lancelot

Mais vale um pássaro a voar que dois pés no chão

Quando Lancelot (Luc Simon) decide participar de um torneio de batalhas, o faz secretamente. Surge um cavaleiro capaz de derrotar a todos. Mas a decupagem de Robert Bresson não enfatiza o personalismo do herói: não vemos seu rosto, seu corpo está coberto por uma armadura, não há bandeiras que o identifiquem, a plateia não tem convicção de sua identidade. A trama revelou o seu paradeiro, mas temos dificuldades para saber se é ele. Não é que Bresson construa um mistério em torno do sujeito mais hábil. Pelo contrário, toda a sequência é reduzida a uma mecânica repetitiva entre pés de cavalos e cavaleiros, flâmulas erguidas, olhares da plateia e uma nova lança nas mãos do especialista. Os golpes mesmo são omitidos ou interrompidos por cortes bruscos.

A primorosa cena é um mostruário do cinema rarefeito de Bresson: o minimalismo dos elementos e gestos; a encenação rígida e desdramatizada; a construção por meio de repetições e motes vazios; a recusa à humanização dos personagens; a composição pictórica árida. Remete, por exemplo, ao exercício frequente de André Devigny em Um Condenado à Morte Escapou (1956) ou a prática da rapinagem de Michel em O Batedor de Carteiras (1959). Mas há uma diferença fundamental que destaca Lancelot do Lago: ele não está se preparando para nada. Ao contrário, ele já é o combatente mais hábil. O longa-metragem todo gira em torno de um momento póstumo, como revela o texto inicial: os cavaleiros da távola redonda saíram à procura do Graal, retornaram para casa com as mãos vazias, incertos que o Graal (ou Deus) seja sequer uma realidade. Acompanhamos o intervalo pós-jornada, quando encontram-se perdidos, sem propósito real, e o Rei já não pode governar.

Essa condição ganha um sentido alegórico: o homem saiu ao mundo à procura de Deus, falhou, e está agora aprisionado nesta condição tão frequentemente indagada pelo existencialismo e a fenomenologia (Sartre, Heidegger, Husserl), pela literatura da primeira metade do século XX (Camus, Dostoievski), e mesmo por uma certa corrente cinematográfica tipicamente europeia, para quem a questão do divino se encontrava em xeque (Dreyer, Rossellini, Tarkovski). Ninguém levou tão longe quanto Bresson as consequências deste estado de paralisia, incorporando-o ao estilo artístico de maneira orgânica: um repertório de pés caminhando, mãos portando espadas, rostos que são máscaras, corpos armadurados vagando como bonecos; a dramaturgia objetiva na qual o ator (ou “modelo”, como Bresson preferia chamá-los) mais recita que fala, move-se com dureza e sai de cena peremptoriamente; a frequente recusa do raccord contínuo entre duas imagens, estas mais friccionadas que criadoras de um espaço harmônico. Estes recursos dão forma a um estado de espírito do homem em meio ao despropósito da existência, abandonado por Deus e por valores morais. O que lhe resta?

A técnica. É por ela que Lancelot se destaca, e que, na cena da batalha, faz com que todos instintivamente o reconheçam. Michel era um exímio ladrão. André estudava como fugir da prisão. Lancelot é um hábil combatente com a mesma razão descompensada: exercita sua prática com euforia, mas já sem o sentido que antes o animou. Lancelot do Lago começa e termina com luta e morte, filmadas de modo a sublinhar seu caráter autômato, profano e desenraizado. Não se enganem: a técnica é o ponto máximo deste beco sem saída. É a válvula de escape para a ausência sentida após o abandono do sagrado.

Mas a técnica é insuficiente. E andar a esmo conduz a labirintos cada vez mais sombrios. O radicalismo de Bresson leva tais premissas a um limite que nos lega a questão do lugar do divino no mundo contemporâneo. Em Lancelot do Lago, é na morte que os cavaleiros finalmente se deparam com a liberdade que ansiavam. Não se trata apenas de um elogio à finitude. Cessa a técnica como obsessão, os pés não andam mais a esmo. Como o antagonista de Jornada Tétrica (Wind Across the Everglades, de Nicholas Ray, 1958) – que tarde demais compreende a beleza das aves que caçava – o cavaleiro pode enfim repousar, parar de olhar os pés que andam perdidos e ver um pássaro a voar.


No dia 27 de Outubro às 19h, a Sessão Cinética exibe Lancelot do Lago (Lancelot du Lac), de Robert Bresson (França, 1976) no Instituto Moreira Salles – Rio de Janeiro. A sessão será seguida de debate com os críticos da revista.

Uma vez ao mês, a Cinética faz uma sessão no Instituto Moreira Salles, no Rio de Janeiro, abrindo mais um espaço de reflexão e apreciação de filmes fora do circuito exibidor tradicional. A curadoria tem a intenção de programar obras importantes, de circulação restrita nas salas brasileiras, respeitando ao máximo as características originais de projeção de cada filme. Além disso, críticos da revista produzem textos especiais para as sessões e mediam um debate após a exibição.

Lancelote do Lago será exibido em 35mm, formato em que foi finalizado.

Ingressos: R$ 8 (inteira) e R$ 4 (meia). Vendas na recepção do IMS-RJ e no site ingresso.com.


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