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O simbólico está morto, longa vida ao simbólico

1.

Sieranevada, de Cristi Puiu, abre com um plano visualmente desequilibrado de um carro parado no meio da rua. Lary (Mimi Brănescu) salta de trás do volante e entra em um prédio, deixando o veículo em ponto morto por um minuto. A câmera não acompanha seu trajeto, abandonada junto ao carro, atrapalhando o tráfego. A duração do plano é estendida além de qualquer eficiência, mantendo o paradigma de realismo observacional da recente onda romena no world cinema, que tem em Puiu um de seus mais significativos representantes. Após muita insistência, Lary sai do prédio e dirige o carro até a próxima esquina, onde sua filha e sua esposa, Laura (Cătălina Moga), o aguardam.

Contudo, apesar da duração, o plano fornece pouquíssima informação: o enquadramento é particularmente deslocado e esconde mais do que mostra – mesmo uma leve pan motivada pela chegada de um caminhão não reenquadra o suficiente para mostrar o motorista, que castiga a buzina. Com pouca informação vem pouca transformação, e ao final é difícil dizer exatamente o que mudou.

Por um lado, a veemência deste vazio é a confirmação de certo pressuposto estilístico que carrega a tocha acesa em arena mundial por A Morte do Senhor Lazarescu (2005). Por outro, e mais importante, ela é também o reconhecimento da insuficiência desse pressuposto, mantendo não só o sentido mas o grosso da ação totalmente fora de vista, inacessível. Em golpe revisionista das fundações de seu próprio cinema que ecoa a fase tardia de Eduardo Coutinho, a maneira deliberada com que Puiu inviabiliza qualquer informação parece ser a razão mesma de existência do plano, achando no despropósito seu único propósito. Apesar de a posição da câmera oferecer acesso limitado a tudo que está à sua frente, essa ausência é extremamente reveladora das intenções por trás dela, quebrando a quarta parede que salvaguarda o realismo mais tradicional. O plano gravita rumo ao ceticismo na mesma medida em que afirma a evidência pregnante da realidade, criando a estranha impressão de que a verdade de fato existe, apenas não se encaixa neste mundo.

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Tudo que possua qualquer relevância para Sieranevada paradoxalmente não terá espaço no filme, e é expressivo que a trama revisite o tema central do filme que revelou o diretor ao mundo, com a diferença de que o homem agora já está morto desde o princípio, e é mantido quase sempre fora de quadro. Mais do que in media res, a ação se esconde alibi – em outro lugar, como a especificidade deslocada do título misteriosamente assinala: não há alusão sequer a ela no filme, mas a palavra “sieranevada” carrega uma precisão – a imagem de um lugar abstrato mas que qualquer espectador é capaz de imaginar como é – que complementa o mundo presente na tela. Não só chegamos tarde demais; chegamos também ao lugar errado. Daqui, tudo que se vê é a ponta do iceberg, cercado pelos tremores que sucedem o terremoto, vindos de um epicentro distante. Qual seria a linguagem das ressonâncias periféricas? Como pode a margem – da ação, da política, da Europa, do world cinema – ser estabelecida como um novo centro?

É questão complexa, pois ela envolve uma substituição de uma coisa por outra, e a maior parte das trocas requisita grossos remendos. É este o drama de Sieranevada: uma família tenta levar a cabo um ritual representacional para celebrar a morte do patriarca, pedindo que outro membro da família desempenhe seu papel. O pai – arquétipo que, em países de língua latina e passado ditatorial, tende a carregar o subtexto de um estadista a abandonar a “mãe-nação” à sua própria sorte – não é figura exatamente digna de admiração. Mas com a morte vem o perdão, e uma imponente cadeira de defunto a ser ocupada. Além do benefício da morte, o patriarca tem mais um dado a seu favor: ele era o pai de verdade. E agora que o real está morto, esfumaçado em memória, em representação, é parte do processo de luto este jogo de faz-de-contas que, se bem ritualizado, permitirá que um sucessor chegue ao spotlight familiar.

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Porém, o presente ainda é demasiado cedo, e o filme fará o possível para adiar ao máximo a responsabilidade. O centro da ação – que parece combinar a distensão de expectativas de Alfred Hithcock com um gosto à Seinfeld pela centralidade do banal – circula este teatro religioso em que um dos sobreviventes é clamado a fazer o papel do morto. A relação é de natureza simbólica: uma coisa tomando o lugar de outra, diferente, para que possa produzir o mesmo significado. Mas o fato de os vivos ainda estarem às turras com quem são complica a necessidade de fazer o papel de outro. A ficção não é algo que se reivindica; é algo que se conquista.

Se o centro é um palco, o diretor novamente marcará seu território às margens: Sieranevada é um filme sobre as ações nos bastidores, as trocas de roupa simultâneas, a ansiedade que antecede a entrada no proscênio. Puiu posterga o momento decisivo com toda sorte de desvios acidentais, de teorias da conspiração sobre o 11 de Setembro à mais corriqueira fofoca familiar, dos quais o mais sintético é o fato de as calças compradas para o ritual serem grandes demais para que o jovem parente possa vesti-las. Neste ritual de representação orquestrado por desejos conflitantes, as duas partes – corpo e espírito – se encontram em desencaixe, e o cinema só pode realmente filmar uma delas.

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Essa inadequação é o ninho de todas as dúvidas: que espaço pode a verdade ocupar em um mundo que parece ter separado o Ente da Ideia? Que papel os rituais podem ainda desempenhar num mundo em que a representação se tornou uma mentira – o contrato de discurso que media todas as relações no filme – ou motivo de suspeita? – como a ausência de miolos respingados nas filmagens do ataque ao Charlie Hebdo, ainda dolorosamente presente nas memórias diegéticas do filme. Como alguém em sã consciência poderia comprar a lorota de Relu (Bogdan Dumitrache), que quando jovem disse ter sido obrigado a fumar cigarros por um homem armado? Ainda sim, seus pais acreditaram, se envolvendo abertamente em todo um espetáculo social por conta dessa crença, e agora cá estão eles, no centro do palco, dirigindo a todos os outros para pouparem sua consciência (e seu espírito). E, mesmo que motivados por vista grossa, todos aceitam os papéis a eles designados.

Enquanto Lary observa o mundo do alto de seu ceticismo generalizado, como se a escolha por acreditar fosse fruto possível somente à ignorância, a câmera de Puiu é mais indecisa, por vezes fora de lugar. “E se Deus já tiver voltado à Terra e a gente não o tiver reconhecido?”, pergunta o padre. O filme parece abalado não só pela sua desconfiança diante de Deus, da fé e da razão pela qual fazemos uma quantidade de coisas (como um funeral), mas também pela pulga contraditória de que talvez seu julgamento é que esteja errado. Dentro do grande balé que se torna a reunião familiar, a câmera se esgarça entre seguir a ação dos atores, com movimentos de câmera justificados objetiva ou subjetivamente pelos personagens, e uma liberdade que não carrega crença suficiente para se fazer um statement. É comportamento que, para bem e para mal, sintetiza o problema central do filme: o desejo pela fé não é forte o suficiente para resistir ao empuxo da realidade.

Ainda sim, os descrentes jogam o jogo, e este estranho voluntarismo – talvez covardia, talvez respeito – parece confirmar o buraco assim como sua incapacidade de saltar sobre ele. Essa separação irreparável entre o ideal e sua representação, entre ver beleza real na transcendência e se perceber incapaz de transcender, é trazida à superfície em uma sequência que o próprio Puiu diz ser a origem de todo o filme. Quando a câmera chega à cozinha onde a comida é requentada e o funeral é novamente empurrado com a barriga, duas mulheres de gerações diferentes discutem sobre Socialismo. A mais velha fala com orgulho dos sacrifícios feitos pelo povo, ainda ligada à promessa de uma utopia (um ideal) que nunca se realizou de fato; a mais jovem fala da queda do regime, grifando com raiva suas contradições e o desencanto geral que recai sob a prole do regime. Uma delas crê; a outra, não pode crer. De certa forma, ambas têm razão. Esta é a tragédia e a beleza da coisa.

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Mas a cena é crucial não só por ressaltar o gap entre prática e verbo, entre Ente e Ideia, entre um ideal e sua representação (todo sistema político é, em essência, uma forma de estética), mas também pela dinâmica vibrante entre as duas mulheres. Se, por um lado, Sieranevada joga uma luz pálida sobre sonhadores acinzentados, a realidade factual do filme é surpreendentemente pulsante. Cristi Puiu cria uma sinfonia teatral de portas, de entradas e saídas, de um complexo role-playing, encarnado com dignidade e talento pelo elenco do filme, capaz de desafiar aquela tristeza azulada, aqueles interiores nublados. Nesta família de mentirosos egoístas e paranoicos que desconfiam até mesmo da ficção que escreveram para si próprios, há uma pulsão que se faz palpavelmente viva e verdadeira nesta performance barroca ao redor de um morto que segue capaz de ditar a hora em que os vivos devem jantar. A mão do simbolismo pode não se fazer visível, mas isso não impede que se sinta seu puxão na barra das calças.

Deixemos a mão sem explicação, enquanto tentamos manter as calças no lugar: nesta batalha entre o real e o simbólico, a verdade não é algo em que se acredita, mas algo do que se participa. É, em essência, uma forma de encenação. Após a sequência de abertura com o carro, Lary e Laura discutem sobre princesas da Disney. Ela havia pedido que ele comprasse uma fantasia específica para a filha em sua viagem ao exterior para que ela pudesse participar de uma apresentação na escola, mas ele gostou mais de uma outra fantasia e acabou comprando a que preferiu – ou, igualmente provável, ele, protótipo desgraçado do egoísmo contemporâneo, simplesmente não prestou a devida atenção no que lhe foi pedido e fez o que lhe era mais conveniente. O problema, diz Laura, não é a filha não convencer como a personagem que lhe foi designada; o problema é que o vestido é de outra cor, e vai “brigar com os outros”.

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É uma afirmação interessante não apenas sobre o cinema de Puiu, mas sobre toda a geração-exportação do cinema romeno: se a realidade é por demais magnética e o trauma demasiado recente para permitir que o corpo de Cristo não tenha gosto de pão velho, a energia e harmonia de uma liturgia secular precisa aspirar a alguma forma de futuro, de além. Ao fim do dia, são as diminutas demonstrações de destemida ficcionalização que fazem com que algum daqueles filmes se distingam do virtuosismo contraproducente de um Entre os Muros da Escola (2008), de Laurent Cantet, e permaneçam na memória: as cores vibrantes dos figurinos de 4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias (2008), de Cristian Mungiu; o simbolismo latente da conversa jogada fora entre Corneliu Porumboiu e seu pai, em The Second Game (2014); a mise-en-scène traiçoeiramente simples do excelente Terça, Depois do Natal (2010), de Radu Muntean. Embora Mungiu tenha queimado a largada e levado essa aspiração além dos limites da esperteza estrutural determinista em Bacalaureat (2016), a indecisão confiante de Puiu faz com que essa espera seja fértil e intrigante.

Ao fim do dia, depois de a comida requentada ter ido à mesa e todos os jovens já terem satisfeito seu desejo de rir no velório, as respostas de Sieranevada às suas vultuosas perguntas são paradoxalmente satisfatórias e insuficientes. A riqueza das dinâmicas e a habilidade em evitar que os elementos “briguem uns com os outros” não transpõe o vácuo ou habita o intervalo que é central ao cinema: nessa arte em que o espírito é o corpo, o morto sempre ri por último. E embora o filme sedutoramente tome o caminho mais fácil, ajoelhando-se para rezar para dois deuses que não se falam, um par de calças largas é hasteado feito bandeira por aqueles que chegaram tarde, só para perceber que ainda é cedo demais.

2.

Tão cedo quanto o primeiro cinema: um homem rema seu caiaque rio abaixo, tentando captar o voo de pássaros em seu binóculo. Nos primeiros vinte minutos de O Ornitólogo, João Pedro Rodrigues despe sua abordagem estilizada, ornamentada, aos ossos do cinema: a câmera é ferramenta para observar, capturar e estudar os movimentos da natureza.

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Fernando (Paul Hamy) é uma espécie de pós-proto-cineasta, e a primeira parte do filme – diríamos, seu período de origem – se alimenta dos desejos do cinema das origens: o filme científico, o pioneirismo dos travelogues, as belezas naturais catalogadas nos rolos encomendados pelos irmãos Lumière, guardadas junto aos números de vaudeville, ao grand décor dos pequenos interlúdios teatrais e aos primeiros filmes industriais. É o cinema antes do documentário ter sido inventado, em momento em que os gêneros eram palavras do vocabulário do teatro e da literatura, e nenhuma narrativa despertava maior fascínio do que as imagens agora serem apresentadas em movimento.

É um belo começo justamente por mostrar tão pouco do que está por vir. Enquanto O Fantasma (2000), Odete (2005) e Morrer como um Homem (2009) eram reimaginações poderosas do melodrama fassbinderiano filtradas por lentes extremamente pessoais, o princípio observacional de O Ornitólogo traz à mente A Última Vez que Vi Macao (2012), longa que Rodrigues co-dirigiu com João Rui Guerra da Mata – colaborador frequente com quem ele já havia co-dirigido curtas, co-assinado roteiros e cujo trabalho na direção de arte fez-se parte vital à visão do diretor. Diferente dos filmes anteriores, o longa de 2012 combinava a estrutura de um travelogue moderno com os tableaux de narração desencarnada de Marguerite Duras (India Song; Le Navire Night) e Chantal Akerman (News from Home), usando a distância observacional para recontar a memória pessoal feito ficção (Macao, que Sternberg fez em 1952, ocupa espaço central no filme). O significado do texto, apostaria-se, se manifestará nas sombras que a quarta parede projeta sobre o proscênio, remoldando o espaço com picos e vales de luz e escuridão, gerando uma terceira coisa que não estava presente no som ou na imagem. Através do jogo de sombras, a realidade geraria sua própria representação, revelando, metonimicamente, a parte pelo todo.

Mas enquanto A Última Vez que Vi Macau alegorizava abertamente a falta de matéria em tela (um filme quase todo ocupado por personagens sem corpo) para captar a violência ambivalente do colonialismo, e as contradições entre as histórias pessoal e comum, o filme sofria da ausência de um olhar de volta, de um ponto de visto ancorado que sempre foi uma das mais perceptíveis distinções de Rodrigues como cineasta. O filme se ressentia da falta de A Última Vez que Macau me Viu, de um embate com o contracampo que até então se colocava como maior fonte de tensão no cinema de Rodrigues.

O Ornitólogo, em outro extremo, confia plenamente na matéria, articulando ações físicas e jogos de ponto de vista pela montagem que sumarizam um princípio básico do cinema e da vida: não há observação que seja de fato objetiva. Todo filme é, de certa maneira, um Western, e toda descrição desapaixonada é apenas um preâmbulo para o duelo. Daí o sofisticado jogo entre campo, ponto-de-vista (literalizado pelos planos filmados através do binóculo, acena a uma das mais caras convenções auto-evidentes do cinema clássico) e contracampo, que a montagem articula em uma escalada de tensão, que indica que a placidez daquele rio tem hora e lugar para acabar.

À típica maneira de Rodrigues, o filme ativa este olhar “ausente” desde cedo, chegando a usar literais bird’s eye views aos quais será reservado um papel chave adiante, no filme. Fernando não é só um observador de pássaros; ele é uma criatura muito como eles, como afirma a montagem paralela do princípio. A câmera de Rodrigues acompanha Paul Hamy como as primeiras câmeras acompanhavam os pássaros de sempre, tentando solucionar o enigma que torna sua simples presença digna de atenção.

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Exceto que não se trata, aqui, de mobilidade física, mas de um certo mistério interior, uma qualidade que alguns primeiros homens de cinema, como Béla Balász e Jean Epstein, chamavam de fotogenia, e que nivelava o rosto humano e paisagem natural como meios igualmente expressivos. Hamy, muito como os pássaros e as montanhas e o rio, carrega um sentido, um sentimento, uma expressão de algo que também se coloca além. E, não distinto de Sieranevada, este além fala do aqui – uma substituição do um por outro… um jogo de simbolismo.

Assim, “enquanto a noção de fotogenia era transferida do rosto ao lugar, da carne às rugas do deserto, do corpo marcado pela raça ao film noir” (Emily Apter – Continental Drift: from National Characters to Virtual Subjects), o colonialismo se fez via de mão dupla, e a mais que citada máxima de Humberto Mauro talvez tenha atravessado o Atlântico. Enquanto o rio empurra, plácido, o caiaque às cachoeiras, o cientista é forçado a pôr-se à frente do místico: Etienne Jules-Marey e Eadwaerd Muybridge aprenderam um bocado de coisas sobre como o corpo natural funciona; ainda sim, nada sabem sobre minha alma.

Com o acidente, a história generalista faz-se particular: este não é um rio qualquer, tampouco um rio ideal, uma alegoria em águas. O estabelecimento do lugar não se dá por planos gerais – eles também são traiçoeiros, como não raro são as águas – mas por uma sequência de fotos estilo cartão-postal: estamos no caminho de Santiago de Compostela, rota que se esparrama entre Portugal e Espanha que se fez lugar sagrado para peregrinos católicos de todo o mundo, em busca do altar de São Tiago, o Maior, e da Catedral de Santiago de Compostela. Este rio não é apenas um rio místico; é fisicamente parte de um trajeto conhecido por abrigar jornadas turísticas e espirituais – em outras palavras: um palco para um ritual representacional específico, uma verdadeira jornada do herói… cinema, no que ele tem de mais convencionalmente narrativo. Depois que o caiaque quebrado de Fernando é apropriado como totem simbólico digno de veneração, o filme, aquele documentário avant la lettre, não tem escolha a não ser cumprir o destino do próprio cinema: aceitar-se como uma aventura.

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O que torna O Ornitólogo tão fascinante e incendiário é justamente a literalidade lusitana com que ele assume esta missão: uma vez que Fernando é resgatado por duas turistas chinesas que desejam capar-lhe (ou melhor, uma vez que Fernando há muito já não toma seus remédios), toda nova cena passa a carregar a promessa do inesperado, fazendo curvas bruscas que incorporam simbolismo católico, explorações sexuais, assassinatos de gelar a espinha e uma tendência suspeita ao sublime. Se vivemos em um mundo pós-Deus (no caso de O Ornitólogo, literalmente, com sangue nas mãos), curvado aos ditames da autoconsciência, como o luto de humor pesado de Sieranevada parece atestar, a aventura só pode realmente se consumar com uma explosão significativa das normas e uma exploração profunda das formas. Num contexto em que o cinema parece mais e mais satisfeito com as gavetas que lhe foram dadas, é revigorante ver um filme feito com tamanha alegria, liberdade e desespero, com tamanho respeito pelo que pode um espectador, e com tamanho desprezo por o que esse espectador pensa que não deve.

Mesmo com toda essa liberdade, nada aqui é fruto aleatório de uma imaginação sem rumo. Em mesma medida, o simbolismo do filme jamais se deixa paralisar, ficando bem mais próximo do devir representacional de Apichatpong Weerasethakul, Tsai Ming-liang ou Joaquim Pedro de Andrade (cineastas a quem o filme se irmana, sem referência ou reverência, mas com o desejo de continuidade de uma pesquisa coletiva) do que do baile de máscaras da satisfação banal de alegorias decodificadas que já empesteou o trabalho de George Orwell e William Golding, assim como o Kieślowski tardio, o Bergman de mão mais pesada, o Truffaut mais descalibrado, o Jodorowsky mais esotérico. O que está no centro, aqui, é a tensão entre um sentido de identidade pessoal e uma determinação coletiva, que se manifesta na permeabilidade entre o desejo espiritual, a prática ritualística e a natureza física: Jesus bebendo leite das tetas de uma cabra; um orgástico batismo de mijo; um cachorro ordinariamente lambendo o sangue sagrado; uma ferida aberta que se oferece como uma provocação sexual, assim como uma trepada é reencenada como um esfaqueamento, com os mesmos personagens.

Graças ao simbolismo frontal e ao uso indiscreto da mitologia católica, O Ornitólogo se presta a disparar leituras religiosas as mais múltiplas, das mais pias às mais pagãs. Embora a religião desempenhe papel central no filme – como em Viagem à Itália (1954), de Rosselini, parte integrante do humus da cultura na qual o filme se ancora – a mira parece buscar outro tipo de além.

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Perto do fim do filme, Fernando começa a ser seguido por uma pomba. A câmera corta para o ponto de vista do pássaro, e em vez de Paul Hamy a ave vê o próprio João Pedro Rodrigues (que já emprestava a voz às falas em português do protagonista), estilhaçando outra parede de representação, efetivando o cinema como um faroeste da transcendência, um duelo que enxerga além da carne, do senso de identidade perdido nas digitais queimadas, dos buracos que vazam os olhos em uma fotografia… um duelo que mira além da câmera. Em O Ornitólogo, Santo Antônio é também um meio para outro, distinto fim, espécie de Stalker (1979) que não enxerga expiação possível além da auto-ironia.

Esta mesma ironia, porém, é salvação e ruína: não fossem os remédios agendados, Fernando talvez já tivesse se transformado em Santo Antônio, como o próprio Santo Antônio – batizado Fernando – um dia o fez, transcendendo história e identidade, sobrevivendo aos naufrágios que a vida lhe reservou. O Ornitólogo não planifica as contradições de sua questão; mas quando se está no barco, refugar diante da corredeira nunca é de fato uma opção. Nas palavras de Clement Greenberg, o que está em jogo é fazer com que o presente seja “digno do passado”, que a realidade seja digna de sua própria mitologia, que a Europa seja digna de sua história (a locação fronteiriça ecoa o Tratado de Tordesilhas, amarrando religião, turismo e colonialismo como buquê de identidade portuguesa), um artista seja digno de suas aspirações (e obrigações) e o cinema seja digno de colapsar e reconfigurar uma experiência de mundo que é perturbadora, bagunçada e profundamente contraditória.


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