença de que ela aqui convive com os corpos esquálidos, castigados pela fome, dos homens, mulheres e crianças que se lançam ao mar na esperança de alguma mudança. A maneira indistinta, animalesca, com que Rosi filma os refugiados deixa claro que, naquele monte de corpos e rostos sem nome (crítica que a mesma Sontag fazia ao trabalho de Sebastião Salgado, e que se aplica aqui), o protagonismo é aspiração interdita – ao menos neste filme. Fogo no Mar olha mais para as fronteiras do presente do que para possibilidades de superá-los no futuro; observa mais do que propõe.

Há, na escolha deste gesto, um limite, mas também certa justeza, pois Rosi não disfarça essa parcialidade; ao contrário, faz dela um tema, um princípio. No decorrer do filme, Samuele percebe que não tem a mira tão boa quanto desejava.

Após um exame oftalmológico, o garoto descobre ter uma das vistas preguiçosa, e passa boa parte do filme com um dos olhos tapado, acentuando a consciência de uma certa derrota (ou indignidade) do alcance do olhar do próprio filme, que o toma como porta-voz. Olhar com o outro olho, com aquele que não está acostumado a ver, é processo penoso, que toma insistência, paciência e esforço, mas que é também extremamente necessário. Fogo no Mar propõe esse exercício, afirmando suas complicações como princípio, na esperança de que elas, talvez, não se façam fim.

É um desejo complicado, talvez fadado ao fracasso, pois só pode se efetivar além-filme. Mas, nem por isso, ele é menos revelador. A fila de refugiados segue, os números que lhes são dados avançam na impessoalidade, e a câmera fotográfica congela todos aqueles rostos que chegam e passam, sem origem, sem destino e sem clareza de qual será o próximo passo, a próxima fila. Até que um último rapaz para naquela espécie de cenário improvisado e, em vez de mirar a câmera fotográfica, vira-se para a câmera de Gianfranco Rosi, bem ao lado, olhando fixamente para ela. É o momento-chave do filme, não só por colocar a enunciação no mesmo lugar do procedimento oficial de fronteira, mas também por tudo que aquele rosto devolve, em sua dignidade esfíngica à Bartleby, para quem o observa, e que reforça uma questão fundamental: toda alteridade é via de mão-dupla, é janela e é espelho, é tudo aquilo que fomos e tudo aquilo que não conseguimos ser.


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