Sieranevada, de Cristi Puiu (Romênia/França/Bósnia e Herzegovina/Croácia/Macedônica, 2016); Rester Vertical, de Alain Guiraudie (França, 2016)

setembro 1, 2016 em Coberturas dos festivais, Colaborações especiais, Em Campo

* Cobertura do Festival de Cannes 2016

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Tempo, tempo, tempo
por Eduardo Valente (colaboração especial)

A manipulação do tempo, através da montagem, sempre foi um elemento fundamental de o que pode fazer o cinema como espaço da captura da realidade, e sua transposição em forma de discurso artístico. Cortar ou não cortar, eis a questão? Os dois primeiros filmes apresentados em competição em Cannes em 2016 apresentam perspectivas absolutamente opostas em como se relacionam com essa questão como uma das suas características mais notáveis.

Em seus dois longametragens precedentes, A Morte do Senhor Lazarescu (2005) e Aurora (2010), Cristi Puiu indicava que a duração dos processos era uma das suas obsessões. Acompanhar a passagem do tempo e a maneira como ela pesa sobre os personagens, seus corpos e suas reações estava no cerne do que fazia desses filmes experiências bastante únicas. Nesse sentido, pode-se dizer que o cinema de Puiu sempre foi menos um cinema do realismo naturalista por si (uma ideia muito conectada à chamada nova onda do cinema romeno) e muito mais um que, pela sua forma de distender o tempo através da encenação de gestos ou situações que, em geral, subvertia o código do cinema em relação a uma montagem guiada por “efetividade”. Ao fazer isso, curiosamente, ele se distanciava do que o cinema assume como “natural”, e se aproxima do teatro, pela ideia mesmo do tempo que corre ao vivo – para os atores mas também (e talvez principalmente) para o espectador.

Sieranevada (foto) trabalha o tempo de forma igualmente forte (sua duração de 2h50 certamente poderia ser considerada excessiva frente a sua narrativa, se entendida como relato), buscando causar no espectador um mesmo desconforto que toma conta de seus personagens. A grande diferença aqui é a radicalização que o filme faz também do espaço: quase 2 horas e meia de sua duração se passam num mesmo (pequeno) apartamento. Aqui, volta a ideia do teatro, nem tanto pela forma de encenar (a câmera de Puiu poucas vezes é frontal, pelo contrário: estar num apartamento é algo explorado na construção de ambientes distintos e separados, e com uma câmera poucas vezes realmente parada), mas pela maneira como sua linguagem de encenação realista curiosamente se aproxime do vaudeville: os personagens (muitos) entram e saem de cômodos, fecham e abrem portas, constroem espaços separados e contíguos o tempo todo. O efeito buscado, no entanto, não é tanto o da comédia de erros, e sim o da exasperação da vida em sociedade (da qual a família funciona como microcosmo).

Os personagens de Puiu parecem viver vidas distintas entre sua encenação social constante e os efeitos nas suas vidas pessoais. Isso é encenado com especial exatidão na construção do casal protagonista, o único a quem é permitido viver duas cenas fora do apartamento em que o filme se passa na maior parte. Ali, temos acesso a um universo que borbulha por detrás das conversas (e brigas) de sala de família, e da discussão de eventos contemporâneos que dominam o vai e vem no apartamento. Mais do que a exposição da crise da unidade familiar, porém (na veia bastante comum de um cinema mais facilmente “iconoclasta”, tipo Festa de Família), o que interessa a Puiu é mesmo essa dimensão existencial, a dificuldade de ser e existir em sociedade, de conseguir realizar as suas expectativas e as dos outros à sua volta, ao mesmo tempo. E é aí que o tempo é decisivo: apenas vivenciando a pressão do cotidiano como peso se pode chegar perto do lugar dramático onde os personagens se encontram.

É quase diametralmente oposto o lugar de onde Alain Guiraudie trabalha com o tempo em Rester Vertical. O filme se inicia com um personagem à deriva, que parece se definir como um voyeur que caça algo que não sabemos ainda o que é nos personagens que olha (e com quem se relaciona). Logo fica claro que, para definir seu protagonista, o essencial não é a passagem do tempo na tela, mas sim o corte brusco, a elipse radical. Guiraudie usa essa ferramenta magistralmente, seja para atingir determinados efeitos cômicos na sua estranheza e surgimento repentino (a primeira delas, que dá início ao primeiro encontro sexual do filme, por exemplo), seja principalmente para construir uma sensação de existência definida, justamente, pela forma como as coisas parecem não se impregnar ao personagem (e nem ao espectador). Assim, passar minutos ou anos em um corte é um detalhe menor para o efeito direto que se busca no ato de se juntar duas imagens ou dois momentos.

Logo descobrimos que o personagem não é apenas um voyeur, mas principalmente alguém que busca viver situações para encontrar um sentido na sua vida. Ele parece alguém para quem todo encontro com uma pessoa pode ser definitivo – mas, paradoxalmente (ou não), nenhum deles termina sendo. A sensação de inconclusão de tudo que o circunda é refletida na sua incapacidade de escrever um roteiro ao qual devia estar se dedicando ao longo de sua deriva. No entanto, a dimensão metalinguística dessa escrita, e sua relação com o filme que vemos, não é tratada pelo filme nem como um “joguinho de espelhos”, nem como uma simbologia fácil: trata-se apenas da condição existencial mesmo que o personagem enfrenta – e que, de alguma forma, se espelha na relação do espectador com a obra. A incompletude, e de novo (como em Puiu), a dificuldade de encontrar a satisfação de suas expectativas face às expectativas dos outros. Esse protagonista (que poderia facilmente ser chamado de O Rei da Fuga, título de um filme anterior de Guiraudie) vivencia uma espécie de conto de fadas queer (com direito a lobos e ovelhas, ogros e princesas) no qual nunca parece capaz de se tornar o herói que espera ser (pelo contrário, segundo o olhar de um órgão de imprensa, que só enxerga os fatos pelo que são, e não seus contextos, ele inclusive é o mais vil dos vilões).

Uma coincidência certamente de menor relevância une as carreiras de Cristi Puiu e Alain Guiraudie, primeiros dois cineastas a terem seus longas exibidos na competição de Cannes em 2016. Ambos tiveram filmes premiados na Un Certain Regard (a mostra paralela da seleção oficial) que geraram muita discussão em seus respectivos anos (A Morte do Senhor Lazarescu, de Puiu, em 2005; O Estranho do Lago, de Guiraudie, em 2013) por não terem sido colocados na competição. A acusação que em geral acompanhou essas discussões era a incapacidade de o Festival acomodar na competição nomes menos consagrados ou propostas de cinema que ousavam ir um passo além do “cinema de autor” bem comportado. Como disse, para as vidas dos filmes isso não tem importância alguma: eles são o que são, e ambos marcaram bastante o cinema mundial nesses anos recentes. Mas é uma coincidência interessante que os dois tenham sido finalmente “aceitos” no clube da competição, que deixava no ar a pergunta: terá mudado a competição ou terão mudado os cinemas de Puiu e Guiraudie? Se algum fã do cinema deles estivesse apreensivo com a resposta, pode ficar tranquilo em saber que certamente não foram os seus cinemas que mudaram. De fato, pode-se defender sem nenhum problema que Sieranevada e Rester Vertical aprofundam as pesquisas e os temas mais comuns dos cinemas dos dois diretores.

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