Odete, de João Pedro Rodrigues (Portugal, 2005)

março 11, 2013 em Em Pauta, Juliano Gomes

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A voz do morto
por Juliano Gomes

Provavelmente, a grande virtude do cinema de João Pedro Rodrigues é sua capacidade plena de ser direto.  Sua poética quer deixar de lado qualquer aspecto abstrato, conceitual, oculto, em nome de um investimento, absolutamente singular em seu sucesso, na materialização, na substância mesmo das cenas e não em seu significado, externo. Os três primeiros minutos de Odete nos mostram um beijo amoroso, cujo afastamento da câmera revela dois amantes numa cena que está mais para uma cerimônia de casamento do que para um bate-papo entre namorados: despedem-se, um deles liga para desejar boa sorte, ouve-se um estrondo, seu namorado se acidentou, está morto, o amante sobrevivente chora sobre o cadáver ensanguentado, a música aumenta e uma chuva torrencial cai enquanto a câmera se aproxima deles novamente. Nota-se então um grande esforço para literalmente “dar forma” e causar entendimento e comoção por esta materialidade das coisas do mundo, onde tudo ou se reitera ou contrapõe.

A estrutura que fornece as bases destas operações é a do melodrama. Ao contrário do recente Tabu, de Miguel Gomes, há aqui uma abordagem absolutamente frontal do gênero, em que esta dimensão da recuperação, do comentário em relação a um repertório, se torna eclipsada pela destreza com que a matéria do filme se adapta perfeitamente a esta “grande estrutura” que o guia em sua organização cristalina em atos e arcos perfeitamente concebidos. Há um mundo fechado, as cartas estão marcadas e as motivações são claras: a vida de Rui (Nuno Gil) perdeu o sentido após a morte de seu namorado Pedro (João Carreira), enquanto que Odete (Ana Cistina Oliveira), vizinha de Pedro, quer muito ter um filho, mas seu namorado não quer. O trajeto de Odete é também um caminho da criação, da materialização de um ser: precisa criar alguém para ter alguém.

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João Pedro Rodrigues, assim como Odete, estabelece uma crença no poder de criação a partir de um morto (o gênero melodrama). O pai do filho de Odete e o gênero que dá forma ao filme estão mortos. Entretanto, esta operação paradoxal da geração de vida, de vitalidade, presença a partir de uma ausência, é o que caracteriza esta notável empreitada do diretor português. Uma vez estabelecidas as bases (personagens, motivações, espaços, canções), o que dá consistência à obra é justamente o poder de suas transições, metamorfoses, isto é, a observação simples de como uma coisa se torna outra, de como um morto se torna um pai, de como um homem gay se torna amante de uma mulher, de como uma mulher engravida sem sexo, de como Odete se torna Pedro, de como cada espaço vai se tornar uma extensão perfeita de cada núcleo dramático a ponto de se tornarem também personagens, núcleos dramáticos e expressivos.

A abordagem do melodrama por João Pedro Rodrigues vai se aproximar da produção teatral de Nelson Rodrigues, especificamente de sua potência de reversibilidade. Uma vez que os tipos e as situações estão estabelecidos, o trabalho da obra é justamente exercitar suas transformações, tendendo em geral para os seus contrários. Se as posições iniciais parecem rasas, o que lhes dará profundidade é a maneira de dar forma a estas mutações, cujas forças (desejo, paixão, morte, criação) vão transitando entre um corpo e um outro, e é a exuberância deste trânsito através de um terreno demarcado que nos cabe observar. E aí fica clara a filiação de Rodrigues (João Pedro e Nelson também) a um certo modo clássico, no sentido da exploração de um repertório definido não a partir da incorporação de elementos exteriores a esta grande forma, mas de exercer justamente a mutabilidade que esta forma já oferece como possibilidade, pois ela nunca foi estanque. Se convivem numa mesma parede cartazes dos Sex Pistols e de Bonequinha de Luxo, é porque a renúncia à chave intelectualizante nos leva a ver que, em sua superfície, são matérias que em nada diferem em natureza, que vão em direção à composição de um espaço que alimenta de significado a cena – neste caso, o quarto de Rui.

A força das matérias da cena, que converge para o corpo humano, faz com que não haja distinção clara entre os planos dos quadros, no sentido hierárquico. Tudo exala e significa. Daí o uso notável também das canções, funcionando mesmo como temas. O exemplo maior é de “Moon River” (Johnny Mercer e Henry Mancini, tema de Bonequinha de Luxo), que retorna em algumas versões diferentes em todos os momentos-chave do filme (morte de Pedro; aproximação de Rui e Odete; consumação do amor de Odete/Pedro e Rui). A força de Odete está ligada a uma circularidade trágica, a um trajeto de retorno, do desejo das pulsões, das questões primárias da existência humana (amor, morte, nascimento), e a esta dimensão da dança entre estes pólos. O “melo”, de “melodrama”, é justamente a música, esta porção sensual, efêmera, que é o motor deste jogo das transições entre os estados dos personagens e entre o regime do filme (realista e fantástico).

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O constante uso de travellings de aproximação e distanciamento é justamente a forma desta ideia, de manter a matéria e variar a perspectiva, sem buscar contracampo ou qualquer tipo de exterioridade, pois os corpos, as cores, a música, os cenários, tudo aponta pra dentro. Trata-se de um triângulo amoroso cujo um dos vértices é um morto que sobrevive em sua atividade, pois este morto nunca perde forma, já que a morte é somente uma mutação: Pedro está no anel, na parede de seu quarto, nas roupas, nas cores, no vento, na chuva, e, por fim, em Odete. Odete é  afirmação deste substrato comum de suas partes: tudo é feito de uma mesma matéria. E se o que vemos são modos diferentes dessa matéria, resta ao artista ir buscar as formas, como essa matéria se torna diferentes coisas, isto é, em como se dá sua manifestação, pois parece impossível atingi-la diretamente, uma vez que sua maneira de existir é justamente transformando-se. É a brilhante elucidação deste modo que irradia das cenas de Odete.

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